Filosofia do Direito

Dispositivos sem validade jurídica

Dispositivos sem validade jurídica

 

 

Ives Gandra da Silva Martins*

 

 

 

A polêmica levantada pelo Ministro Nelson Jobim está levando os meios jurídicos e políticos do Brasil a acirrar discussões, visto que alguns dispositivos da Constituição em vigor não foram aprovados pela Constituinte em seu devido processo legislativo, sendo, do ponto de vista da jurisprudência do STF, inconstitucionais (inconstitucionalidade formal).

 

A jurisprudência da Suprema Corte é ilustrativa no sentido de que a inconstitucionalidade formal deve ser declarada, no mais das vezes, prevalecendo seu efeito “ex tunc”, isto é, desde o início de seu “iter júris” irregular (ADIN 21/600, D.J. 21/11/97, Ementário 1892-01). Por força, entretanto, do artigo 27 da Lei 9868/99, poderá a Suprema Corte declarar a inconstitucionalidade “ex nunc” ou para o futuro, a fim de evitar efeitos desastrosos, se declarada a inconstitucionalidade, fosse retirada a validade da norma desde sua promulgação.

 

No caso, parece-me que a questão deverá ser posta nestes termos. Todos os dispositivos promulgados sem a aprovação, nas votações do texto supremo, são formalmente inconstitucionais. Não têm validade jurídica, embora, até a declaração de sua inconstitucionalidade, mantenham eficácia. Vigem com eficácia viciada. Ocorre que a declaração de sua inconstitucionalidade “ex tunc” poderia acarretar problemas fantásticos. Um dos dispositivos, que, segundo a Folha de São Paulo, não teria sido discutido e aprovado em plenário, é o que diz respeito ao número de vereadores das Câmaras Municipais, prevalecendo o texto final promulgado, sem observância do devido processo legislativo.

 

Seriam dramáticos os efeitos de uma declaração de inconstitucionalidade “ex tunc” do referido dispositivo –a ser válida a informação –visto que poderia ser questionada judicialmente a validade dos atos legislativos emanados, desde a promulgação da lei suprema de 1988, por todas as Câmaras Municipais que contam com número maior de edís do que o autorizado pelo texto original aprovado.

 

Tenho para mim que só há uma forma de correção da irresponsabilidade do constituinte, ou seja, propor, o Presidente da República, uma ação declaratória perante a Suprema Corte, pedindo que sejam declarados constitucionais tais dispositivos. O Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição que é (art. 102 da lei suprema) se entender improcedente a ação, poderá declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos, mantendo, entretanto, a sua eficácia até a produção de texto futuro, objetivando evitar danos jurídicos maiores. E, como a ação declaratória tem efeito vinculante e eficácia “erga omnis”, por força do próprio texto constitucional (art. 102, § 2º), tal decisão passaria a valer até ulterior alteração do texto maior.

 

Desta forma, não se criaria um perigoso precedente de desrespeito ao devido processo legislativo. De outra forma, as leis ordinárias e complementar, assim como as emendas constitucionais, poderão ser, a partir de agora, elaboradas sem qualquer preocupação com a regularidade do processo legislativo para sua validade, pois a eficácia final seria a mesma.

 

Se nada se fizer, à evidência, o perigoso precedente estará aberto. Aplicando-se a norma do artigo 27 da Lei 9868/99, que introduz em nosso ordenamento o princípio retirado do direito alemão –aplicável, a meu ver, só em casos excepcionalíssimos, tendo eu, no passado, sido contra sua inclusão na referida lei e na lei 9882/99 (art. 11) — estou convencido de que se poderá salvar a irresponsabilidade constituinte, dando-se validade jurídica às relações estabelecidas à luz do texto formalmente inconstitucional. Como o artigo 27 declara que a inconstitucionalidade será declarada “ex nunc” ou para o futuro, poder-se-ia, portanto, manter a validade dos dispositivos até a promulgação de nova emenda, sem prazo definido, nada obstante sua inconstitucionalidade formal.

 

Há, pois, processos legais para corrigir tal leviandade constituinte. O que vem provar a procedência da observação atribuída a Bismarck de que, se soubéssemos como as leis e as salsichas são feitas, não comeríamos salsichas, nem cumpriríamos as leis. E, no Brasil, pelo menos as leis, merecem a observação.

 

 

* Advogado tributarista, professor emérito das Universidades Mackenzie e UniFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, é presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, do Centro de Extensão Universitária e da Academia Paulista de Letras.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
MARTINS, Ives Gandra da Silva. Dispositivos sem validade jurídica. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/dispositivos-sem-validade-juridica/ Acesso em: 19 abr. 2024