Filosofia do Direito

A destruição do senso comum pela filosofia de Gramsci (parte cinco)

 

 

Gramsci sempre teve uma grande influência sobre o PCI (Partido Comunista Italiano), começou a ser mais conhecido na Europa após a Segunda Guerra, mas não estava entre os mais destacados marxistas ocidentais, os do Bloco Ocidental – como Georgy Luckacs, Henri Lebvrève, Louis Althusser, etc. – e não teve nenhuma ressonância no Bloco Oriental dominado que estava este pela rígida ortodoxia do marxismo soviético.

 

De 1946 a 1991, entre um ano após o final da Segunda Guerra e a dissolução da União Soviética, vigiu o período da Guerra Fria em que algumas tentativas de fazer uma revolução comunista foram bem sucedidas. Primeiro, com a revolução chinesa de Mao-Tsê-Tung em 1949, depois ocorreu a separação da Coréia do Sul da Coréia do Norte,  com esta última tornando-se comunista em 1953 e, finalmente, com a revolução cubana de Fidel Castro em 1959.

 

Como já afirmamos, nunca se verificou uma revolução comunista em países altamente industrializados, como esperava Karl Marx com base no seu materialismo histórico, porém em países semiagrários como a Rússia czarista em 1917, como a China dos generais, a Coréia do Norte e Cuba do charuto, do rum e da rumba. Mas, se a História se recusou a seguir o caminho previamente traçado para ele pelas leis dialéticas de Marx, o que se há de fazer?

 

De 1959 até 1985 – data do final da ditadura militar no Brasil, iniciada em 1964 -pode-se dizer que os marxistas brasileiros estavam divididos em dois grupos gerais: (1) aqueles que ainda acreditavam na implantação de um regime comunista via revolução, apesar da derrota das guerrilhas iniciadas em  1968 e apesar de todas as dificuldades logísticas apresentadas por um país de dimensões continentais, não uma pequena ilha como Cuba e (2) aqueles que acreditavam numa transição pacífica para o socialismo totalitário, mediante reformas e conscientização das massas.

 

Estes últimos decidiram adotar a “alternativa para a guerra”, segundo von Klausewitz, ou seja: a política. A partir de 1988, com uma nova Constituição, foram formados novos partidos políticos e legalizados os partidos comunistas. Um bom número de militantes comunistas, dos que tentaram derrubar a ditadura militar para implantar a ditadura do proletariado – e ainda têm o cinismo de dizer hoje que lutavam pela democracia! – passaram a participar da vida política, seja ingressando nos novos partidos, seja adotando uma militância fora dos mesmos.

 

Ambos, no entanto, aderiram à concepção gramsciana, com seu profundo desprezo pela ciência – mesmo por aquela que Marx acreditava estar fazendo –  e com toda ênfase voltada para a transformação da sociedade, paulatinamente, por meio da transformação da “ideologia burguesa”. Era uma despedida melancólica da revolução armada e uma saudação entusiasta da revolução da “superestrutura” sob os auspícios de Antonio Gramsci.

 

Aqui cabe colocar o que já foi chamado de paradoxo da democracia: regimes totalitários – como foram o nazismo e o comunismo soviético e são hoje os da China, Coréia do Norte, Cuba e Venezuela – após a promulgação da “Lei Habilitante” (uma nova versão da Ermachtigungesetz de Hitler) – não toleram a coexistência pacífica de diversas facções políticas, mas uma autêntica democracia caracteriza-se justamente pela aceitação de um pluralismo ideológico e político.

 

Sendo assim, ela se vê obrigada, por uma questão de coerência para com seus princípios, a aceitar até mesmo aqueles partidos e facções políticas que se servem dela unicamente para acabar com ela.

 

Lenin havia percebido algo análogo no domínio da economia política quando afirmou que o capitalista estava disposto a vender a própria corda com a qual seria enforcado. Talvez, ele tivesse dito isso em alusão aos capitalistas que financiaram a revolução russa de 1917.

 

 Como sabemos, para fazer uma revolução comunista é sempre imprescindível ter um bom financiamento capitalista…

 

Mas que dizer se um partido comunista ou criptocomunista cresce, num país capitalista e democrático, ganha as eleições na maioria dos estados ou províncias, ganha as eleições para a presidência da República, transforma os partidos de oposição numa minoria politicamente irrelevante e, finalmente, tornando-se hegemônico, forma uma assembléia constituinte que vota, democraticamente, uma nova Constituição de cunho comunista?!

 

Essa é uma das formas possíveis de se servir da democracia para acabar democraticamente com ela. Num de seus magníficos sonetos, Shakespeare ofereceu uma imagem bastante eloqüente desse processo.

 

                                      Soneto LXXIII

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           In me thou seest the glowing of such fire,

           That on the ashes of his youth doth lie,

           As the death-bed whereon it must expire,

           Consum’d with that which it was nourish’d by.

 

[Tradução literal minha: Em mim tu vês o brilho de tal fogo/ Que nas cinzas de sua juventude mesmo jaz,/ Como o leito de morte onde ele fenecerá,/ Consumido por aquilo com que foi nutrido].

 

No entanto, há ao menos uma forma de alcançar um regime comunista, prescindindo da instauração de uma assembléia constituinte: basta a conquista da hegemonia, incluindo não só a político-partidária como também a adesão da maioria de uns 80% da opinião pública massificada pela lenta e corrosiva propaganda gramsciana.

 

Como filósofo, Gramsci pode ser uma lástima, haja vista seu desprezo pelo conhecimento objetivo, seu tolo relativismo – ambos uma herança maldita dos sofistas -e sua completa falta de ética, orientada pela redução maquiavélica da ética à política em que os fins justificam todo e qualquer meio. Todavia, como marqueteiro político travestido de filósofo, Gramsci tem se mostrado muito mais eficaz do que o falastrão Richard Rorty e outros sofistas da nossa época.

 

Mas não devemos nos esquecer de que a revolução ideológica proposta pelos atuantes militantes gramscianos, embora não seja sanguinária como a dos jacobinos na Revolução Francesa, assemelha-se bastante a esta mesma, à medida que para inocular suas novas idéias na opinião pública, tem que necessariamente apagar todas as diversas crenças vigentes que se interpõem em seu caminho como indesejáveis estorvos.

 

Na prática, sou obrigado a reconhecer, malgré moi, que o gramscianismo tem sido muito bem sucedido, principalmente nos últimos vinte anos no Brasil. Ele tem conseguido “arruinar todas as influências estabelecidas, apagar as tradições, renovar os costumes, esvaziar o espírito humano de todas as idéias sobre as quais se tinham fundado até então o respeito e a obediência” (A. de Tocqueville: O Antigo Regime e A Revolução. EDUNB. Brasília. 1979, p.176).

 

Até mesmo as autoevidências do senso comum, que servem de embasamento para o conhecimento objetivo e especializado, não escaparam da corrosiva peçonha destilada por Gramsci.

 

Para dar apenas alguns exemplos, todos mostrados pela televisão para milhões de olhos e ouvidos. Um caminhoneiro é achacado por um guarda da polícia rodoviária. Num linguajar inequívoco, ele pede uma propina para o caminhoneiro diante das lentes das câmeras da televisão. Procurado depois pela reportagem, o representante da lei alega cinicamente que se trata de um mal-entendido, que suas palavras foram mal interpretadas… Só dizendo: “M’engana qu’eu gosto!”

 

Um prefeito de uma cidade do interior de São Paulo é mostrado pedindo R$20.000, 00 a um empreiteiro que estava construindo uma escola municipal. O empreiteiro diz que só tem a metade no momento e o prefeito mete as notas no bolso, mas não sem antes advertir que está faltando a outra metade. Procurado pela reportagem, o prefeito alega cinicamente que se trata de um lamentável mal-entendido e que “a imagem não fala por si própria”, como foi depois alegado por um cínico político no mais recente escândalo envolvendo José Roberto Arruda, governador do Distrito Federal.

 

Como que essas imagens não falavam por si própria, acompanhadas que estavam pelas falas dos protagonistas como sinais inequívocos de corrupção ativa?! Tempos atrás, um indivíduo apanhado por uma câmera de TV, em que ficam evidenciadas cenas e falas de gritante corrupção, quando procurado pela reportagem, procurava se esconder e mandava alguém dizer que ele tinha viajado ou ido ao dentista…

 

Eu poderia multiplicar exemplos dessa espécie, mas prefiro reservar espaço para o que está realmente em jogo: o desprezo pela lei e pela ética chegou a tal ponto que indivíduos tornaram-se capazes de negar aquilo que os olhos de milhões de cidadãos estão vendo. Se tivessem um mínimo de vergonha na cara invocariam o direito de permanecer em silêncio e só se pronunciar diante de uma corte de Justiça.

 

Mas há ainda uma coisa mais grave do que negar fatos bem documentados podendo servir como provas jurídicas. Até mesmo aquelas autoevidências básicas do senso comum, podendo ser espontaneamente surpreendidas por nossa percepção sensível, costumam ser alvo de contestação. Dou apenas um exemplo que acredito ser suficientemente contundente.

 

No princípio do século XX, George Moore, famoso filósofo da Universidade de Cambridge (Inglaterra), não agüentava mais os sofismas dos idealistas e o tolo ceticismo em relação aos sentidos dos novos céticos. Assim sendo, fez uma conferência em Cambridge que começou assim: mostrando sua mão aberta para o auditório repleto, disse: “Isto é uma mão e tem cinco dedos. Há alguma dúvida?”

 

Não sabemos qual a reação do auditório, mas estamos certos de que alguém deve ter feito uma objeção baseada no antigo tópico de que nossos sentidos nos enganam e não são dignos de confiança.

 

De fato, às vezes somos iludidos por ilusões óticas e fenômenos assemelhados, mas daí a achar que posso estar iludido quando olho para meus dedos e verifico que eles têm unhas, vai uma grande distância. Se nossos sentidos sempre nos iludissem, seríamos incapazes de atravessar uma rua…

 

No entanto, recebi uma chuva de objeções uma vez em que resolvi fazer o teste de sanidade mental proposto por Moore. Em um Encontro Nacional de Filosofia, iniciei minha fala dizendo: “Isto é uma mão e tem cinco dedos”. Tantas foram as objeções dirigidas a mim que, deste momento em diante, fui levado a formular um dilema crucial: Ou eu ou eles, um de nós dois está padecendo de gravíssima enfermidade mental (Tertium non datur).

 

Mas esse é tão-somente um dos muitos efeitos produzidos, explícita ou sub-repticiamente, com a destruição do senso comum pela filosofia de Gramsci, juntamente com a emergência do imbecil coletivo apontado por Olavo de Carvalho em O Imbecil Coletivo (Rio de Janeiro. Faculdade da Cidade Editora. 6.a edição). Há outros efeitos além do especialmente produzido nos filósofos e estudantes de Filosofia, e para surpreendê-los em ação, basta estar atento ao que passa cotidianamente diante dos nossos olhos neste Brasil em sua marcha – ora mais lenta, ora mais acelerada, mas aparentemente irreversível – para o comunismo.

 

 

* Mário Antônio de Lacerda Guerreiro, Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Autor de Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000) . Liberdade ou Igualdade? ( EDIPUCRS, Porto Alegre, 2002). Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói, 1985); Paradigmas Filosóficos da Atualidade (Papirus, Campinas, 1989); O Século XX: O Nascimento da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber, Verdade e Impasse (Nau, Rio de Janeiro, 1995; A Filosofia Analítica no Brasil (Papirus, 1995); Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já apresentou 71 comunicações em encontros acadêmicos e publicou 46 artigos. Atualmente tem escrito regularmente artigos para www.parlata.com.br,www.rplib.com.br , www.avozdocidadao.com.br e para www.cieep.org.br , do qual é membro do conselho editorial.

 

Como citar e referenciar este artigo:
GUERREIRO, Mário Antônio de Lacerda. A destruição do senso comum pela filosofia de Gramsci (parte cinco). Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/a-destruicao-do-senso-comum-pela-filosofia-de-gramsci-parte-cinco/ Acesso em: 19 abr. 2024