Filosofia do Direito

Para que serve a filosofia?

Para que serve a filosofia?

 

 

Mario Guerreiro

 

(Primeira Parte)

 

Oscar Wilde costumava dizer que a arte não serve para nada. Estamos certos de que ele concordaria com a ressalva de que, embora não tenha de estar atrelada a qualquer finalidade prática, a arte serve para produzir satisfação estética, tanto do ponto de vista do artista e do processo de criação como do ponto de vista do receptor e do processo de recepção. Ocorre, no entanto, que a pergunta: “Para que serve x?” costuma abrigar o pressuposto de uma noção de uma finalidade de caráter utilitário. Como já foi dito por alguém: “Art is indispensable. I only wonder for what” [“A arte é indispensável. Só me pergunto para que”].

 

Na Era Vitoriana, despontaram alguns movimentos contrários à concepção da “arte pela arte” (art for art’s sake) pretendendo que a arte tinha de estar a serviço da pedagogia e da moral. Ora, não se pode negar que a expressão artística pode ser um valioso instrumento tanto do ponto de vista do aprendizado como do da formação do caráter e da ampliação dos horizontes das pessoas, mas tais aplicações estão longe de esgotar as finalidades da arte e não parece razoável estabelecer quaisquer obrigações ou restrições à atividade dos artistas, a menos que queiramos retomar em nosso século às autoritárias prescrições estéticas feitas por Platão na República (Murdoch, 1977) ou – com menor ênfase mas não menor autoritarismo – aos cânones estabelecidos pelo academicismo.

 

Desse modo, Wilde e alguns dos assim chamados estetas (Small, 1979) reagiram fortemente à referida proposta, encarando-a como uma forma de cerceamento da liberdade de expressão e um amesquinhamento da própria expressão artística. E assim sendo, a asserção de Wilde de que “a arte não serve para nada” tornar-se-ia melhor compreendida, caso acrescentado o adendo: …“Para nada que não seja a pura satisfação estética do produtor e do receptor”. 

 

Longe de mera excentricidade, o movimento esteticista britânico – que no Continente contou com a adesão de Théophile Gautier, Charles Baudelaire e outros – era na realidade uma reação ao didatismo e ao moralismo vitorianos, que geravam o sério risco de remeter a um segundo plano a feição precípua da expressão artística: o fornecimento de uma “satisfação desinteressada” – interesseloses Wohlgeffalen, para usar o fundamental conceito kantiano apresentado na Crítica da Faculdade de Julgar (Kritik der Urteilskraft).

 

Partindo do pressuposto de que toda e qualquer ação humana – à exceção das involuntárias – visa a uma finalidade, não podemos sustentar a idéia de que o artista, ao se engajar em um processo criativo – que, como modo de expressão, tem de ser considerado uma forma de ação – não visa a absolutamente nenhuma finalidade, ou que o receptor, ao dispensar parte do seu tempo à apreciação estética, também não está voltado para nenhum fim. Mas, se é assim, que dizer do filósofo dedicando longas horas à leitura e à reflexão críticas? Que dizer daqueles que consomem seu tempo lendo aquilo que resultou da atividade produtora de textos filosóficos? Devemos sustentar que, tal como a arte, a filosofia não serve para nada que não seja a satisfação filosófica, entendida como forma distinta da satisfação estética?

 

Como sabemos, no que diz respeito à procura do belo, Kant asseverou vigorosamente se tratar de uma “finalidade sem fim” (Zweckmässigkeit ohne Zweck). À primeira vista, tal expressão parece uma gritante contradictio in adjectio semelhante a “causalidade sem causa” ou “senso sem sentido”. Todavia, essa aparente incongruência se desfaz quando o próprio filósofo esclarece que, ao usar tal expressão de impacto, tinha em mente uma “finalidade sem fim utilitário ou cognitivo”, deixando implícita a sugestão da possível existência de ao menos uma forma de finalidade distinta das duas acima mencionadas. Trata-se de uma finalidade, porque está em jogo um movimento expressivo dotado de sentido e direção, mas é sem fim prático ou cognitivo. Além disso, é oportuno acrescentar que, em um âmbito mais amplo, Kant estava preocupado em fazer uma demarcação axiológica dos valores do Belo, do Verdadeiro, do Agradável e do Útil.

 

Antes de qualquer coisa, devemos levar em consideração as oportunas observações de Wilde e Kant – um grande artista e um grande filósofo – e encetar uma crítica de um ponto de vista bastante disseminado, que se caracteriza por reduzir um conceito complexo – o de finalidade – a uma das suas possíveis formas: a da finalidade de caráter utilitário.

 

Admitindo que o artista, ao se engajar em um processo criativo, não costuma visar a nenhuma finalidade de caráter prático ou cognitivo, resta indagar se o mesmo pode ser dito em relação ao filósofo. Será que, assim como os produtores e os receptores da expressão artística estão voltados para uma satisfação desinteressada, os filósofos estão também voltados para outra forma de satisfação que – embora não seja desprovida de caráter cognitivo – é inteiramente desprovida de finalidade prática, ou seja: uma forma de satisfação puramente intelectual e espiritual?

 

Não resta nenhuma dúvida de que qualquer processo investigativo e criativo – seja o da pesquisa científica ou filosófica, seja o da produção artística – constitui uma atividade capaz de produzir grande prazer, não importando aqui se é o caso do prazer sensorial – freqüentemente presente na criação artística e raramente presente nas pesquisas científica ou filosófica – ou se é o caso do prazer intelectual – tão freqüentemente presente nestas duas, mas não tão raramente naquela. Já foi dito que o binômio de Newton é tão belo quanto a Vênus de Milo. A contemplação desta pode produzir tanta satisfação quanto a compreensão daquele. Contudo, temos de admitir que se trata de distintas formas de satisfação diante de distintas formas de beleza. O mencionado juízo estético só pode ser sustentado justificadamente, caso admitamos – como Plotino e outros filósofos aventaram – uma diferença entre o belo sensível – no caso a beleza da mencionada estátua – e o belo inteligível – no caso a da referida fórmula da Física.

 

O cultivo da arte, da filosofia ou da ciência – entre outras formas de expressão – são atividades extremamente gratificantes em contraposição às atividades desgastantes, rotineiras e mecanizadas, que caracterizam a maior parte das profissões exercidas pela maioria das pessoas. Embora não pareça, até mesmo a própria matemática – a igual exemplo do jogo de xadrez – torna-se uma atividade extremamente criativa quando são postos de lado problemas simples e corriqueiros e são enfrentados problemas complexos e desafiadores, demandando soluções de grande inventividade intelectual.

 

 Talvez, os não-matemáticos experimentem alguma dificuldade em compreender o prazer experimentado pelos matemáticos quando, após muitas fracassadas tentativas, conseguem finalmente chegar à resolução de um problema. Por sua vez, alguns matemáticos podem experimentar idêntica dificuldade em compreender o prazer encontrado na produção e na recepção de obras de arte ou em qualquer outro tipo de atividade criativa não envolvendo deduções nem demonstração de teoremas. As respectivas dificuldades são relativas às diferentes formas de expressão através das quais os indivíduos estão acostumados a se expressar.

 

Se, para um falante da nossa língua, é bastante difícil aprender línguas tonais como o chinês, para um chinês não é menor a dificuldade em aprender línguas atonais como a nossa. Se às vezes temos dificuldade em distinguir um extremo-oriental de outro – uma vez que todos possuem olhos amendoados, cabelos pretos, lisos e escorridos – não devem pensar que eles não experimentam igual dificuldade em reconhecer um europeu de outro – uma vez que, embora possam variar bastante as tonalidades dos olhos e dos cabelos, todos têm olhos arredondados.

 

Há diferentes tipos de processos criativos associados a diferentes formas de prazer. Todavia, independentemente dessa diversidade, há um significativo fator de unidade: parece impossível conceber o desempenho de uma atividade criativa qualquer dissociado de algum tipo de prazer. Podemos facilmente conceber formas de prazer não envolvendo nenhuma criatividade, mas é difícil, se não impossível, conceber alguma atividade criativa dissociada de algum tipo de prazer. Processos criativos são por essência prazerosa, porque através deles nos expressamos, experimentamos o sabor do novo e, ao mesmo tempo, afastamo-nos do banal e do rotineiro que costumam entediar nossa existência e estreitar nossos horizontes.

 

A pesquisa científica é geralmente vista como uma forma de satisfazer a curiosidade intelectual, adquirir conhecimento e fornecer indispensáveis subsídios à tecnologia e a determinadas atividades práticas ambas dependentes do conhecimento científico. E, como já dissemos: uma forma de criatividade geradora de uma forma de prazer. Pensamos que nenhum filósofo discordaria da idéia de que a pesquisa filosófica é também uma forma de satisfazer a curiosidade e adquirir conhecimento. Mas alguns não estariam de acordo no tocante às possíveis finalidades práticas da filosofia. Estes, quando acossados pela terrível indagação: “Para que serve a filosofia?”, pressentiriam na própria formulação uma insidiosa insinuação de que a filosofia não teria nenhum valor por não servir para nada, ou só adquiriria algum valor caso se colocasse a serviço de algo.

 

No entanto, nem Aristóteles nem Kant tiveram o referido pressentimento. Como sabemos, o autor da Ética a Nicômaco e da Política – que foi o primeiro filósofo a organizar o corpus de disciplinas filosóficas – foi também o primeiro a reconhecer uma importante distinção entre filosofia teórica e filosofia prática. Em certo sentido, Kant talvez tenha ido mais longe ao dividir a razão em razão pura e razão prática, tentando posteriormente alcançar uma forma de entrosamento entre ambas. Para Aristóteles, a metafísica – disciplina que, para ele, continha o que hoje chamamos de ontologia e de epistemologia – era uma disciplina essencialmente teórica, ao passo que a ética e a filosofia política eram disciplinas essencialmente práticas. E no que diz respeito à sua praticidade, talvez ele tenha sido muito mais radical do que Kant e tantos outros que aceitaram a mencionada classificação.

 

Em uma passagem da Ética a Eudemo (I, seis, 1216b, 21-25), Aristóteles se expressa de modo bastante claro e enfático: “Não desejamos saber o que é a coragem, a não ser para sermos corajosos; não desejamos saber o que é a justiça, a não ser para sermos justos. Desejamos gozar de saúde, não saber o que é a saúde”. E em uma passagem da Ética a Nicômaco (11, 3, 1103b, 27-29) o espírito da observação é o mesmo: “Não estamos investigando a natureza da virtude, de modo, a saber, o que ela é [obs. nossa: “como finalidade última da nossa investigação”], mas sim para nos tornarmos mais virtuosos”. No que diz respeito à natureza do conhecimento exposto na Política, Aristóteles o compreende como uma extensão e complementação do conhecimento exposto nos seus tratados de ética.

 

É preciso advertir, no entanto, que para ele a noção de episteme politike (ciência política ou conhecimento político) não equivale ao que hoje denominamos “ciência política” ou “filosofia política”, pois não pretendem ser um estudo teórico sobre a natureza do Estado, formas de governo, etc., porém um tratado sobre “a arte de legislar e governar”, coisa que poderia ser chamada “cibernética” (arte de pilotar), caso N. Wiener não tivesse proposto esse neologismo para denominar algo bastante diferente ligado ao que acabou ficando conhecido como “informática” (Guerreiro, 1999).

 

 

Compare preços de Dicionários Jurídicos, Manuais de Direito e Livros de Direito.

Como citar e referenciar este artigo:
GUERREIRO, Mario. Para que serve a filosofia?. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/para-que-serve-a-filosofia/ Acesso em: 28 mar. 2024