Direito Tributário

O abuso do Estado na fixação da base de cálculo do COFINS. As confusões terminológicas dos termos “faturamento” e “receita”

O abuso do Estado na fixação da base de cálculo do COFINS. As confusões terminológicas dos termos “faturamento” e “receita”

 

 

João Fernando Vieira da Silva *

 

Mariana Mázala Cabral **

 

 

                1. A famigerada Lei 9718/98, no artigo 3º, ao dispor sobre a base de cálculo do COFINS, estipulou o seguinte:

 

                ” O faturamento a que se refere o artigo anterior corresponde à receita bruta da pessoa jurídica.A opção de escrita no presente texto é da exposição de todo a ordem de raciocínios em tópicos. Isto é proposital, posto tentarmos criar uma linha de silogismos mais verossímel que mostre o quão a tese aqui defendida é crível. Insta também salientar que o presente texto tem como inspiração, inclusive em diversas escolhas bibliográficas, o voto do Ministro Cezar Peluso em discussões sobre a matéria no Supremo Tribunal Federal

 

                §1.- Entende-se por receita bruta a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, sendo irrelevantes o tipo de atividade por ela exercida e a classificação contábil adotada para tais receitas.

 

                2. A grande mácula do dispositivo em comento reside justamente no trecho acima grifado. Com efeito, há abominável e desproporcional alargamento da base de cálculo, uma vez que a classificação contábil das receitas, a despeito do firmado nesta lei, tem, sim, influência na fixação da base de cálculo. Conforme será melhor desenvolvido adiante, receita e faturamento são institutos que, não obstante terem semelhanças de família, possuem nuances próprias e não devem ser confundidos. Considerar faturamento como o mesmo que receita é fazer menoscabo de toda a razoabilidade que deve orientar o sistema tributário pátrio.

 

                3. A base de cálculo deve ser aferida com muita cautela na fixação de um tributo. Ela guarda uma correlação lógica com o fato gerador, formando com este uma verdadeira unidade sistêmica. O fato gerador obtuso influi decisivamente na base de cálculo, viciando drasticamente esta.

 

                4. Para entender melhor base de cálculo, nos socorremos das inestimáveis lições de Paulo de Barros Carvalho:

 

                ” A base de cálculo, sabe-se, é a grandeza instituída na conseqüência da regra-matriz tributária, e que se destina, primordialmente a dimensionar a intensidade do comportamento inserto no núcleo do fato jurídico, para que, combinando-se à alíquota, seja determinado o valor da prestação pecuniária. Paralelamente tem a virtude de confirmar, infirmar ou afirmar o critério material expresso na composição do suposto normativo. A versatilidade categorial deste instrumento jurídico se apresenta em três funções distintas: a) medir as proporções reais do fato; b) compor a específica determinação da dívida; c) confirmar, infirmar ou afirmar o verdadeiro critério material da descrição contida no antecedente da norma. [01]

 

                5. A base de cálculo é tão importante que, caso exista conflito entre esta e o fato gerador, prevalece a base de cálculo como fator de identidade do tributo. Com efeito, um tributo incide sobre rendimentos constitucionalmente tributáveis, não sobre fatos e valores aleatórios escolhidos ao gosto financista da Fazenda Pública.

 

                6. A base de cálculo bem controlada evita incidências extorsivas sobre o capital privado. A livre iniciativa e a autonomia privada não foram extirpadas da ordem constitucional pátria.

 

                7. Ainda no estudo de base de cálculo, mister usar a moderação e explicitar aspectos de Hermenêutica que não podem ser sonegados em uma análise acurada da matéria.

 

                A Constituição Federal não desce a minúcias a ponto de lançar um conceito estanque para o que seja efetivamente “faturamento”. Não é tarefa da Constituição tal fixação, cabendo ao legislador infraconstitucional, observado os parâmetros constitucionais, impor o que é, de verdade, “faturamento”.

 

                O hodierno estudo da Hermenêutica também requer obtemperações sobre Semiologia e Semiótica. O estudo dos signos lingüísticos é um passo decisivo para descortinar os autênticos sentidos de terminologias jurídicas.

 

                8. Assim sendo, recorremos às lições de Ferdinand Saussure, para o qual “ninguém pode duvidar que o signo lingüístico não decorre da natureza do objeto, mas é estipulado arbitrariamente pelos usuários da linguagem, mediante consenso construído ao longo da história”. [02]

 

                9. Por mais que o uso da linguagem não nasça de naturalismos, mas sim de uma convenção, também não é razoável que a fixação arbitrária de sentidos para termos lingüísticos altere, de forma irresponsável, os padrões de comunicação socialmente estipulados. A comunidade dialógica não pode ser surpreendida com as ações estratégicas de oportunistas. A busca de novos sentidos a termos jurídicos não pode ser leonina para os contribuintes e favorável só ao Fisco. A Fazenda Pública não pode, a seu bel prazer, mudar o sentido de “faturamento” e aumentar sua arrecadação com artificialismos que constituem verdadeiros absurdos à luz da Lógica.

 

                10. Neste sentido, ensinou Humberto Eco que “o intérprete não está autorizado a dizer que a mensagem pode significar qualquer coisa. Pode significar muitas coisas, mas há sentidos que seria despropositado sugerir”. [03]

 

                11. Carlos Maximiliano, um clássico em Hermenêutica, traz para o tema a seguinte colaboração:

 

                “Cumpre evitar não só o demasiado apego à letra dos dispositivos, como também o excesso contrário, o de forçar a exegese e deste modo encaixar na regra escrita, graças à fantasia do hermeneuta, as teses pelas quais se apaixonou, de sorte que vislumbra no texto idéias apenas existentes no próprio cérebro, ou no sentir individual, desvairado por ojerizas e pendores, entusiasmos e preconceitos” [04]

 

                12.Vamos imaginar um jogo de futebol. É axiomático, mesmo para um leigo no esporte, que sai vencedor aquele que faz mais gols. Imagine-se, portanto, a idiossincrasia detestável que seria se, de uma hora para outra, fosse baixada uma norma tresloucada que dissesse que o ganhador é justamente aquele que sofreu mais gols? Pode parecer estranho, mas a metáfora futebolística aqui lançada é para expor o quão revela-se aterrador a Fazenda Pública alterar o sentido do termo “faturamento” e mudar a base de cálculo segundo seus espúrios interesses, trazendo pânico e inquietude na comunidade de contribuintes. Se já existe um sentido usual e prático para um termo que não suscita dúvidas, qual a razão de modificar acordos linguísticos que não causam ruídos de linguagem e se prestam habilmente a garantir conversações harmônicas entre os utentes da linguagem jurídica?

 

                13. Nesta esteira, acompanhe-se voto do Ministro Luiz Galotti no RE nº 71.758:

 

                “Sr. Presidente, é certo que podemos interpretar a lei, de modo a arredar a inconstitucionalidade. Mas, interpretar interpretando e, não, mudando-lhe o texto, e, menos ainda, criando um imposto novo, que a lei não criou.

 

                Como sustentei muitas vezes, ainda no Rio, se a lei pudesse chamar de compra o que não é compra, de importação o que não é importação, de exportação o que não é exportação, de renda o que não é renda, ruiria todo o sistema constitucional tributário inscrito na Constituição.” [05]

 

                14. Explicações propedêuticas sobre postulados básicos das artes interpretativas aplicados ao Direito são vitais para, agora sim, adentrarmos naquilo que realmente é “faturamento”, e, assim sendo, evidenciarmos aonde reside o equívoco da Lei 9718/98.

 

                15. A Lei das Sociedades por Ações (Lei nº 6.404/1976) preceitua que a escrituração da companhia “será mantida em registros permanentes, com obediência aos preceitos da legislação comercial e desta Lei e aos princípios de contabilidade geralmente aceitos” (art. 177), e, na disposição anterior, recorre à ciência contábil os termos com que regula a elaboração das demonstrações financeiras, verbis:

 

                “Art. 176. Ao fim de cada exercício social, a diretoria fará elaborar com base na escrituração mercantil da companhia, as seguintes demonstrações financeiras, que deverão exprimir com clareza a situação do patrimônio da companhia e as mutações ocorridas no exercício:

 

                I – balanço patrimonial;

 

                II – demonstração dos lucros ou prejuízos acumulados;

 

                III – demonstração do resultado do exercício; e

 

                IV – demonstração das origens e aplicações de recursos.”

 

                16. A expressão “receita” se apresenta na seção relativa às “demonstrações do resultado do exercício”, matéria que é tratada pelo art. 187 da Lei da Sociedade Anônima da seguinte forma:

 

                “Art. 187. A demonstração do resultado do exercício discriminará:

 

                I – a receita bruta das vendas e serviços, as deduções das vendas, os abatimentos e os impostos;

 

                II – a receita líquida das vendas e serviços, o custo das mercadorias e serviços vendidos e o lucro bruto;

 

                III- as despesas com vendas, as despesas financeiras, deduzidas das receitas as despesas gerais e administrativas, e outras despesas operacionais;

 

                IV – o lucro ou prejuízo operacional, as receitas e despesas não operacionais;

 

                V – o resultado do exercício antes do Imposto de Renda e a provisão para o imposto;

 

                VI – as participações de debêntures, empregados, administradores e partes beneficiárias, e as contribuições para instituições ou fundos de assistência ou previdência de empregados;

 

                VII – o lucro ou prejuízo líquido do exercício e o seu montante por ação do capital social.

 

                § 1º. Na determinação do resultado do exercício serão computados:

 

                a)as receitas e os rendimentos ganhos no período, independentemente da sua realização em moeda; (…)”

 

                17. Extrai-se de singela leitura destes postulados que o termo “receita” é um gênero, com amplitude muito maior do que a idéia de “faturamento”. Todo valor percebido, a qualquer título, é “receita”. Contudo, há receitas operacionais e não operacionais, ou seja, o gênero receita tem várias delas e uma delas é justamente o faturamento. Logo, nada é adequado o texto do art. 3º da Lei 9718/98 quando trata apenas mais uma das espécies de receita, com classificação contábil restrita, como um instituto aberto e que abarque vários grupos de rendas. Embora todo faturamento seja receita, nem toda receita é faturamento. Soa completamente errado tomar uma espécie como gênero e identificar faturamento como a soma de todas as receitas.

 

                18. A não confusão entre os termos “faturamento” e “receita” não é explicitada apenas por um inteligível jogo lingüístico. Há julgados no Supremo Tribunal Federal que deixam bem claro esta distinção. Para tanto, colacionamos ao presente trabalho trecho de voto do Ministro Ilmar Galvão no RE nº 150764:

 

                “(…) a contribuição do art. 239 satisfaz a previsão do art. 195, I, no que toca à contribuição calculada sobre o faturamento. De outra parte, o D.L. 2.397/87, que alterou o DL 1.940/82, em seu art. 22, já havia conceituado a receita bruta do art. 1º, § 1º, do mencionado diploma legal como a ‘receita bruta das vendas de mercadorias e de mercadorias e serviços’, conceito esse que coincide com o de faturamento, que, para efeitos fiscais, sempre entendido como o produto de todas as vendas, e não apenas das vendas acompanhadas de fatura, formalidade exigida tão-somente nas vendas mercantis a prazo (art. 1º da Lei nº 187/36). A Lei nº 7.689/88, pois, ao converter em contribuição social, para os fins do art. 195, I, da Constituição, o FINSOCIAL, até então calculado sobre a receita bruta das vendas de mercadorias e de mercadorias e serviços, nada mais fez do que instituir contribuição social sobre o faturamento.”

 

                19. Ora, faturamento é o produto de todas as vendas de uma pessoa jurídica (abarcando não as apenas acompanhadas de fatura), com objeto específico e de amplitude bem menor do que o vasto elenco do art. 187 da Lei de Sociedades Anônimas, justamente o denotativo de “receita”.

 

                20. Simbólico nesta exposição é o resumido, porém firme apontamento do Ministro do Supremo Tribunal Federal Sepúlveda Pertence: “faturamento é menos que receita bruta”. [06]

 

                21. Outros aspectos atrelados à competência legal para os contornos do caso em tela devem ser destacados. Para tanto, destaque-se o diz o art. 110 do Código Tributário Inicial:

 

                “Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.”

 

                22. A supremacia da Constituição Federal deve se impor mais do que um grito de guerra de cartilhas acadêmicas. A Constituição conforma toda a legislação a ela subalterna e não podemos nunca admitir que a criatura subverta o criador. Logo, segundo o modelo constitucional em nosso ordenamento acatado, qual seja, de texto escrito, Constituição analítica e de rigidez constitucional, resta completamente inadmissível que a legislação infraconstitucional invada limites tracejados pela Constituição Federal.

 

                Retornando a clássicos do Direito, insta trazer à baila Rui Barbosa:

 

                “Definiram-se e demarcaram-se os poderes da legislatura; e, para que sobre tais limites não ocorresse erro, ou deslembrança, fez-se escrita a Constituição. Com que fim se estipulariam esses poderes, e com que fim se reduziria essa estipulação a escrito, se os limites prescritos pudessem ser ultrapassados exatamente por aqueles, que ela se propunha a coibir? Acabou-se a distinção entre os governos de poderes limitados e os de poderes indefinidos, se os confins, que se estabelecem, não circunscreverem as pessoas, a que se impõem, e ficarem igualmente obrigativos os atos permitidos e os atos defesos.

 

                Ou havemos de admitir que a Constituição anula qualquer medida legislativa, que a contrarie, ou anuir em que a legislatura possa alterar por medidas ordinárias a Constituição. Não há contestar o dilema.

 

                Entre as duas alternativas não se descobre meio termo. Ou a Constituição é uma lei superior, soberana, irreformável por meios comuns; ou se nivela com os atos de legislação usual, e, como estes, é reformável ao sabor da legislatura. Se a primeira proposição é verdadeira, então o ato legislativo, contrário à Constituição, não será lei; se é verdadeira a segunda, então as Constituições escritas são absurdos esforços do povo, por limitar um poder de sua natureza ilimitável. Ora, com certeza, todos os que têm formulado Constituições escritas, sempre o fizeram com o intuito de assentar a lei fundamental e suprema da nação; e, conseguintemente, a teoria de tais governos deve ser que qualquer ato da legislatura, ofensivo da Constituição, é nulo. Esta doutrina está essencialmente ligada às Constituições escritas, e, portanto, deve-se observar como um dos princípios fundamentais de nossa sociedade.” [07]

 

                23. Tenha-se também em mente o disposto no art. 195, §4, da CF/88:

 

                § 4º. A lei poderá instituir outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social, obedecido o disposto no artigo 154, I.

 

                24. Obedecendo ao comando do final do art. 195, § 4º, da CF/88, procede-se à remissão do art. 154, I, do mesmo diploma normativo:

 

                Art. 154. A União poderá instituir:

 

                I – mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição (…)”

 

                Resta evidente que só lei complementar, com quorum e particularidades próprias, pode dar ensejo à criação de novo tributo. Ao que consta, a Lei 9718/98 não é lei complementar……. A partir do instante em que tal lei modifica a base de cálculo e o fato gerador do COFINS, está, em verdade, inovando no ordenamento jurídico, criando um novo tributo. Não se tratando de lei complementar, consectário óbvio é que a lei em tela está contaminada por insofismável vício formal.

 

                25. Julgado do TRF em matéria análoga a esta é claro em apontar o seguinte:

 

                CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA – LEI Nº 9.876/99 – ALTERAÇÃO DO ART. 22 DA LEI Nº 8.212/91 – RETENÇÃO DE 15% SOBRE O VALOR BRUTO DAS FATURAS OU NOTAS FISCAIS EMITIDAS PELAS COOPERATIVAS PRESTADORAS DE SERVIÇOS – ALTERAÇÃO DA BASE DE CÁLCULO, A QUAL PASSA A NÃO MAIS RESIDIR SOBRE O VALOR DOS RENDIMENTOS DO TRABALHO PAGOS OU CREDITADOS À PESSOA FÍSICA PRESTADORA DO SERVIÇO – CRIAÇÃO DE NOVA CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA ATRAVÉS DE LEI ORDINÁRIA – INCONSTITUCIONALIDADE – VIOLAÇÃO AOS ARTS. 195, I E § 4º E 154, I, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – A Lei Complementar nº 84/96, em seu art. 1º, II, instituía uma contribuição social, cujo fato gerador estava expresso na prestação de serviços a pessoas jurídicas por intermédio de cooperativas, além de que a base de cálculo consistia justamente nas importâncias distribuídas ou creditadas aos cooperados, sendo que a alíquota estabelecida era a de 15%. O sujeito passivo da obrigação tributária era a cooperativa. Ocorre, no entanto, que a Lei Complementar nº 84/96 veio a ser revogada pelo art. 9º da Lei nº 9.876, de 26 de novembro de 1999, sendo que esse mesmo texto legal veio, também, a alterar o art. 22, da Lei nº 8.212/91, posto que foi acrescido o inciso IV. Foi criada, assim, uma nova contribuição social, agora não mais a cargo da cooperativa, mas sim da empresa tomadora de serviços, e tendo por base de cálculo não os valores creditados ou distribuídos aos cooperados, mas sim o valor bruto da nota fiscal ou fatura de prestação de serviços emitidas pelas cooperativas. A sujeição passiva, portanto, foi alterada, deixando de ser da cooperativa, vindo a ser da empresa tomadora de serviços que contrata com a cooperativa. E, neste particular, cabe salientar que não se trata, como quer fazer crer a autarquia previdenciária, de extinção da substituição tributária que estaria prevista pela legislação anterior. É que, na Lei nº 84/96, as cooperativas nunca figuraram na condição de substitutos tributários das empresas tomadoras de serviços, sendo que, na realidade, assumiam a posição de sujeito passivo na relação tributária e realizavam a hipótese de incidência justamente no momento em que procediam à distribuição ou crédito em favor dos cooperados dos valores relativos à prestação de serviços por eles realizada. Ademais, a base de cálculo também foi alterada, posto que deixou de ser os valores creditados ou distribuídos a cooperados, tendo sido definido como tanto, pela Lei nº 9.876/99, o valor bruto da nota fiscal ou fatura de prestação de serviços, o que significa que está a englobar não só os rendimentos de trabalho pagos ou creditados aos cooperados, mas despesas outras que integram o preço contratado, tais como taxa de administração e outras. Todos esses ângulos estão a denotar que o sujeito passivo e a base de cálculo definida na Lei nº 876/99 estão em descompasso com o art. 195, I, da Constituição Federal, pois indispensável seria que a incidência ocorresse sobre rendimentos do trabalho pagos ou creditados à pessoa física que preste serviço. Porém, no caso em tela, além de não se constatar a incidência sobre o valor dos rendimentos do trabalho, e sim sobre o valor da nota fiscal ou fatura emitida, ainda, não diz respeito a importâncias devidas às pessoas físicas, mas decorrem de contratos firmados entre a tomadora de serviços e as cooperativas, portanto, diz respeito a relações estabelecidas entre pessoas jurídicas. É que, sabidamente, a cooperativa é uma pessoa jurídica, conforme inclusive decorre da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971, em seu art. 4º, pelo que não há como subsumir-se à hipótese prevista no dispositivo constitucional mencionado. Houve, sem dúvida, a instituição de nova contribuição, pois a anterior, prevista pela Lei Complementar nº 84/96, foi expressamente revogada pelo art. 9º da Lei nº 9.876/99 e, assim sendo, somente poderia ser criada mediante lei complementar, na forma dos arts. 195, § 4º e 154, I, da Constituição Federal, o que não se verificou na espécie. Agravo de instrumento a que se dá provimento, para conceder a liminar pleiteada. [08]

 

                26. Outro julgado, até mais direto que este no trato específico da inconstitucionalidade da Lei 9718/98, expõe o seguinte:

 

                TRIBUTÁRIO – MANDADO DE SEGURANÇA – LEI Nº 9.718/98 – RECOLHIMENTO DA COFINS – ALTERAÇÃO DA BASE DE CÁLCULO E DA ALÍQUOTA – I – A Lei nº 9.718/98 alargou a base de cálculo da COFINS para nela incluir receitas que não integram o conceito de faturamento, previsto no inciso I do art. 195 da Constituição Federal, antes de sua alteração pela Emenda Constitucional nº 20/98. Assim, tal tributação, antes da aludida Emenda, deveria ser instituída por meio de Lei complementar (arts. 195, § 4º c/c 154, I, CF). II – Sendo ordinária a Lei nº 9.718/98, seu art. 3º é inconstitucional. A superveniência da Emenda Constitucional nº 20/98 não convalida tal vício, a pretexto de lhe conferir fundamento de validade, devendo a COFINS ser recolhida com base na LC 70/91. [09](…)

 

                27. Reforçando esta linha de pensar, Kyoshi Harada assim expôs:

 

                “De certa forma o Plenário do STF já sinalizou no sentido da inconstitucionalidade do art. 3º da Lei nº 9.718/98, que alterou a base de cálculo da PIS/Cofins de faturamento para receita bruta, ao decretar a inconstitucionaldiade da contribuição previdenciária incidente sobre a remuneração paga aos parlamentares, instituída pela Lei nº 9.506/97, que introduziu a alínea h ao inciso I do art. 12 da Lei nº 8.212/91. Entendeu aquela Alta Corte de Justiça que ao criar nova figura de segurados obrigatórios, criou nova fonte de custeio da seguridade social, o que, ao teor do § 4º do art. 195 da CF, só poderia ser objeto de implementação por lei complementar. Da mesma forma, nova contribuição fundada em receita bruta, não mais em faturamento, implica nova fonte de custeio da seguridade social a exigir a formalidade de lei complementar.´´´´ [10]

 

                28. Uma das conseqüências do princípio da legalidade no Direito Tributário (CF/88, art. 150, I), é que a forma de criação dos tributos é indisponível, ou seja, não pode ser alterada pelo legislador infraconstitucional com ofensa aos parâmetros da Constituição Federal. O princípio da legalidade em matéria tributária não subjaz apenas na literal exposição de que todos os tributos devem ser criados por lei. Sobre este tema, o insigne Canotilho assim se manifestou:

 

                “Um dos mais importantes princípios constitucionais a assinalar nesta matéria é o princípio da indisponibilidade de competências ao qual está associado o princípio da tipicidade de competências. Daí que: (1) de acordo com este último, as competências dos órgãos constitucionais sejam, em regra, apenas as expressamente enumeradas na Constituição; (2) de acordo com o primeiro, as competências constitucionalmente fixadas não possam ser transferidas para órgãos diferentes daqueles a quem a Constituição as atribuiu. Estes princípios justificam a proibição da alteração das regras constitucionais de competência dos órgãos de soberania, mesmo no caso de exceção constitucional”. [11]

 

                29. Por fim, rebata-se também a mendaz alegação de que as inconstitucionalidades da Lei 9718/98 foram suplantadas pela Emenda Constitucional nº 20/98.

 

                A EC 20/98 alterou a redação do art. 195 da seguinte maneira:

 

                “Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

 

                I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:

 

                a) folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;

 

                b) a receita ou o faturamento;

 

                c) o lucro;”

 

                30. Para olhares menos respeitosos a parâmetros basilares da Teoria do Direito, a EC 20/98, que parece criar ensancha para instituição de contribuição social com base em lei ordinária e tendo a classe genérica “receita” como base de cálculo, convalidaria todos os vícios aqui detectados na incidência de COFINS fixada pelo art. 3º da Lei 9718/98. Ocorre que legislações posteriores a uma invalidade não tem o condão de superar tal invalidade. Aquilo que nasceu inválido permanece inválido e não há mecânica legislativa que altere isto. O ordenamento jurídico não pode ser obrigado a acatar abusos legislativos anteriormente rechaçados pela Constituição apenas porque novas legislações, de constitucionalidade e moralidade duvidosas, ditadas pelos interesses nada altruísticos dos governantes de plantão, assim o querem. Uma norma que é hostil à Constituição nunca é revalidada por leis posteriores. Tratamos de nulidade originária insanável que torna tal norma expressamente revogada. Sobre o tema, com a precisão que lhe é peculiar, disse Humberto Ávila: “A invalidade é um fenômeno que não se altera no tempo: a alteração da norma superior não tem o condão de tornar válida uma norma originalmente inválida”. [12]

 

                31. Reforçando as considerações sobre a latente e inevitável invalidade da confusão entre receita e faturamento na aferição da base de cálculo do COFINS, mais uma vez recorremos à Humberto Ávila, que, com o brilhantismo habitual, assim expôs:

 

                “Tanto faz se a norma prevê que produzirá efeitos no futuro, se, no momento em que foi criada, não se adequava aos mandamentos constitucionais que regulavam a sua produção e o seu conteúdo. Entendimento contrário seria equivalente – em pensamento metafórico imperfeito, mas ilustrativo – à situação do estudante que, tendo ido muito mal nalguma prova, tenta, após a correção, convencer seu professor de que sua nota deve ser modificada, pelo simples fato de que, depois da entrega da avaliação, sabia quais as respostas certas.

 

                Ora, o fato de a norma constante da Lei nº 9.718/98 ter postergada a sua eficácia para momento em que passou a existir fundamento material para sua validade, não elimina a sua original incompatibilidade com a norma constitucional que delimitava o seu possível conteúdo no momento da sua edição. Se ela não se adequava à Constituição nesse momento, ela é inválida, pouco importando se, depois disso e quando passaria a produzir efeitos, o fundamento constitucional foi modificado. A validade é, enfim, um conceito de relação: norma inferior versus superior no momento de sua edição. Não depois.” [13]

 

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

                ÁVILA, Humberto Bergmann. COFINS E PIS: inconstitucionalidade da modificação da base de cálculo e violação ao princípio da igualdade.In: Repertório IOB de Jurisprudência,2ª quinzena de julho de 1999, nº 14/99, caderno 1

 

                BARBOSA, Rui. Atos inconstitucionais. At. por Ricardo Rodrigues Gama. Campinas:Russell, 2003

 

                CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª ed. Coimbra: Almedina

 

                CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 15ª edição, 2003

 

                ECO, Humberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 50

 

                GALOTTI, Luiz. RJ, v. 66

 

                HARADA, Kiyoshi. Cofins: conteúdo e alcance da decisão proferida no RE nº 357.950/RS. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 868, 18 nov. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7600>. Acesso em: 04 ago. 2006.

 

                MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito – Ed. Globo, Porto Alegre – segunda edição, 1933 – pág.118)

 

                PERTENCE, Sepúlveda. RTJ v. 149

 

                SAUSSURE, Ferdinand. Cours de linguistique générale. Paris: Payot, 1974

 

    NOTAS

 

                01 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 15ª edição, 2003, pp 327/328.

 

                02 SAUSSURE, Ferdinand. Cours de linguistique générale. Paris: Payot, 1974, p. 100

 

                03 ECO, Humberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 50

 

                04 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito – Ed. Globo, Porto Alegre – segunda edição, 1933 – pág.118)”

 

                05 GALOTTI, Luiz. RJ, v. 66, p. 156

 

                06 PERTENCE, Sepúlveda. RTJ v. 149, p. 287

 

                07 BARBOSA, Rui. Atos inconstitucionais. At. por Ricardo Rodrigues Gama. Campinas:Russell, 2003. p. 40.

 

                08 TRF 3ª R. – AG 109491 – (2000.03.00.024970-0) – 5ª T. – Relª Desª Fed. Suzana Camargo – DJU 16.04.2002 – p. 538)

 

                09 (TRF 3ª R. – AMS 206323 – (1999.61.00.008657-2) – 4ª T. – Rel. Des. Fed. Andrade Martins – DJU 21.09.2001 – p. 744)

 

                10 HARADA, Kiyoshi. Cofins: conteúdo e alcance da decisão proferida no RE nº 357.950/RS. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 868, 18 nov. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7600>. Acesso em: 04 ago. 2006.

 

                11 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª ed. Coimbra: Almedina, p. 437

 

                12 ÁVILA, Humberto Bergmann. COFINS E PIS: inconstitucionalidade da modificação da base de cálculo e violação ao princípio da igualdade.In: Repertório IOB de Jurisprudência,2ª quinzena de julho de 1999, nº 14/99, caderno 1, p. 438.

 

                13 ÁVILA, Humberto Bergmann.op.cit.p. 436

 

 

* Advogado; professor de Teoria Geral do Processo, Processo Civil, Direito Civil e Prática Jurídica das Faculdades Doctum – Campus Leopoldina; Coordenador da Iniciação Científica das Faculdades Doctum- Campus Leopoldina; professor de Introdução ao Estudo do Direito e Processo Civil das Faculdades Doctum/Campus Juiz de Fora; Especialista em Direito Civil pela UNIPAC; Mestre em Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional pela PUC/RJ; Pesquisador de grupo sobre Acesso à Justiça da PUC/RJ e Viva Rio.

 

** Bacharelanda em Direito pelas Faculdades Doctum (Campus Leopoldina), integrante do Programa de Iniciação Científica das Faculdades Doctum

Como citar e referenciar este artigo:
SILVA, João Fernando Vieira da; CABRAL, Mariana Mázala. O abuso do Estado na fixação da base de cálculo do COFINS. As confusões terminológicas dos termos “faturamento” e “receita”. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/o-abuso-do-estado-na-fixacao-da-base-de-calculo-do-cofins-as-confusoes-terminologicas-dos-termos-qfaturamentoq-e-qreceitaq/ Acesso em: 19 abr. 2024