Estatuto da Criança e do Adolescente

A criança e o adolescente nos Códigos Criminal Imperial e Penal Republicano do século dezenove

Emerson Benedito Ferreira[1]

Resumo: O artigo tem como proposta principal localizar, na letra dos Códigos oitocentistas, particularidades e singularidades dadas pelo direito às crianças e aos adolescentes daquele determinado tempo histórico.

Palavras chave: criança, infância, adolescência, direito, criminologia

Abstract: The main purpose of this article is to locate, in the letter of the 19th century Codes, particularities and singularities given by the right to children and adolescents of that determined historical time.          

Keywords: child, childhood, adolescence, law, criminology

Ortolan faz também a seguinte pergunta:

A criança é um pequeno ser, cuja inteligência nos maravilha com os seus recentes rebentos, pelos progressos quotidianos, que vemos ele fazer, mas, quando a razão moral, a noção do justo e do injusto lhe virá? Quando aparecerá com o seu inteiro vigor?

Chauveau e Heli se expressam assim: A infância nos primeiros anos quando sua razão balbucia ainda, não pode por conseguinte ser responsável por seus atos, porque não tem inteligência, não compreende a moralidade (…).

Mas, qual a época que se desenvolve a sua inteligência e aclareia a razão?

Qual a idade que a lei deve fazer pesar na criança a responsabilidade de seus atos? (O DIREITO, 1905, p. 313).[2]

Introdução

São escassas as pesquisas científicas que buscam nas entrelinhas das legislações e daspráticas forenses contemporâneas e pretéritas o trajeto e o lugar reservado às crianças e aos adolescentes. Desponta somente na atualidade uma corrente científica volta da excepcionalmente para fazer uma História Jurídica e Social da Criança, uma analítica que mostre as pegadas dos pequenos nos processos e nas legislações que lá os colocaram.

Usando deste enfoque, e em uma rápida análise, podemos dizer que foi apenas com o Estatuto da Criança e do Adolescente promulgado no ano de 1990 que a criança[3] passou a ser servida por direitos e por traços de cidadania, pois outrora, carregaria por tempos a incômoda pecha de ‘menor[4] figurando nas Cartas Políticas, nas Consolidações de Leis Penais e nos Estatutos de Menores apenas como carecedora de auxílio[5] e cumpridora de deveres.

Com efeito, podemos dizer que, aos olhares do legislador, seja nas Ordenações do Reino ou nos Códigos Penais do século XIX e XX, a criança e o adolescente sem condições financeiras sempre foram percebidos, talvez até grifados por seu pertencimento social. Nestes documentos jurídicos existiam gamas de dispositivos voltados quase que tão somente a regrar e regular a vida e conduta da criança e do adolescente pobre.

Nesta direção, em um interessante documento que foi encontrado na Revista ‘O Direito’, temos a seguinte colocação jurisprudencial:

Declara o modo porque devem proceder os juízes de órfãos quando pelo chefe de polícia lhe forem enviados menores que vagam pelas ruas da cidade sem amparo.

Ministério dos negócios da justiça – 3ª seção – Rio de Janeiro, 27 de Novembro de 1885.

Recomendo a V. S. Que, quando pelo chefe de polícia da côrte forem enviados a esse juízo menores nacionais ou estrangeiros que vagam pelas ruas da cidade sem amparo ou proteção, deve proceder a respeito da cidade do modo seguinte:

1º Solicitar ao ajudante general do exército, ao da armada, ou ao diretor do arsenal de guerra a admissão dos mesmos menores em qualqeur das companhias de aprendizes da guerra ou da marinha.

2º Requisitar ao ministério do império, quando não possam se ali aceitos, para que sejam adimitidos no asilo de meninos desvalidos.

3ª Dar à soldada, na forma da Ord. L. 1, tit. 88- 13 e da disposição do aviso n. 312 de 20 de outubro de 1859, não só os menores órfãos como os filhos de pais incognitos.

4º Finalmente, comunicar ao agente consular respectivo, logo que for reconhecida a nacionalidade do menor estrangeiro, antes de dar-lhe o destino legal, a fim de facilitar àquele funcionário os meios necessários para a boa direção dos filhos menores de seus compatriotas.

Convém, entretanto, que os menores dados à soldada sejam entregues somente a pessoas domiciliadas no distrito da jurisdição desse juízo preferindo V. S. Os estabelecimentos industriais e exercendo toda a vigilância no empenho de verificar se são cumpridas as condições impostas nos termos de responsabilidade.

Deus guarde a V. V. – Joaquim Delfino Ribeiro da Luz – Sr. Desembargador juiz da 1ª vara de órfãos da Côrte (1886, p. 351)

Neste contexto, podemos afirmar que o território da criança e do adolescente[6] delinquente, vitimizado eabandonado sempre foi o da esfera criminal, com deveres e reprimendas (judicialização dapobreza), ao passo que a criança e o adolescente com condições financeiras costumeiramente figuravam em laudas processuais como carecedores de direitos (FERREIRA, 2019a).

Assim, as considerações de Lloyd Demause (2014, p.19) de que “quanto mais regredimos na história, mais baixo é o nível de cuidado às crianças e mais alta a probabilidade delas terem sido mortas, abandonadas, espancadas, aterrorizadas e sexualmente violentadas”apenas faz sentido se empregarmos tais premissas à criança e ao adolescente desvalidos, pois dificilmente no trato dos autos criminais e na lida jurídica serão encontradas crianças e adolescentes ricos abandonados pelos pais, violentados ou mortos. Se existem ou existiram eles acabaram por não ultrapassar as paredes do próprio ambiente familiar (FERREIRA, 2014).

Neste contexto, partimos da compreensão de que as ideias sobre infância (a até mesmo de criança) são social e historicamente construídas (ABRAMOWICZ, 2003; SARMENTO, 2005; FERREIRA, 2019a-b) e acabam se estabilizando quando fomentadas por dispositivos jurídicos, discursos políticos, condutas médicas, regulamentos cíveis e enunciados científicos. (FOUCAULT,    2010).

Desta maneira, é da analise destes dispositivos existentes na legislação jurídica brasileira que sefará possível dar início a uma verificação de quando, porque e como a criança acabou vencendo (se é que venceu) a condição de inocente e carecedora de auxílio; ou de abandonada e delinquente (dependendo da época e da classe) para figurar nas páginas do Estatuto da Criança e do Adolescente como uma criança cidadã, com deveres e quaisquer direitos unificados (FERREIRA, 2019a).

Portanto, a análise das premissas legislativas de tempos pretéritos endereçadas à criança e ao adolescente é de suma importância para o entendimento do tempo presente. Para esta busca, faremos neste trabalho uma análise específica do Código Criminal do Império e do Código Penal Republicano. No raciocínio, usando de uma metodologia arquegenealógica, se buscará localizar nestes dispositivos legais particularidades e singularidades dadas pelo direito às crianças e aos adolescentes daquele Zeitgeist[7].

Constituição Federal de 1824 e Código Criminal do Império de 1830

Tanto na Constituição Federal de 1824 quanto no Código Criminal Imperial não foram encontradosos termos “criança” e “infância” em seus artigos e incisos, reforçando a concepção de que meninas e meninos pobres recebiam sempre a pecha de “menores” nos Ordenamentos Legais do período. O que a Carta Política de 1824 realmente acrescentou de positivo na história destes meninos e meninas, – em especial, dos negros -, foi o que ela fez insculpir em seu artigo 170, inciso XIX: “Desde já ficam abolidos os açoites, tortura, marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis” (CARVALHO MOREIRA; PEREIRA DE BARROS,1855, p.84).

Este artigo Constitucional veio regulamentar a questão do açoite e das torturas. Ele que era empregado indiscriminadamente nas fazendas pelos senhores, de agora em diante só poderia ser feito como penalidade legal e com ordem expressa do juiz responsável. Assim, açoites, torturas, marcas com ferro quente[8] que eram constantes em tempo de Colônia, passam a ser abolidos pela Carta Política. O senhor poderia aplicar castigos apenas moderados em escravizados[9], que segundo o parágrafo 6º do artigo 14 do Código Criminal do Império, estes castigos deveriam ser semelhantes aos aplicados nos filhos e nos alunos[10] (PAULA PESSOA,1877, p.49).

Já nas letras do Código Criminal Imperial, e separando o que se busca nesta pesquisa, ou seja, – crianças e adolescentes -, a legislação, embora ainda tenha adotado fragmentos do Livro Quinto das Ordenações Filipinas, mostrou-se surpreendente e inovador em vários aspectos. Considerado em 1830 como um dos melhores documentos de sua época, o Código Criminal abandonou em grande aspecto o ambiente teológico do ordenamento anterior para funcionar em um ambiente híbrido, ou seja, positivo e teológico.

Neste contexto, o legislador do novo código procurou ajustar os crimes maculadores da integridade (estes compreendendo os abusos sexuais) no capítulo intitulado “Dos Crimes contra a Segurança da Honra”. Aqui, pela primeira vez, a legislação passou a diferenciar oadulto da criança e do adolescente, pois já no caput do artigo 219, prescreveu: “Deflorar Mulher virgem, menor de dezessete anos”[11]. Observa-se a necessidade da não violência, da virgindade e da menoridade para a tipificação do delito. Neste tipo de crime,o casamento entre abusador e vítima extinguiria a punibilidade.

o dispositivo aplicado ao ‘incesto’ apareceria no artigo 221[12], com uma pena mais elevada do que a subscrita no artigo 219, haja vista a impossibilidade de autor e vítima contraírem núpcias pela questão do pecado e da consanguinidade. Porém, o dispositivo de maior penalidade estaria insculpido no artigo 222:

Ter cópula carnal por meio de violencia ou ameaças com qualquer mulher honesta. Penas: de prisão por trez a doze anos, e adotar a ofendida.(SOUZA,1867, p. 561-562).

Observa-se, portanto que o defloramento contido no artigo 219 era considerado delito leve. Ele somente era punido quando a ofendida apresentasse dezessete anos incompletos. Fora deste parâmetro, era tido como crime com consentimento. Já o artigo 222, dizia respeito a crime com requintes de violência (estupro) sem consentimento da vítima. Ambos, tanto o crime do artigo 219 como o do artigo 222 socorriam a integridade física da criança/adolescente, embora no primeiro caso, pela sua natureza mais branda, dependeria de queixa para sua sequência (crime privado). Já o crime de estupro, pela questão da violência, seria considerado crime público podendo ser sequenciado pelo Ministério Público.

Interessante notar que, embora o Código Criminal do Império tenha, do artigo 219 ao228, apresentado uma gama de instrumentos legais capazes de frear abusos em meninas, nada estabeleceu a respeito de violência contra o corpo de meninos (o crime de sodomia da antiga Ordenação Filipina). Assim, quando da caracterização de qualquer abuso contra meninos, restava à vítima o amparo do vastíssimo conceito insculpido no artigo 280[13] do mesmo Código para fazer valer os seus direitos.

Voltamos agora nosso foco de análise para o crime de infanticídio. Nesta legislação, se a compararmos com as Ordenações anteriores,o tipo penal aclarou, estabelecendo pena precisa ao infanticida[14], porém, determinando também que se o crime fosse praticado pela própria mãe no intuito de ocultar sua desonra, a pena seria abrandada vultuosamente[15]. Tratava-se do instituto da honoris causa, uma atenuante no tipo do crime para a mãe infanticida que tentava se esquivar de macular a sua boa honra. Neste tópico a queo crime de infanticídio estava estabelecido, o legislador achou por bem denominá-lo de crimes contra a vida. Ali, estava presente outro instituto que cuidava da vida do nascituro, embora este termo legal o acompanhasse ainda em útero. O artigo 199 trataria das questões abortivas. Este dispositivo também surgiu com peso no ordenamento penal do império. O tipo penal determinava que a prática de aborto traria ao agente do crime uma pena de prisão com trabalho por período de cinco anos, dobrando a pena em caso do criminoso não ser a mãe e não ter tido dela pleno consentimento para a prática do crime (PAULA  PESSOA,1877).

Quanto à questão da punibilidade de meninos e meninas considerados delinquentes, o CódigoCriminal do Império limitou-se a vincular a periculosidade do ato criminoso ao discernimento do indivíduo[16]. Então, segundo os ditames deste código, ‘qualquer pessoa com idade inferior a catorze anos de idade que não agisse com discernimento seria considerada inimputável’, ou seja, não responderia ao crime que a ele estava sendo imposto. Porém se comprovado que referido autor do delito detinha discernimento no momento do ato, seria ele considerado apto a responder pelo crime independentemente de sua idade[17].

A legislação criminal do império somente seria vencida após a Proclamação da República. Com o novo regime surgiria também uma nova legislação, que de acordo com o contexto intelectual e mentalidade da época lançaria luz ao retrógrado Código Imperial. Com efeito, o Código Penal Republicano de 1890 inovaria tópicos importantes não abrangidos pelo legislador imperial, porém, estaria longe de ser o elixir para todos os problemas da nova República.

Código Penal Republicano

Uma das inovações a que o novo Código se propôs foi a preocupação com os corpos demeninas e meninos violados sexualmente. Se o antigo instrumento processual em momento algum fazia referência a gênero em suas tipificações legais, o Código Penal Republicano, impulsionado pela valorização da criança (ARIÈS, 1981; COSTA, 1979) e pelo aumento dos crimes sexuais praticados por adultos em face dos menores, passou a legislar sobre o assunto de forma mais contundente, buscando frear as atitudes de pederastas[18] que, de acordo com o imaginário vigente, se esbaldavam nos corpos imaturos de indefesas crianças.

Com efeito, os crimes que atentavam contra a integridade das crianças e adolescentesforam elencados no título VIII do Instrumento Penal Republicano com o atributo: ‘Dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor’, e já no início do título, a insígnia ‘Da violência Carnal’ já demonstrava a preocupação do legislador com a questão de gênero, visto a abrangência do termo. Seguindo o raciocínio dispunha o artigo 266:

Atentar contra o pudor de pessoa de um, ou de outro sexo, por meio de violencia ou ameaças, com o fim de saciar paixões lascivas ou por depravação moral: Pena – deprisão celular por um a seis anos. Parágrafo único. Na mesma pena incorreráaquele que corromper pessoa de menor idade, praticando com ela ou contra ela atos de libidinagem (sic) (SOARES, 1910, p.533).

Desta forma e no intuito de um alcance maior da letra de lei, o legislador optou por proteger meninos e meninas, e ainda, acabou por estender a penalidade aos abusadores que embora não cometessem o atentado de forma concludente, praticassem contra a criança ou o adolescente, atos libidinosos[19]. Da mesma forma, os artigos 267 e 270 acabaram complementando o artigo anterior, beneficiando também omenor” vitimizado, pois dispunha:

267: Deflorar mulher de menor idade, empregando sedução, engano ou fraude: Pena – de prisão celular de um a quatro anos;

270: Tirar do lar doméstico, para fim libidinoso, qualquer mulher honesta, de maior ou menor idade, solteira, casada ou viúva, atraindo-a por sedução ou emboscada, ou obrigando-a por violência não se verificando a satisfação dos gozos genésicos: Pena – de prisão celular por um a quatro anos.  (sic) (SOARES, 1910, p.536).

Como se vê no contexto dos artigos acima, o legislador dá importância inédita à criança e ao adolescente, pois tenta evitar com certa amplitudeo temível crime de sedução.

Interessante notar ainda que na sequência do documento legal, o parágrafo quarto do artigo 273 dispõe sobre incesto, mas desta vez diferentemente das legislações anteriores,colocando-o apenas como elemento agravante dos artigos antecedentes, e não como delito próprio.

273 – As penas estabelecidas para qualquer destes crimes serão aplicadas com aumento da sexta parte: (…) E com aumento da quarta parte: 4º, se for ascendente, irmão ou cunhado da pessoa ofendida (sic) (SOARES, 1910, p.550).

Como no código criminal anterior, o casamento seria causa de extinção da punibilidade[20], transformando-se em uma espécie de remédio para os abusos sexuais daquela sociedade.

Outra inovação considerável apresentada neste ordenamento foi a apresentada nosartigos 289, 290 e 292. Talvez pelo desuso da antiga Roda dos Expostos e pelo temor da Teoria da Degenerescência que ecoava pelo mundo, o legislador voltou novamente o seu olhar para a velha questão do abandono de crianças. Diziamos artigos:

289 – Tirar, ou mandar tirar infante menor de sete anos da casa paterna, colégio, asilo, hospital, do lugar enfim em que é domiciliado, empregando violência ou qualquer meio de sedução. Pena: prisão celular por quatro anos. Parágrafo único: Se o menor tiver mais de sete, porém, menos de 14 anos: Pena: de prisão celular por um a três anos.

290 – Sonegar, ou substituir, infante menor de sete anos. Pena: de prisão celular por um a quatro anos. Parágrafo único: em igual pena incorrerá o encarregado da criação e educação do menor, que deixar sem causa justificada de apresentá-lo quando exigido, a quem tenha o direito de reclamá-lo.

292 – Expor, ou abandonar infante menor de sete anos nas ruas, praças, jardins públicos, adros, cemitérios, vestíbulos de edifícios públicos ou particulares, enfim,em qualquer lugar onde, por falta de auxilio e cuidados de que necessite a vítima corra perigo sua vida, ou tenha lugar a morte. Pena: de prisão celular por seis meses a um ano.

§ 1º: se for em lugar ermo ou abandono, e por efeito deste perigar a vida, ou tiver lugar a morte do menor: pena de prisão celular por um a quatro anos.

§ 2º: se for autor do crime o pai ou mãe ou pessoa encarregada da guarda do menor, sofrerá igual pena, com aumento da terça parte (SOARES,1910, p.591-594).

Percebe-se nos dispositivos legais uma preocupação do legislador republicano, não só com a morte do infante, mas também com a sua vida futura, afinal, ‘ele deveria ser instruído e educado para o bem da nação’. Se deixado ao abandono, no espírito da época, transformar-se-ia em uma ‘criança perigosa’, trazendo riscos ao destino  da sociedade e ao futuro da república recém implantada.

Também o crime de infanticídio e aborto passaram a ser penalizados com maior rigorpela legislação republicana. Regidos agora pelos artigos 298 e 300, o primeiro delito passou a reservar ao autor uma pena de seis a vinte e quatro anos enquanto o segundo, de dois a seis anos com o aumento de seis a vinte e quatro anos em caso da morte  da parturiente (SOARES,1910, p. 615-617).

Com respeito à questão da punibilidade envolvendo crianças e adolescentes delinquentes, houve    algumas alterações neste diploma legal se comparado ao Código de 1830. No limite, o Código Penal de 1890 passaria a isentar completamente o menor de nove anos, independentemente de exame de capacidade, pois nestes novos ditames, seria ele considerado absolutamente livre de qualquer intenção criminosa. Já os infratores que estavam na faixa que compreenderia a idadede nove a catorze anos, a atitude criminosa seria investigada para se conhecer o discernimento do autor. Se provado ter ele agido com discernimento, era condenado e encaminhado a estabelecimentos disciplinares, onde sua permanência seria decidida pelo juiz não podendo ultrapassar a idade de 17 anos. Aos maiores de catorze e menores de vinte e um anos, a idade beneficiava-os somente no que diz respeito à diminuição da pena (SOARES, 1910, p. 73, 132 e133).

Considerações terminantes

Das Legislações Criminais Imperiais até o Estatuto da Criança e do Adolescente, é possível apontarmos que as ideias de “criança”, de “adolescente”e de “infância” foram, por interesses diversos, historicamente construídas, e somente no final do século XX, as crianças e os adolescentes de todas as classes passaram a ser entendidos como sujeitos de direito (FERREIRA, 2019a-b).

É importante salientar que embora os Códigos Criminais oitocentistas tenham dado contribuições relevantes ao combate de crimes contra crianças e adolescentes (em especial crimes sexuais) como aqui foi observado, estas mesmas legislações também acabaram por dar novo sentido à terminologia “menor”. Se em tempos coloniais, ‘menor’ foi apenas sinônimo de idade, no Império e na República, com forte influência de correntes da psiquiatria e da medicina legal[21], o termo passou a ser adjetivo jurídico endereçado à criança e ao adolescente de baixa classe social, já que a maioria gritante destes meninos e meninas que figuravam em processos judiciais eram de classes menos favorecidas.

Naquele contexto histórico, tínhamos em um pólo social meninas e meninos que por pertencerem à classes abastadas, eram criados e preparados para comandar a nação (COSTA, 1979), e em outro, meninas e meninos pobres, estigmatizados, tendo contra eles um rígido controle estatal, onde, dependendo das circunstâncias e necessidades da nação, eram domesticados para o trabalho (arquétipo proletário) ou trancafiados em instituições de controle para correção de seus delitos e mazelas (arquétipo do menor delinquente) (MARCÍLIO, 1998; FERREIRA, 2019a).

Dentre as crianças e adolescentes pobres, – e como observamos nos estatutos penais -, transitavam judicialmente e em grande escala nos processos a criança/adolescente órfã ou abandonada, a criança/adolescente vitimizada e a criança/adolescente delinquente. De todas as maneiras, era a criança/adolescente pobre que trafegava nos processos judiciais e inquéritos policiais. Ali tornou-se visível. Ali tornou-se dizível. Ali foi colocada por aqueles que faziam as leis. Ali foi conduzida por aqueles que julgavam os processos. Jurisconsultos e Juízes, que tinham em seus lares a outra criança/adolescente: – a abastada.

Referências

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[1] Doutor em Educação pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar na linha de pesquisa Educação, Cultura e Subjetividade. Desenvolve investigações vinculadas à linha de pesquisa Diferenças: relações étnico-raciais, de gênero e etária e participa do grupo de estudos sobre a criança, a infância e a educação infantil: políticas e práticas da diferença vinculado à UFSCar.

[2] Ao longo de todo o texto onde existem transcrições de documentos de época, os mesmos serão transcritos respeitando-se a pontuação e a gramática originais. Porém, para facilitar a compreensão das passagens dos textos oitocentistas pelo leitor, foi necessário realizar uma atualização da ortografia das palavras.

[3] Criança conforme o artigo 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei Federal nº 8.069 de 13 de julho de 1990) é aquela que possui 12 anos incompletos, e adolescente,18 anos incompletos. Porém, como trabalharemos com documentos judiciais do século XIX, é interessante informar que o Dicionário de Eduardo de Faria do ano de 1850 definia como adolescência a idade de catorze até vinte e cinco anos (p. 115).

[4] Neste trabalho, seguindo os parâmetros legais, empregaremos, na maior parte do tempo a nomenclatura ‘criança’. Como bem observa Muller (2005), no período colonial, o termo ‘menor’ era usado apenas como sinônimo de idade. Em 1830, com o nascedouro do Código Criminal Imperial, houve determinação expressa de que todo indivíduo menor de 14 anos, sem discernimento sobre atos delituosos, não poderia ser responsabilizado penalmente, e se conhecessem do crime seriam encaminhados às famosas “Casas de Correção”. Então, o termo ‘menor’ firma-se no vocabulário jurídico, e a imprensa passa a usá-lo como sinônimo de criança pobre, desprotegida moral e materialmente. Isso ocorreu devido à imensa quantidade de crianças carentes que perambulavam pelas ruas, algumas praticando pequenos furtos, outras  apenas tentando sobreviver.

[5] Neste sentido, Kaminski diz que em favor das crianças pobres eram apenas destinadas “políticas assistencialistas e compensatórias, desenvolvidas na forma da pura caridade, benevolência e filantropia (2002, p.09).

[6]Criança e adolescente já apareciam como conceitos no dicionário de Eduardo de Faria na metade do século XIX: “Adolescente: (…) pertencente à mocidade, (…) mancebo que está na idade da adolescência ou que ainda vai crescendo” (1850, p. 115). “Criança: (…) menino ou menina de tenra idade (…) (1851, p. 629)

[7]Em alemão, espírito de tempo.

[8] Neste sentido: “Marcavam não só como pena, mas ainda como sinal para mais facilmente serem reconhecidos, já semelhança do que se pratica nos animais!(PERDIGÃO MALHEIRO,1866,p.41).

[9] “Devemos senhores abster-se de castigos excessivos e limitar-se para correcção de seus escravos aos meios aconselhados pela justiça e humanidade”( PAULA PESSOA, 1877, p.51).

[10] Porém, se as sevícias fossem em demasia, o escravo poderia requerer ao senhor a sua venda (PERDIGÃOMALHEIRO,1866, p. 07).

[11] Apena para o crime seria de desterro fora da comarca onde a vítima residia, por até três anos, e a obrigatoriedade do abusador dar-lhe um dote, com a opção de  casamento entre ambos, caso este em que extinguiria o crime.

[12] “Se o estupro for commetido por parente da deflorada em grao que não admita dispensa do casamento. Penas – de degredo por dois a seis anos para a província mais remota da em que residir a deflorada, e de dotar a esta(sic)”(SOUZA,1867,p. 561).

[13]“Art.280. Praticar qualquer ação que na opinião pública seja considerada como evidentemente ofensiva da moral e bons costumes, sendo em lugar público (sic)” (SOUZA, 1867, p.446).

[14] “Art. 197: Matar algum recém-nascido. Penas: de prisão por três a doze anos e de multa correspondente a metade do tempo” (PAULA PESSOA, 1877, p.532).

[15] “Art.198. Se a própria mãe matar o filho recém-nascido para occultar a sua desonra. Penas – de prisão com trabalho por um a três annos” (PAULA PESSOA, 1877, p.533).

[16] Neste sentido, Oscar de Macedo Soares diz que tal conceito diz respeito ao sentido jurídico, “o da consepção do justo e do injusto. (…) Deve o discernimento ser considerado sob o ponto de vista do ato praticado pelo menor e não apreciado sob um ponto de vista geral. (…) A questão do discernimento deve ser resolvida pelo Juri, devendo o juiz formular o quesito: O réu obrou com discernimento? (sic)” (1910, p.74).

[17] Código Criminal do Império – artigo 13: “Se se provar que os menores de quatorze anos que tivererem cometido crimes obraram com discernimento, deverão ser recolhidos ás casas de correcção, pelo tempo que ao Juiz parecer, com tanto qu o recolhimento não exceda a idade de dezesete annos (sic)”(SOUZA, 1867, p.44-45).

[18] A pederastia (relação homossexual entre adulto e adolescente) era relatada nos tratados médicos e jurídicos da época, porém, a preferência de adultos por crianças de ambos os sexos, termo conhecido na atualidade por ‘pedofilia’ foi cunhado por Krafft-Ebing no final do século XIX, denominado pelo médico alemão como “pedofilia erótica”  (KRAFFT-EBING,1886).

[19] Os atos libidinosos ou impúdicos não violentos consistem no abuso de menores para satisfações de desejos sexuais por meio que não seja o coito (…). Em geral, consistem os atos libidinosos em tocamentos, apalpadelas e outras práticas (…) (sic)” (SOARES,1910, p.534-535).

[20] Neste sentido: “O casamento apaga o delicto, restituindo á mulher a posição que occupava na sociedade (VIVEIROS DE CASTRO apud SOARES, 1910 p.561).

[21] Neste sentido temos a obra de Benedict Morel (1809-1863) ‘Tratado de degeneração física,  intelectual e moral da espécie humana e as causas que produzem essas variedades doentias’ de 1857 e a obra de Cesare Lombroso (1835-1909) ‘O Homem Delinquente’ de 1876.

Como citar e referenciar este artigo:
FERREIRA, Emerson Benedito. A criança e o adolescente nos Códigos Criminal Imperial e Penal Republicano do século dezenove. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2021. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/estatuto-da-crianca-e-do-adolescente/a-crianca-e-o-adolescente-nos-codigos-criminal-imperial-e-penal-republicano-do-seculo-dezenove/ Acesso em: 28 mar. 2024