Direito Empresarial

A autorização indireta para constituição de sociedade entre marido e mulher sob o enfoque da nova Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI

Durante a vigência do Código Civil
de 1916, até meados de 1962, várias foram às discussões a respeito da
possibilidade da constituição de uma sociedade comercial, hoje empresária,
entre cônjuges assim entendidos aqueles casados na forma da lei civil pelo
regime da comunhão universal de bens, tendo em vista que várias foram as
decisões pretorianas no sentido de que tal ato jurídico era nulo.

Com o advento da Lei nº 4.121 de
1962[1], também conhecida como o Estatuto da Mulher Casada, novos entendimentos
foram traçados acerca do assunto. Isto porque a doutrina e a jurisprudência
passaram a examinar o tema sob outro enfoque, em razão da disposição contida no
artigo 3º da referida norma legal, ante a limitação da responsabilidade do
cônjuge que não contribuiu para a dívida, estabelecendo que por títulos de
dívidas de qualquer natureza, e que fossem firmadas por apenas um dos cônjuges,
apenas os bens particulares do signatário e os comuns até o limite da meação
responderiam. Vejamos:
Art. 3º Pelos títulos de dívida de qualquer
natureza, firmados por um só dos cônjuges, ainda que casado pelo regime de
comunhão universal, somente responderão os bens particulares do signatário e os
comuns até o limite de sua meação.

O Nobre Jurista Manoel de Queiroz
Pereira Calças
, em referência ao tema, leciona o seguinte:

Após a edição do Estatuto da Mulher
Casada de 1962 e, especialmente, pela repercussão do voto do Ministro Victor
Nunes Leal, anteriormente transcrito, o entendimento da doutrina e da
jurisprudência praticamente se pacificou e passou a admitir a validade da
sociedade limitada constituída apenas por marido e mulher, salvo os casos de
intenção de burlar o regime legal de bens ou nos casos de abuso da
personalidade jurídica e fraude contra credores, pressupostos autorizativos da
aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica[2].

O
entendimento do doutrinador Rubens Requião[3] com relação ao tema não é
diferente, pois leciona no sentido de que, com o advento da Lei 4.121, de 1962,
restou mais patente a possibilidade de o homem e a mulher se associarem para
exercer atividade empresarial sob a forma de sociedade por cotas. Vejamos:

Com
o advento da Lei 4.121, de 1962, cujo artigo 3° determinou que “pelos títulos
de dívida de qualquer natureza firmados por um só dos cônjuges ainda que
casados pelo regime de comunhão universal, somente responderão os bens
particulares do signatário e os comuns até o limite de sua meação”, e com a
emancipação da mulher casada, parece-nos que se tornou possível legalmente o
que antes se nos afigurava impossível: a sociedade limitada entre marido e
mulher.

Tal
fundamento tem como pilar o mencionando voto proferido pelo ministro Victor
Nunes Leal, à época do Supremo Tribunal Federal[4], em julgamento realizado no
dia 28 de novembro do ano de 1968 sobre a validade de ato do fisco que havia
desconsiderado uma sociedade entre cônjuges, versado nos seguintes termos:

No
Brasil, o problema adquiriu um novo aspecto com a Lei n° 4.121, de 27 de agosto
de 1962, diante da qual a existência de patrimônio da mulher ou do marido,
ainda que o regime matrimonial seja de comunhão, depende do exame de cada caso.
Essa lei, embora superveniente ao acórdão recorrido, é muito ilustrativa para o
caso, onde o Tribunal Federal de Recursos decidiu que a sonegação fiscal não
resulta simplesmente da sociedade entre os cônjuges, mas de outras
circunstâncias que o Fisco deve provar.

A
discussão dos efeitos da sociedade entre cônjuges, é claro, não parou, e,
quando eram manejados embargos de terceiro por penhora de bens dos sócios,
grande foi a peleja pelo afastamento da meação da mulher do sócio. O mesmo em
execuções por quantia certa. O argumento contrário sempre foi o benefício que a
mulher casada auferia na formação do seu patrimônio, pela participação
majoritária do marido em muitos casos, e quando de sua efetiva participação no
quadro social, era o ponto de embate.

Com
o advento do Código Civil de 2002, o assunto passou a ser analisado sob outra
ótica, totalmente antagônica ao posicionamento sedimentado pela doutrina e
jurisprudência até então.

Isto
porque o artigo 977 do Código Civil de 2002[5], hoje vigente, pôs fim à
discussão vetando a possibilidade de cônjuges contratarem sociedade entre si, prescrevendo:
“Faculta-se aos cônjuges contratar sociedade, entre si ou com terceiros, desde
que não tenham casado no regime da comunhão universal de bens, ou no da
separação obrigatória.”

Sobre
o tema em questão, vale colacionarmos as lições de Sérgio Campinho[6] aonde
leciona no sentido de que o artigo 977 do Código de Processo Civil é um
verdadeiro retrocesso, que contraria a evolução dos fatos sociais, ante a
vedação da livre contratação de sociedade entre cônjuges, ainda que um terceiro
integre a pessoa jurídica. Vejamos:

A
indagação sobre a possibilidade jurídica de a sociedade ser constituída
exclusivamente pelos cônjuges tem gerado polêmica ao longo do tempo. Havia quem
sustentasse a nulidade da sociedade, quando os cônjuges fossem casados pelo
regime de comunhão universal de bens, sob a assertiva de que, assim
constituída, viria a burlar o regime de bens do casal. Defendemos, ao escrever
sobre a sociedade por quotas de responsabilidade limitada que, após a edição da
lei n° 4.121/62, conhecida como Estatuto da Mulher Casada, a questão
pareceu-nos superada, vez que em seu artigo 3° restou consagrado o patrimônio
separado da esposa e do marido, mesmo que o regime de bens fosse o da comunhão
universal, não havendo, ademais, vedação legal a que se estabelece uma
sociedade por quotas de responsabilidade limitada exclusivamente entre
cônjuges. O tema vinha pacificado, de longo tempo na jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal que afirmou no julgamento do Recurso Extraordinário  n°108.728-5-SP: “Reputa-se lícita a sociedade
entre cônjuges, máxime  após o Estatuto
da Mulher Casada”. No entanto, num verdadeiro retrocesso, contrariando a
evolução dos fatos sociais, o novo Código Civil vem obstar a livre contratação
de sociedade entre cônjuges, ainda que um terceiro integre a pessoa jurídica (artigo
997).

Para
o doutrinador Fábio Ulhoa Coelho[7], o artigo 977 do Código Civil é
inconstitucional, por proibir contratação de sociedade entre pessoas casadas
sob o regime da comunhão universal ou separação total de bens, visto que a
norma constitucional assegura a livre associação para fins lícitos e a
igualdade perante a lei (CF, art. 5º, XVII).

E
mais, a violação à Carta Magna ainda é mais patente ao analisarmos o fato de
que o artigo 977 do Código Civil é atentatório contra os princípios constitucionais
que assegura a livre iniciativa, a liberdade de trabalho e a liberdade de
associação.

Denota-se
de todo o contexto que o legislador não observou todos os aspectos da realidade
social, histórica e as demandas do comando social, pois fontes do direito e a
norma constitucional foram deixados à deriva.

Por
outro bordo, a justificativa da vedação contida no artigo 977 do Código Civil,
segundo a doutrina e a jurisprudência, é que a sociedade constituída entre
cônjuges casados sob o regime de comunhão universal de bens desnaturava o
regime de bens eleito pelo casal, uma vez que o patrimônio de ambos os cônjuges
passaria a integrar o da sociedade. Destarte, nos casos de constituição de
empresas de participação, cujo ativo poderia ser o acevo de bens comuns do
casal, passariam estes a integrar o capital social.

Sendo
assim, uma vez os cônjuges/sócios serem casados pelo regime da comunhão
universal ou da separação legal, os bens, até então em comum do casal, passariam
a ser tratados como se fossem regidos pelo regime da comunhão parcial de bens,
o que, em tese, configuraria alteração do regime de bens.

Sobre o tema, foi aprovado pelo
Centro de Estudos Judiciários – CEJ, do Conselho da Justiça Federal- CJF[8], o
Enunciado de nº 205, que sugere a adoção “[…]
das seguintes interpretações ao Art. 977: (1) a vedação à participação de
cônjuges casados nas condições previstas no artigo refere-se unicamente a uma
mesma sociedade; (2) o artigo abrange tanto a participação originária (na
constituição da sociedade) quanto a derivada, isto é, fica vedado o ingresso de
sócio casado em sociedade de que já participa o outro cônjuge.”

Pois
bem. Apesar de haver várias discussões acerca do tema, e muitos acharem que o
mesmo foi sacramentado com o advento do Código Civil de 2002, por meio do seu
artigo 977, entendemos que agora as discussões voltarão à tona, face à
promulgação da Lei Ordinária Federal nº 12.441, de 12 de julho de 2011[9], a
qual instituiu a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI, isto
é, uma sociedade (pessoa jurídica) unipessoal (com apenas um sócio).

Com
a publicação de referida Lei nº 12.441/2011, foi acrescentado o artigo 980-A ao
Código Civil, com a seguinte redação: “A
empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única
pessoa titular da totalidade do capital social, devidamente integralizado, que
não será inferior a 100 (cem) vezes o maior salário-mínimo vigente no
País.”

Destarte,
após a vigência da Lei nº 12.441/2011, o que se dará em 08 de janeiro de 2012,
qualquer pessoa que detenha capital de mais de 100 (cem) vezes o maior
salário-mínimo vigente no Brasil poderá, individualmente, sem que haja a
participação de terceiros, constituir uma empresa individual de
responsabilidade limitada.

Sendo
assim, apesar da vedação contida no artigo 977 do Código Civil, entendemos que
não haverá qualquer proibição, até que haja uma legislação em contrário, de que
os cônjuges casados sob o regime de comunhão universal/total de bens possam
constituir, individualmente, sua Empresa Individual de Responsabilidade
Limitada – EIRELI, mediante a integralização de parcela do seu acervo
patrimonial, para, após,  tornarem-se
sócios em uma holding familiar
constituída para servir ao planejamento desenvolvido por seus membros,
considerando desafios como organização do patrimônio, administração de bens,
otimização fiscal, sucessão hereditária, etc.

Tal
pensamento tem como fundamento a inexistência de vedação legislativa quanto à
constituição de uma sociedade controlada por outras duas ou mais pessoas
jurídicas, conforme quadro ilustrativo abaixo:

Denota-se
que, com a possibilidade de serem constituídas Empresas Individuais de
Responsabilidade Limitada, muitos planejamentos familiares, até então vetados
pela disposição contida no artigo 977 do Código Civil, poderão ser superados na
hipótese de o casal não querer alterar o seu regime de casamento. Isto porque,
apesar da vedação contida no artigo 977 do Código Civil, o legislador não
conseguiu alcançar os resultados pretendidos, ao menos não o da tentativa de
burla ao regime de bens tendo como instrumento a sociedade, uma vez que, ao constituir
barreiras para tanto, por outro bordo constituiu outro benefício até então
inexistente, qual seja, a possibilidade de os cônjuges mudarem o regime de bens,
até então imutável, conforme disposição contida no parágrafo 2º, do artigo
1639, do Código Civil vigente.

Face
o exposto, conclusivamente entendemos que a vedação contida no artigo 977 do
Código Civil, apesar de já ser relativa em razão da disposição contida no
parágrafo 2º, do artigo 1639, do mesmo diploma legal, agora com a promulgação
da Lei nº 12.441/2011 passará a ser insignificante, face à possibilidade de
novas reorganizações societárias que poderão advir por meio de constituições de
Empresas Individuais de Responsabilidade Limitada por cada cônjuge, mediante,
num primeiro momento, a integralização de parcela do patrimônio comum, para
após serem controladoras de uma holding familiar.

César Soares Magnani
Sócio do escritório Marcos Martins Advogados Associados. Atua em Direito societário e contratual. É especialista em Aspectos Modernos em Direito Contratual, Direito Administrativo e Direito Empresarial
.

Notas de rodapé:

[1] BRASIL. Lei
nº 4.121, de 27 de agosto de 1962
. Dispõe sobre a situação jurídica da
mulher casada. Disponível em:< http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/1962/4121.htm>.
Acesso em: 13 out. 2011.

[2] CALÇAS,
Manoel de Queiroz Pereira. Sociedade
limitada no novo Código Civil
. São Paulo: Atlas, 2003. p. 57.

[3] REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p.
471. 1 v.

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso
Extraordinário. nº 61.582-GB, Brasília, DF, 28 de novembro do ano de 1968. RTJ 48/254.

[5] BRASIL.
Código civil. Lei no 10.406, de 10 de
janeiro de 2002
. Institui o
Código Civil. Disponível:<
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>.
Acesso em: 13 out. 2011.

[6] CAMPINHO, Sérgio. O direito de empresa à luz do novo código
civil
. 10.
ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 63-64.

[7]DINIZ,
Maria Helena. Código civil anotado.
14. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 669.

[8]JORNADAS DE DIREITO CIVIL. Enunciados aprovados na III Jornada de
Direito Civil
. Disponível em:< http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IIIJornada.pdf>.
Acesso em: 13 out. 2011.

[9]BRASIL. Lei nº
12.441, de 11 de julho de 2011.
Altera a Lei nº 10.406,
de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para permitir a constituição de
empresa individual de responsabilidade limitada. Disponível em< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12441.htm>.
Acesso em: 13 out. 2011.

Como citar e referenciar este artigo:
MAGNANI, César Soares. A autorização indireta para constituição de sociedade entre marido e mulher sob o enfoque da nova Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/empresarial/a-autorizacao-indireta-para-constituicao-de-sociedade-entre-marido-e-mulher-sob-o-enfoque-da-nova-empresa-individual-de-responsabilidade-limitada-eireli/ Acesso em: 18 abr. 2024