Direito Tributário

A complexidade do sistema tributário brasileiro

A complexidade do sistema tributário brasileiro[1]

 

Artur Alves da Motta[2]

 

 

1. Introdução

 

A situação do advogado é curiosa: ele vive para buscar o justo e corrigir injustiças. No entanto, a despeito disso, a verdade é que ele vive dessas injustiças pois num mundo melhor e mais perfeito sua atuação seria desnecessária (já que inexistiriam problemas a resolver). Em suma: a existência dos advogados — e também dos promotores e juízes — deriva das injustiças que existem nesse mundo.

 

E injustiças não faltam na área fiscal, da mais variada natureza. E fique bem claro que injustiças e deslealdades existem de parte a parte. Não há santos nessa história. Se a tributação por parte do poder público é iníqua também é verdade que muitos contribuintes também o são pois vivem de ardis e meios para burlarem o Fisco.

 

Das injustiças mais conhecidas, como a da carga tributária e da sua desproporção em face da capacidade contributiva, deixarei de falar: o tema é por demais batido e freqüentemente torna a aparecer nos meios de comunicação. O discurso contra a carga tributária é tão corriqueiro que já perdeu o impacto da novidade. Há um consenso na sociedade de que ela é muito elevada e só não se convenceram os que podem fazer algo para aliviá-la. Pretendo discutir outro tema, correlato a esse, tão ou mais injusto e que no mais das vezes é esquecido: o da complexidade do sistema tributário brasileiro.

 

 

2. Da fonte e da origem da complexidade

 

Sendo a fonte do nosso sistema jurídico a Constituição, naturalmente é nela que devemos procurar a origem e a causa da complexidade.

 

Esse sistema tributário intrincado deriva, num primeiro momento, da nossa forma federativa especial, com 3 espécies de pessoas federadas[3]. É o nosso conhecido arranjo institucional com uma Federação de 3 níveis.

 

Tendo cada uma dessas pessoas federadas poder para tributar, é preciso que o texto constitucional discipline e isole a competência de cada uma delas para não dar margem a uma competição que levaria à destruição do sistema federativo.

 

Isso foi feito, mas ainda assim não se eliminou a guerra fiscal – o que é outra injustiça da qual não se tratará aqui pois é suficientemente estudada e debatida.

 

Mas voltemos à Federação de 3 níveis: cada uma das pessoas legisla para fazer valer a sua competência constitucional no sentido de instituir e arrecadar tributos. Assim, de uma só vez o contribuinte está submetido a 3 ordens de legislação, fiscalização e deveres. Aí está um primeiro embrião de complexidade.

 

Além disso, não contente com estabelecer competências, o texto constitucional ainda detalhou o mecanismo de atuação de algumas espécies tributárias (que já não são poucas[4]) com minúcias. Cito o caso do principal imposto de uma das entidades federadas, o ICMS. Já repararam quantos dispositivos constitucionais tratam dele?

 

Isso mostra que a compreensão do principal imposto dos estados depende, em princípio, da compreensão dessas múltiplas regras. Mas a coisa não fica só aí.

 

A Constituição ainda criou, entre as várias espécies legislativas, duas ordens de leis que freqüentemente se chocam na área tributária: a lei ordinária e a lei complementar. Quis a Constituição estabelecer parâmetros para a lei complementar, deixando a cargo da lei ordinária o restante.

 

Mas a verdade é que na prática essas limitações não se mostram com toda a clareza necessária. Até que ponto a lei complementar e a ordinária podem ir: o trato de matéria de lei ordinária por lei complementar torna o tratamento do tema inconstitucional? Deve esse tipo de lei complementar ser tomada por materialmente ordinária?

 

Felizmente o Supremo já decidiu sobre as perguntas anteriores[5], mas quanto tempo foi necessário para se chegar a uma conclusão? E mais quanto tempo vai se perder até que se saiba, da solução para os casos em que a lei complementar foi lacônica e a lei ordinária integrou o sentido de seus institutos? Será que o STF vai aplicar ao campo tributário o mesmo raciocínio que a doutrina aplica às chamadas normas penais em branco?

 

Não se sabe. Até lá, como conseqüência da decisão que há de vir, muitos terão pago tributos indevidamente e outros terão deixado de recolher o valor correto aos cofres públicos. E quando sair a decisão final, será o Fisco ágil o suficiente para ser justo, isto é, ressarcir os que pagaram mais que o devido e cobrar tempestivamente daqueles que deixaram de pagar o valor devido?

 

Para finalizar esse item quanto ao aspecto constitucional, cabe ainda referir que a Constituição instituiu tributos na modalidade não-cumulativa. O que isto significa? Significa que o acertamento do valor do tributo devido pressupõe um cálculo complexo em que se cobra o valor do tributo sobre toda operação (comercial ou industrial) mas se admitem hipóteses e condições de dedução de parte do valor.

 

A idéia até não seria ruim e aparentemente é boa. Ocorre que há tanta disputa quanto à forma de cálculo, de como deva ser entendido esse princípio da não-cumulatividade e são tantas e tão complexas as operações mercantis a considerar que: a) o contribuinte nunca tem certeza a respeito de qual o valor efetivamente devido; b) há grande dúvida sobre o efetivo alcance das hipóteses de dedução e abatimento; c) o órgão fiscalizador não tem tempo nem pessoal para verificação ágil desses cálculos.

 

Essas são, em linhas gerais, alguns dos problemas que a Constituição trouxe ao formatar o atual sistema tributário nacional.

 

 

3. Da complexidade no plano legislativo

 

Aqui a dificuldade que começou com o texto constitucional ganha corpo e evoluiu ainda de forma mais intensa.

 

As três esferas de pessoas federadas legislam em profusão, com um nível de detalhamento espantoso e com uma falta de sistematização que chamam a atenção. Não há grande preocupação m evitar disposições dúbias ou contraditórias.

 

Não há ano em que não seja criado um pacote de inovações legislativas, acrescentando ou detalhando obrigações tributárias principais ou mesmo dispondo sobre novas obrigações tributárias acessórias no interesse da fiscalização. Ou seja, a atividade legislativa em matéria tributária está em constante expansão.

 

Essa legislação, que é cada vez mais detalhista e pormenorizada, embora acredite com isto eliminar os problemas, na verdade os aumenta. A cada inovação normativa ou nova redação legislativa surgem inúmeras dúvidas quanto à operacionalidade das disposições e mesmo quanto ao alcance dos dispositivos.

 

Quanta gente não passa um tempo enorme estudando essas leis, quer para cumpri-las, quer para aplicá-las ou mesmo para burlá-las? Quanto desse tempo poderia ser empregado em atividades mais úteis e proveitosas do que apenas estudar minuciosamente o intricado mecanismo estatal utilizado para a manutenção do poder público?

 

Será que nossos governantes não percebem a improdutividade que isto gera, com a alocação de cérebros privilegiados numa atividade que deveria ser corriqueira? Quantas dessas pessoas não poderiam desempenhar outras funções mais produtivas e que gerassem maior desenvolvimento sócio-econômico ou benefícios sociais mais amplos?

 

E os membros dos parlamentos? São tão ou mais culpados pelo descalabro pois é por eles que passa a produção normativa. No lugar de proporem melhoras, com apelo à simplificação, racionalização e revisão sistêmica da legislação tributária, o que se vê é a manutenção e a gradativa piora do quadro normativo.

 

Só o trabalho de revisar e sistematizar periodicamente a legislação extravagante já seria meritório. Por que não se criam comissões parlamentares permanentes com essa missão, inclusive abrangendo outros campos do direito? Se existem comissões de constituição e justiça, bem como de orçamento, por que não encarregar um grupo de legisladores de revisar e reunir de forma mais racional e sistemática a legislação que vai sendo produzida ao longo dos anos? Seriam os próprios parlamentares a defenderem o seu trabalho de legisladores.

 

E também porque a legislação tributária dos estados e municípios não é toda e completamente disponível de forma gratuita? Como podem ser as normas cumpridas se é cada vez mais difícil ao cidadão médio, ao empresário, aos contadores e até aos fiscais de tributos – sem falar nos advogados, procuradores e juízes – estarem constantemente atualizados tamanha a profusão legislativa? E pior, ainda, quando os cidadãos devem pagar a instituições para conhecerem os seus direitos e deveres fiscais. Será isto compatível com os princípios constitucionais da moralidade e eficiência da Administração Pública?

 

A verdade é que o modelo vigente não guarda o menor respeito aos princípios da eficiência, segurança jurídica e racionalidade. Isso sem falar nas mudanças constantes na sistemática de apuração e recolhimento de tributos que parece até fazer dos tributos mais antigos uma novidade a ser assimilada.

 

Será que existe algum paralelo, no mundo desenvolvido ou em desenvolvimento, capaz de rivalizar com o volume e a quantidade de leis fiscais que nosso país possui? Não existirá nessa crescente complexidade do sistema tributário uma injustiça, por impedir que o homem comum (homem médio) conheça a grosso modo seus direitos e deveres em relação ao Poder Público?

 

 

4. Da complexidade no plano jurisdicional

 

Todos esses problemas narrados anteriormente irão desaguar no Judiciário, dado que esse tem a missão constitucional de dar a última palavra e eliminar os conflitos de interesses.

 

Desse pormenorizado tratamento das hipóteses de incidência dos tributos, da quantidade de leis esparsas e do número exagerado de seus dispositivos – artigos, parágrafos, incisos e alíneas – irão nascer milhões de ações judiciais.

 

Provavelmente não existe país no mundo com tamanho volume de causas fiscais e tributárias. Eu desconheço as estatísticas mas arrisco a dizer que o número de processos dessa ordem seja pelo menos 30% do volume total dos processos judiciais. Como não julgariam melhor os juízes se tivessem menos questões a reclamarem suas sentenças? Teriam eles inclusive mais tempo para meditar e estudar soluções mais justas.

 

Todavia, a coisa não fica só aí. Da combinação entre a constitucionalização profunda de nosso sistema tributário com a variedade de instâncias e recursos que nosso sistema processual permite, o que se tem – além do imenso volume de processos fiscais – são  demandas que se arrastam por longos anos até que se tenha um mínimo de certeza sobre quem tem ou deva ter a razão.

 

Nesse caso, perdem Fisco e contribuinte, a sociedade como um todo. O custo da incerteza é muito alto. Quantos investimentos privados, quantas políticas públicas não ficam prejudicadas e tornam-se reféns da demora na solução desses processos judiciais?

 

Será que a tão decantada estabilidade econômica não soube produzir a necessária estabilidade ou segurança jurídica? O Brasil que conquistou o grau de investimento pela boa condução da política econômica seria capaz de conseguir o mesmo com relação a seu sistema jurídico (aí compreendido o arcabouço legislativo e a prática jurisdicional)? Sejamos sinceros: certamente que não!

 

Não falarei das decisões contraditórias, das erradas ou das contrárias aos ditames legais: são de todos conhecidas. E as decisões dos Tribunais Superiores que ainda permitem um grande número de ações rescisórias – principalmente depois de pacificadas e solucionadas as controvérsias jurídico-tributárias no plano constitucional?

 

Esse é o mundo que vivenciamos na prática. Isso sem falar na discutida compreensão das minúcias operacionais, bem como dos limites e prazo para ressarcimento de créditos fiscais (créditos dos contribuintes perante o Fisco) em decorrência de um sistema de tributos não-cumulativos.

 

 

5. Algumas propostas visando uma solução

 

De nada adiantaria narrar apenas problemas e alertar os colegas de seus malefícios se não fosse possível pensar em algumas soluções. Portanto, seguem algumas:

 

Para a complexidade no plano constitucional: uma revisão da parte da tributação, com mais ênfase nas competências e clareza do papel da lei complementar e ordinária. Da mesma forma, retirar do texto constitucional e determinar que a lei complementar trate de um maior detalhamento da sistemática e dos princípios tributários.

 

Isto seria uma desconstitucionalização do detalhamento do sistema tributário, diminuindo as chances de conflitos tributários pela mera referência a princípios gravados na Constituição. O texto constitucional deve ser simples, ágil e conciso, para que não precise ser constantemente mudado, e permita que tanto a sua interpretação quanto a legislação tributária possam evoluir com o tempo.

 

Para a complexidade no plano legislativo: seria recomendável consolidar a legislação tributária em poucos corpos legislativos, todos eles sistematizados, simples e com fácil divulgação, bem como a consulta gratuita e integral de seus textos na internet.

 

Não seria desejável ter Códigos Tributários Municipais, Estaduais e até um Federal com um número razoável de artigos e com um rol exaustivo dos tributos, seus limites, sistemática de arrecadação e fiscalização?

 

Instituir comissões permanentes nos órgãos legislativos buscando a revisão sistêmica da legislação tributária, para que ela fique mais próxima desse ideal de simplicidade e racionalidade, velando para que as modificações que eventualmente se fizessem necessárias não desvirtuassem o sistema nem impedissem o seu aprimoramento.

 

Criar um sistema tributário apenas com tributos cumulativos, com alíquotas baixas e sistemática simples, reduzindo a margem de incerteza e diluindo o peso da carga tributária de forma igual por toda a sociedade, respeitando sempre o princípio da capacidade contributiva.

 

Para a complexidade no plano jurisdicional: o sistema jurisdicional será o mais beneficiado pelas alterações anteriores, ao lado de toda a sociedade, mas nem por isso será possível deixar de fazer outras críticas construtivas.

 

Talvez a mudança mais necessária seja aquela a ser feita na sistemática recursal dos tribunais superiores. O STF é notoriamente um tribunal mais lento e congestionado porque para ele convergem todas as questões constitucionais. Isso atrasa e muito a solução definitiva dos problemas jurídicos, sem mencionar o fato que ainda dá margem a inúmeras ações rescisórias com base no novo paradigma constitucional que ele venha a formar. É que, sabidamente, a admissibilidade de ações rescisórias contra sentenças que desafiem o entendimento constitucional do STF é facilitada.

 

Assim, reservando-se o STF exclusivamente para o controle concentrado de constitucionalidade, isto é, deixando ele de ser uma instância recursal (o que terá reflexos proveitosos também noutras áreas do direito, como o penal e o trabalhista, por exemplo), o sistema jurisdicional ganhará em agilidade e terá a eliminação das controvérsias de forma mais rápida. Ao Supremo ficará reservado o papel de tribunal constitucional, para resguardo constitucional e incremento da segurança jurídica.

 

Além do mais, o STJ é notório pela maior celeridade e capacidade de responder às demandas e às soluções dos casos concretos, até pelo número de membros que o compõem. Particularmente, no que tange à matéria tributária, quase sempre as decisões das instâncias intermediárias, que se dirigem ao Superior, no mais das vezes envolvem uma temática constitucional conjuntamente com a necessidade de interpretação legal.

 

Portanto, encaminhando a solução dessas questões de uma só vez, na apreciação do recurso especial, ficaria eliminada a chance de uma quarta instância e o Superior Tribunal de Justiça se tornaria realmente o grande tribunal superior ou o tribunal da cidadania como se autodenomina. Tudo isso por si só já seria benéfico e de quebra, simplificaria a compreensão e os requisitos de admissibilidade do recurso especial, ao mesmo tempo em que se resguardaria o Supremo para as grandes discussões abstratas, aquelas que não se restringissem à solução de casos concretos.        

 



[1] Texto produzido a partir de palestra proferida na Escola da OAB/RS em 23/9/2008.

[2] Procurador da Fazenda Nacional. Especialista em Direito Tributário e Mestre em Direito do Estado/UFRGS.

[3] Equiparo o Distrito Federal aos Estados.

[4] Temos impostos, taxas, contribuições de melhoria, empréstimos compulsórios e contribuições sociais (de intervenção no domínio econômico, de financiamento à seguridade social, etc.).

[5] RE 419.629-DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 30/6/2006, por exemplo.

Como citar e referenciar este artigo:
MOTTA, Artur Alves da. A complexidade do sistema tributário brasileiro. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/a-complexidade-do-sistema-tributario-brasileiro/ Acesso em: 16 abr. 2024