Direito e Tecnologia

É chegada hora de compartilhar o controle da internet

É chegada hora de compartilhar o controle da internet

 

 

Nehemias Gueiros, Jr.*

 

 

Estamos vivendo os últimos dias do fim da primeira década do advento, em escala global, da Grande Rede de computadores internet. Desdobramento final de projeto militar dos Estados Unidos no limiar da década de 60, aperfeiçoado após o fim da Guerra Fria pelas universidades americanas com seu corolário de cientistas-prodígio e finalmente guindada à posição de menina dos olhos do comércio e das relações sociais globais, a internet pode ser considerada, sem qualquer contestação, o maior fenômeno de comunicação da história da humanidade.

 

Trabalhando com recursos oriundos do Pentágono na década de 60 e parte da de 70, um reduzido grupo de engenheiros e designers criou uma pioneira rede de pesquisa denominada ARPANET (do inglês, Advanced Research Projects Network), algo como “Rede de Pesquisa de Projetos Avançados) constituída por uma grade de softwares que permitia a troca ilimitada de informações entre computadores. Essa rede, mais tarde denominada de Internet, contração de International Network ou “Rede Internacional”, possuía natureza descentralizada e manutenção e administração a cargo dos setores acadêmico e privado.

 

Era mínima a intervenção do governo americano. Como resultado da gradual e explosiva expansão da Internet nas duas décadas seguintes, hoje já começamos a identificar uma batalha política em torno do controle da Grande Rede mundial de computadores.

 

Em novembro de 2005, uma conferência organizada pelas Nações Unidas em Túnis, capital da Tunísia, revelou a primeira grande contestação ao controle americano da Internet, atualmente exercido pelo organismo ICANN (ver descrição adiante), criado e estabelecido em 1998 para organizar o D.N.S. (Domain Name System), ou Sistema de Nomes de Domínio, que designa nomes-de-rede como petrobras.com.br e assegura endereços únicos de e-mail em todo o mundo.

 

A conferência de Túnis, denominada World Summit on the Information Society (WSIS) ou “Conferência Mundial sobre a Sociedade da Informação”, foi a primeira grande contestação coletiva à hegemonia americana sobre a Internet, embora várias pessoas diretamente envolvidas no processo de criação da Grande Rede já tenham manifestado sua preocupação de que essa disputa pelo controle virtual da Web possa acabar fragmentando a própria Rede em si. “Muita gente pensa que o sistema de nomes-de-domínio é o aspecto preponderante da Rede, mas estão enganadas”, afirma Leonard Kleinrock, um cientista da computação baseado na UCLA — Universidade da Califórnia em Los Angeles, que participou ativamente de trabalhos relacionados com códigos de transferência de informações na fase inicial da Rede.

 

É justamente por ser um recurso planetário que o controle da Internet precisa ser internacional. Desde sua criação, há 45 anos, a governança da Grande Rede é exercida pelos Estados Unidos, de início mais por razões históricas, já que foram a nação que desenvolveu a Web, mas nos últimos cinco anos essas razões migraram cada vez mais para os terrenos econômico e militar, que desempenham papel determinante depois dos atentados nova-iorquinos de 11 de setembro de 2001 e da crescente tensão terrorista que assola o mundo.

 

Esse delicado assunto foi o chamado à ordem dos debates levados a cabo na conferência tunisiana, palco de acaloradas discussões — e contestações — sobre a hegemonia cibernética dos Estados Unidos, em geral com inclinação crítica negativa por parte da maioria dos delegados presentes. Atualmente, a entidade americana ICANN — Internet Corporation for Assigned Names and Numbers, algo como “Corporação da Internet para Nomes e Números Designados) é o organismo que detém a autoridade referendada pelo U.S. Department of Commerce para exercer o controle sobre a Internet. Muito poucas pessoas têm conhecimento da existência de um controle sobre a Grande Rede, na medida em que se conectam sem perceber que seja possível a qualquer pessoa ou empresa conscientizar-se de que há um controle. Mas ele existe e é real, fluindo integralmente para o Tio Sam.

 

A ICANN “governa” a Internet através do controle de todos os nomes-de-domínio da Grande Rede e dos endereços de correio eletrônico (e-mail). Apesar das compreensíveis críticas ao eterno controle americano de mais uma ferramenta global de pressão política e econômica sobre o comércio e a comunicação (como já são, entre outros, a WTO — Organização Mundial do Comércio, o GATT — Acordo Geral de Tarifas e Comércio e a WIPO — Organização Mundial da Propriedade Intelectual), a ICANN vem fazendo um trabalho proficiente desde sua implementação e isso confere substancial solidez aos argumentos dos americanos que defendem o controle sobre a Internet. Afinal, foram os Estados Unidos que desenvolveram a Grande Rede, custeando todos os passos tecnológicos de sua implementação há cerca de quatro décadas para que ela pudesse se tornar global e abrangente como é hoje.

 

Entretanto, essas razões são fundamentalmente históricas e não encontram eco em relação ao futuro. A Internet se modifica continuamente, literalmente a cada segundo. Há pouco mais de 10 anos a Rede era praticamente só-americana e totalmente não-comercial. Hoje, seu escopo é absolutamente global, e sua importância econômica é inexoravelmente crescente. A história da Internet tem muito pouca fundamentação no establishment atual da sociedade ou mesmo de seu quadro futuro. Claro que há incertezas com relação à assunção do controle da Web por uma qualquer organização internacional não-americana, mas o fabuloso e exponencial crescimento da Rede coloca em xeque todas as premissas e conjecturas possíveis em se tratando da manutenção do controle por apenas um país do planeta.

 

A movimentação da ONU em avocar para si o controle da internet, apesar de louvável, suscita incertezas, pois conhecemos a grande manipulação que sofre por parte dos americanos, em cujo território, aliás, está sediada (Nova Iorque). É certo que a Grande Rede de computadores é global e seu impacto não pode ser contido ou medido por dimensões territoriais, geográficas, físicas ou pessoais, devido à sua literal onipresença ao redor do globo terrestre. Gostamos de citar uma condição peculiar da internet, que reza: “a Grande Rede mundial de computadores está em todos os lugares e ao mesmo tempo em lugar nenhum”.

 

Um dos mais antigos profissionais envolvidos com o desenvolvimento da Internet, o americano Jon Postel, um misterioso californiano de rabo-de-cavalo e barba profusa, foi conhecido como “uma das coisas mais próximas que a Internet já teve de um deus”. A partir da década de 60, quando a Rede iniciou sua evolução a partir de computadores militares e até sua morte em 1998, Postel liderou o corpo técnico que desenvolveu as estruturas e os códigos e números que permitiram aos computadores comunicarem-se entre si.

 

A filosofia de Postel era bastante simples: “Mantenha os controles governamentais ao mínimo e deixe a Internet evoluir de baixo para cima. Governos, na opinião dele, “são burocráticos e rígidos, enquanto que a internet deveria ser o resultado direto da soma livre e criativa de milhões de usuários de computadores, desde nerds do Vale do Silício até imams do Oriente Médio, passando por vendedores de vinhos franceses e carros de luxo alemães”. Durante três décadas essa premissa deu certo. Hoje, entretanto, os governos do mundo estão acordando para a realidade de que a internet é uma poderosa ferramenta capaz de mudar o comércio e a sociedade. Eles desejam exercer mais controle sobre a Grande Rede.

 

Péssima ideia. Os governos mundiais não entendiam a Internet no início de seu desenvolvimento e continuam a não entendê-la hoje. Jon Postel certamente está se revirando em sua tumba, mas isso não afasta a realidade de que os governos têm, afinal, um papel a desempenhar. A maturidade da Web gerou uma série de novas situações que precisam ser acessadas imediatamente. Invasão de privacidade, pornografia infantil e os cibercrimes são apenas alguns dos nocivos elementos trazidos à tona pela explosão digital da grande rede mundial de computadores nos últimos 10 anos. Sem falar na urgente e inadiável tarefa da inclusão digital, representada pela necessidade de trazer o Terceiro Mundo a bordo da nave online.

 

Mas nenhuma dessas questões tem maior importância do que a pergunta curial do segmento cibernético: Quem deve governar a internet? Uns concordam em que os Estados Unidos, país que a criou e desenvolveu, devam mesmo ser seus únicos controladores, através de instrumento jurídico-econômico como a ICANN, uma entidade sem fins lucrativos sediada na Califórnia, no mesmo prédio onde há muitos anos Jon Postel possuía um escritório.

 

A ICANN é simplesmente uma entidade de coordenação técnica, com uma diretoria internacional composta por membros de vários países. Nos últimos 10 anos, através de um sistema desenvolvido com a ajuda de Postel, a ICANN designou oficialmente nomes-de-domínio e assegurou o funcionamento convencional da infra-estrutura correspondente. É verdade que a ICANN sofre auditoria por parte do Depto. de Comércio americano, mas, segundo fontes informadas, de forma bem branda.

 

Os governos do mundo desejam o controle da Internet por várias razões. Regimes autoritários como a China, o Irã e a Arábia Saudita, temem o poder que a Internet confere ao cidadão comum. A maioria deles não vê com bons olhos o controle dos Estados Unidos sobre a ICANN e a capacidade dos americanos de agir unilateralmente dentro da Rede, monitorando e rastreando informações, bloqueando sites e home pages e até procedendo ao virtual desligamento de uma conexão eletrônica.

 

Já existe um consenso por uma governança internacional e multilateral da Internet em andamento, quem sabe através das Nações Unidas, por exemplo, mas que certamente faria aumentar a burocracia e a indecisão. Basta observar a situação do Iraque ou da maioria das questões em que se envolve a ONU no mundo moderno para chegar a essa conclusão. Boa hora de relembrar o clássico adágio “se não está quebrado, não conserte” para definir o status quo atual da Internet. Até os críticos concordam que o sistema atual funciona bem, portanto, mantê-lo como está seria a decisão mais acertada.

 

De toda sorte, a única verdade imutável é que a Internet chegou para ficar. Malgrado todos os esforços de países totalitários de controlá-la, as tentativas são caras e complexas. Veja-se o exemplo da China, que tentou criar um sistema chamado de The Great Firewall of China, apenas com limitado sucesso, pois a chinesada continua, aos milhões, a acessar a Grande Rede sem qualquer restrição.

 

A Internet mudou radicalmente nos últimos 10 anos. Como já vimos antes, até meados da década de 90, a Web era inteiramente centrada nos Estados Unidos, toda em inglês e basicamente não-comercial. Hoje, é totalmente internacional e sua importância econômica cresce vertiginosamente. A história da Internet tem pouca fundamentação na realidade atual e nas previsões futuras do segmento.

 

Sempre correremos o risco de experimentar uma super-burocratização a médio prazo se um corpo internacional assumir o controle da Rede e essa assertiva não é somente baseada em romances e filmes de ficção científica. Basta verificar o funcionamento atual do sistema. Recentemente, eu mesmo decidi registrar um novo nome-de-domínio. Em cerca de 15 minutos verifiquei a disponibilidade do nome pretendido e adquiri-o por US$ 20.00, online. Simples e eficiente. Se o controle da Grande Rede mudar de mãos será que eu teria essa facilidade? Trata-se de uma pergunta que paira no ar, mas mesmo mantendo-se o controle americano o perigo é real devido ao vertiginoso crescimento da Internet.

 

Alguns especialistas vêm alertando para o perigo de um “colapso” da Grande Rede. Alegam que existe um “teto”, uma espécie de capacidade máxima da Internet de abrigar sítios, home pages, blogs e demais informações, que, se ultrapassado, levaria a um travamento colossal de todo o sistema. Até hoje os congelamentos mais sérios de que se tem notícia somente ocorreram em função da disseminação de vírus pela Rede. O argumento contrário e otimista ao colapso — inteiramente admitido pelo signatário — está diretamente baseado no célere desenvolvimento da capacidade dos microprocessadores (Lei de Moore) e na contínua entrada na Rede de novos provedores de acesso e, por conseguinte, de novos computadores de todos os tipos (mainframes, backbones, routers, PCs etc.) redistribuindo exponencialmente a capacidade de processamento das informações online. Ainda não existe uma certeza com relação a essa questão, mas certamente ainda estamos distantes de um problema dessas proporções, pois a tecnologia sempre vencerá.

 

Por mais que os Estados Unidos insistam em manter o controle da Web em função de todas as razões aqui já mencionadas, o caráter global da Rede em termos de impacto e fruição de informações está lentamente minando essa capacidade de governança por força dos desígnios do comércio global, que, afinal, também abastece os americanos de dinheiro. Insistir nesse controle unilateral seria o equivalente aos americanos determinarem que todas as transações comerciais do planeta fossem feitas unicamente em dólar ou a invocar soberania territorial sobre o planeta Marte: um absurdo.

 

Aos americanos cabe uma responsabilidade crucial neste momento, que é o de manter uma liderança geral sobre a internet, sem engessar sua fabulosa capacidade de expansão e amadurecimento em todos os níveis, especialmente os políticos e econômicos. Há menos de 10 anos era raro encontrar informações na Internet em outro idioma que não o inglês. A proporção era de cerca de 98%. Hoje, no primeiro qüinqüênio do novo século, esse número já caiu para 70% e caminhamos para a adoção, pacífica e segura, da chamada Super Rodovia da Informação (Information Super Highway), preconizada por Bill Gates há uma década em seu livro The Road Ahead, lançado no Brasil sob o título “A Estrada do Futuro”.

 

Segundo sua concepção — que cada vez mais se aproxima da realidade e já teve vários de seus aspectos materializados, como, por exemplo, o video-on-demand — a Internet pioneira, romântica e anárquica, conviverá pacificamente no futuro próximo, com pelo menos mais uma ou duas redes globais de computadores, das quais a rede acadêmica universitária americana já é uma realidade. Com uma velocidade cerca de 40 vezes superior do que a Internet atual e acessível somente por instituições de ensino, a Internet 2, como já foi batizada, destina-se primordialmente à comunidade científica e docente. Não será surpresa se pelo menos outras duas redes globais de computadores forem implementadas nos próximos anos, uma somente para o comércio e outra para os militares levarem a cabo seus jogos de guerra virtuais, em que destroem a Terra milhares de vezes por dia, na ânsia de continuarem a dominar o cenário global através de mortíferos equipamentos bélicos.

 

Ao mesmo tempo em que simultaneamente desencadeia encanto, veneração e ódio, a Internet, com sua romântica anarquia, provou ser uma poderosa ferramenta contra qualquer repressão estatal. Nesta era de concentração da mídia em que vivemos, a Grande Rede de computadores contribui cada vez mais para a democratização da disseminação de informações mundo afora. Anula literalmente esforços totalitários para monopolizar as ondas hertzianas e torna praticamente impossível a tentativa de materializar o controle total de George Orwell em seu sombrio romance “1984” (escrito em 1948), mesmo nos países mais hermeticamente fechados.

A questão mais premente envolvendo a Internet é o considerável patrimônio criado pela Rede, que gera conflitos permanentes. Prova disso foi a explosão da chamada Internet Bubble ou “Bolha da Internet” que, entre os anos de 1999 e 2001 elevou à categoria de bilionárias diversas pessoas físicas e jurídicas que souberam identificar oportunidades de negócios no novíssimo comércio online. Entretanto, como todo Eldorado, seus dias estavam contados. As regras do mundo físico rapidamente comprovaram sua eficácia sobre o incipiente mundo virtual, consagrando a realidade de que negócios serão sempre negócios, independente do caminho escolhido para consumá-los.

 

Enquanto assistimos às tentativas dos Estados Unidos de manter o controle unilateral de uma tecnologia que, afinal, foi criada por eles e vem funcionando da melhor forma possível, temos que estar atentos às eventuais invasões de privacidade e ataques à soberania dos países que esse controle possa desencadear, pois a Web vai crescendo como uma Medusa, estendendo seus tentáculos em todas as direções e fazendo tábula rasa de todos os esforços de regulamentação até aqui empreendidos.

 

Nada temos a reclamar da governança da Internet tal como é exercida neste particular momento sócio-político-econômico da sociedade mundial. Apenas professamos os nossos ideais de que países como o Brasil, com fantásticos números de crescimento estrutural e econômico na Grande Rede mundial de computadores, tenham o direito e a oportunidade de participar, com voz mais ativa, de todos e quaisquer fóruns que discorram sobre o “Controle da Internet” e possam, em um breve futuro, participar conjuntamente com outras nações, do adequado e democrático controle dessa fabulosa e inigualável ferramenta de comunicação.

 

Rio de Janeiro, 22 de maio de 2009

 

 

* Nehemias Gueiros, Jr. é advogado especializado em Direito Autoral, Show Business e Direito da Internet, professor da Fundação Getúlio Vargas-RJ e FGV-SP e da Escola Superior de Advocacia – ESA-OAB/RJ e ESA-OAB/SP, consultor de Direito Autoral do ConJur, membro da Ordem dos Advogados dos Estados Unidos e da Federação Interamericana dos Advogados em Washington D.C. e sócio do escritório Duarte, Carvalho Neto, Gueiros & Prisco Paraizo Advogados no Rio de Janeiro

 

Como citar e referenciar este artigo:
JR., Nehemias Gueiros,. É chegada hora de compartilhar o controle da internet. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-e-tecnologia/e-chegada-hora-de-compartilhar-o-controle-da-internet/ Acesso em: 28 mar. 2024