Direito Tributário

O imposto sobre doação e o usufruto: uma análise crítica à luz dos direitos reais de propriedade

Nicholas Guedes Coppi[1]

Thiago Santos da Silva[2]

1. Introdução

O objeto deste trabalho se assenta na análise do imposto sobre doação, hoje albergado no desenho constitucional do ITCMD, à luz dos direitos reais de propriedade, especificamente o usufruto, cuja instituição e extinção vêm sendo alvos do aludido imposto, conforme previsto em diversas legislações estaduais.

Como se sabe, o artigo 155, II, da Constituição Federal de 1988, outorga competência aos Estados e Distrito Federal para a instituição do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCMD, espécie tributária de espectro amplo, que alcança a transmissão de quaisquer bens, sejam móveis ou imóveis.

Nesta configuração constitucional, a hipótese de incidência possível do ITCMD está calcada nas transmissões causa mortis de bens e direitos, assim como nas transmissões que se realizem por atos jurídicos não onerosos, frutos da liberalidade dos indivíduos, mediante os quais se transmite bens e direitos de uma pessoa a outra, através de contrato de doação, cuja definição se encontra no Código Civil.

E é justamente sobre a materialidade abrangente da doação que este trabalho pretende se aprofundar, delineando as nuances do contrato de doação, de modo a distingui-lo dos direitos reais traçados no Código Civil, para, ao final, perquirir se é constitucionalmente adequado que as legislações ordinárias, instituidoras do ITCMD no âmbito do ente federado competente, possam incluir na hipótese de incidência da indigitada exação a instituição ou extinção do direito real de usufruto.

Para tanto, faz-se mister expor, ainda que sucintamente, a evolução do imposto o sobre doação no Brasil e sua configuração na atual Constituição Federal de 1988, que trouxe inovação ao retirar do alcance do ITBI as doações de bens imóveis, que passaram a compor o atual desenho constitucional do ITCMD, de competência dos Estados e do Distrito Federal.

Ato contínuo, será necessária incursão ao direito das obrigações, de maneira a expor os contornos do contrato de doação e do usufruto, direito real expresso no direito privado, bem como de outros contratos a títulos gratuitos que não se sujeitam ao imposto em comento, além do entendimento acerca desses institutos emanado pela jurisprudência e pela abalizada doutrina civilista, cotejando as conclusões daí advindas com o Código Tributário Nacional e com as legislações ordinárias instituidoras do imposto, que, neste trabalho, terá como parâmetro a Lei Paulista nº 10.705, de 28 de dezembro de 2000.

Ao final disso, pretende-se examinar se o imposto sobre doação, dada sua regra-matriz constitucional, aliado ao conceito de doação utilizado pela Carta Magna oriundo da legislação civilista, coaduna-se com hipótese legal que abarque, ainda que por via reflexa, a instituição ou extinção de direito real, notadamente o usufruto.

2. Arquétipo constitucional do Imposto sobre Doação

A Constituição Federal 1988 inseriu na competência dos Estados e do Distrito Federal o imposto que abrange da totalidade de bens e direitos transmitidos causa mortis e doação, a teor do que dispõe o artigo 155, I e §1º, da Carta Magna.

Com essa nova previsão, houve drástica alteração do desenho constitucional do antigo ITBI, vigente na Constituição da Republica de 1967, cujo artigo 24, I, outorgava competência aos Estados e ao Distrito Federal para a instituição de imposto sobre “transmissão a qualquer título, de bens imóveis por natureza e acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como sobre direitos à aquisição de imóveis”.

Como se nota, a Constituição anterior previa imposto único, de competência dos Estados e do Distrito Federal, denominado à época de ITBI, que abarcava a transmissão a qualquer título de bens imóveis. Com essa configuração, o aludido imposto incidia tanto na transmissão inter vivos ou causa mortis, fosse a título oneroso ou gratuito, mas tão somente de bens imóveis.

Atualmente, sob a égide da Constituição da República de 1988, foi criada nova repartição de competência e de materialidade, de sorte que passou a caber aos Municípios a instituição do imposto sobre a transmissão por ato oneroso, inter vivos, de bens imóveis (ITBI), ao passo que aos Estados e Distrito Federal fora outorgada a competência para gravar, sob a rubrica do ITCMD, a transmissão causa mortis e por doação não somente dos bens imobiliários, como também dos bens mobiliários[3].

Nesse novo arquétipo constitucional, portanto, o imposto estadual ampliou sua abrangência para bens móveis transmitidos por herança, legado ou doação, mas perdeu a competência para a tributação dos bens imobiliários transmitidos onerosamente por ato inter vivos, que passou à esfera municipal do ITBI.

3. Código Tributário Nacional, materialidade do fato gerador e conceitos do direito privado

Os artigos 35 a 42, do Código Tributário Nacional, traçam, no âmbito da Lei Complementar tributária, as normas gerais aplicáveis ao imposto sobre transmissão de bens imóveis e de direitos a eles relativos. Como a redação desses dispositivos é anterior ao texto constitucional de 1988, logo há que se atentar para o fato de que não houve a recepção integral dos aludidos enunciados legais. Indiscutível, entretanto, que, no que concerne ao ITBI e ITCMD incidente na transmissão de bens imóveis, aplicam-se as disposições pertinentes do Código Tributário Nacional que sejam consentâneas com a atual Constituição da República.

Por essa razão, especificamente no que tange ao imposto incidente sobre doação, que compreende parcela do espectro constitucional do ITCMD, o critério material possível do fato gerador está adstrito à transmissão, a título gratuito por doação, de bens e direitos de qualquer natureza, aplicando-se as disposições constantes do Código Tributário Nacional no que se referem aos bens imóveis, sem prejuízo daquelas previstas unicamente na lei ordinária instituidora do tributo, desde que observado o desenho constitucional da exação, o que compreende a necessidade de lei complementar prévia para regular a competência de sua instituição quando tiver o doador domicílio no exterior, por força do artigo 155, §1º, III, a, da CF[4].

Em virtude disso, o artigo 35, II, do Código Tributário Nacional, deve ser interpretado com ressalvas, pois, embora afirme que o imposto incide sobre a transmissão, a qualquer título, de direitos reais sobre imóveis, exceto os direitos reais de garantia, é notório que o imposto sobre doação, tal como posto na Constituição Federal de 88, não permite que a transmissão seja a qualquer título, mas sim nos moldes delineados na regra constitucional de competência, isto é, deve ser a título gratuito, mediante contrato de doação.

Fácil notar, portanto, que, diante desse quadro, torna-se imprescindível examinar os conceitos utilizados pelo constituinte originário para definir a competência para a instituição do imposto sobre doação, e que devem ser rigidamente observados pela legislação tributária, conforme preceitua o artigo 110, do Código Tributário Nacional[5].

Segundo o artigo 538, do Código Civil de 2002, a doação é espécie de contrato típico “em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra”[6].

Embora a liberalidade seja característica da doação, nem todo ato de liberalidade pode ser considerado doação[7], isso porque vários outros institutos jurídicos são formados por atos de disposição a título gratuito, não se afigurando, entretanto, como doação.

Com efeito, como bem explana Luciano Amaro, o comodato e o mútuo, este quando pactuado sem juros, também partilham da nota da liberalidade e gratuidade, e nem por isso confundem-se com doação ou se sujeitam à tributação pelo ITCMD[8].

Para que exista o contrato típico de doação é necessário que, além da gratuidade, também se faça presente o animus donandi, sem o qual não há que se falar em transmissão de bens ou direitos por doação, tal como preceitua o figurino constitucional do tributo.

Isso porque a doação pressupõe ato inter vivos, a título gratuito, por liberalidade e com animus donandi, no qual uma parte transfere definitivamente a coisa, de modo que sempre haverá o enriquecimento de um e empobrecimento do outro.

E é justamente dentro desse conceito construído a partir do direito privado que se situa o limite para a incidência do ITMCD sobre a transmissão de bens e direitos por doação. Desrespeitado esse limite, qualquer que seja a legislação ordinária instituidora do imposto padecerá de inconstitucionalidade material por extrapolar a regra de competência definida no artigo 155, I, da Constituição da República.

Não pode, também, a lei ordinária estadual ou distrital modificar a definição, conteúdo e o alcance dos conceitos e formas de direito privado, com o intuito de qualificar ou mesmo desqualificar o conceito de doação, a fim de fazer incidir o ITCMD sobre atos outros, que, ainda que ausentes de onerosidade, não se enquadrem no conceito típico daquele instituto.

Admitir o contrário seria fazer tábula rasa da Constituição Federal e das competências tributárias, que ficariam à mercê da vontade do legislador ordinário por ocasião da instituição do tributo, implicando verdadeiro rompimento com o Estado de Direito. Em outras palavras, seria transformar a Constituição da República em mera carta de recomendações, tolhendo-lhe toda a normatividade que lhe é inerente[9].

Essa, inclusive, é a razão da existência do artigo 110, do Código Tributário Nacional, preocupado em preservar os rígidos limites impostos pela Constituição por ocasião da discriminação das competências tributárias.

Portanto, a lei tributária estadual ou distrital, ao criar in abstracto o ITCMD, deve agir dentro da competência que lhe foi atribuída, não podendo ampliá-la sob o argumento de que outras transmissões de bens e direitos, porque também realizadas a título gratuito e por ato inter vivos, podem se inserir no campo de incidência do imposto em comento.

Isso significar dizer que não se pode tributar, sob a rubrica do ITCMD, situações semelhantes ou equiparadas legalmente às definidas na regra de competência, mas que nela não se amoldem perfeitamente. Dito de outro modo, ou se tributa a situação porque houve transmissão de bens e direitos por doação, ou não há que se falar em possibilidade de incidência do indigitado imposto, ainda que a legislação específica da exação crie situação equiparada, similar ou com os mesmos efeitos daquele instituto.

Fixado o conceito de doação, resta saber se as legislações dos Estados ou do Distrito Federal podem gravar pelo imposto de doação a instituição ou extinção de direitos reais, sobretudo o usufruto, como é o caso da Lei Paulista nº 10.705, de 28 de dezembro 2000.

Como se sabe, o artigo 1.228 do Código Civil de 2002, estipula a propriedade como a faculdade que o proprietário tem de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha[10].

A propriedade é, pois, direito real por excelência[11], sendo plena quando todos os seus elementos se façam presentes sob a titularidade do proprietário. Pode haver, no entanto, direito real pendente sobre coisa alheia, de maneira a retirar do titular do direito de propriedade alguns dos poderes a ele inerentes[12].

É nessa condição de direitos reais sobre a coisa alheia que se situam diversos direitos elencados no artigo 1.225, do Código Civil, dentre eles o usufruto (art. 1.225, IV, do CC), regulado pelos artigos 1.390 a 1.411, do Código Civil, que se caracteriza pelo direito real do usufrutuário de fruição das utilidades do bem, ainda que despido da propriedade, que permanece com o nu-proprietário. O usufruto é, pois, restrição ao direito de propriedade[13].

Com o artigo 1.410, do diploma civilista brasileiro, depreende-se que o usufruto é também direito temporário, extinguindo-se em quaisquer das situações elencadas no mencionado dispositivo legal. Igualmente, a teor do artigo 1.393, não se pode transferir o usufruto por alienação, mas tão somente ceder seu exercício a título gratuito ou oneroso, daí a se dizer que os direitos reais de uso, habitação e usufruto são intransmissíveis[14], sobretudo porque a sua extinção, por qualquer razão que seja, implica apenas no restabelecimento de todos elementos do direito real de propriedade, antes restringidos por força do usufruto. Noutras palavras, o usufruto não é transmissão, mas sim restrição ou limitação, e, ainda que instituído a título gratuito, não se reveste da característica de doação, eis que esta pressupõe justamente a transmissão com animus de definitividade.

Trata-se tal instituto, portanto, de direito real que não se transmite, mas que somente limita, por certo lapso de tempo, alguns dos elementos da propriedade plena, que passam a ser exercidos pelo usufrutuário, sem prejuízo do direito de dispor da coisa pelo nu-proprietário, restaurando-se o status quo ante com a extinção do usufruto.

Ao se instituir o usufruto, o que há é a criação de um direito temporário em benefício do usufrutuário, permanecendo a nua-propriedade com o proprietário do bem[15]. Como se nota, inexiste, em tal circunstância, hipótese de doação a ser objeto da incidência do ITCMD. O que ser quer dizer, portanto, é que não há como a instituição do direito real de usufruto se incluir dentro do arquétipo constitucional do ITCMD, justamente por não se tratar de hipótese de transmissão de bens ou direitos por doação, de sorte que nenhuma legislação específica do imposto pode, por equiparação à doação, pretender tributar a instituição de usufruto.

É nesse vício que resvala a Lei Paulista nº 10.705, de 28 de dezembro de 2000, ao dispor em seu artigo 9º, §2º, item 3, que a base de cálculo do imposto é o valor venal do bem ou direito transmitido, equivalendo a 1/3 desse valor, quando se tratar de instituição do usufruto, por ato não oneroso[16].

Em vista disso, percebe-se que embora o artigo 2º, II, dessa mesma legislação estipule apenas que o imposto incide sobre a transmissão de qualquer bem ou direito havido por doação, não mencionando, assim, qualquer intenção de se tributar a instituição ou extinção do direito real de usufruto, o citado artigo 9º, ao tratar da base de cálculo do tributo, acaba, por via reflexa, incluindo o usufruto, quando instituído por ato não oneroso, como modalidade de transmissão de direito por doação.

A toda evidência, trata-se de flagrante inconstitucionalidade do legislador ordinário, que se imiscuindo em legislador constitucional, pretende criar verdadeiro poder de tributar à revelia do que dispõe a Constituição Federal, na medida em que amplia a regra de competência outorgada aos Estados e ao Distrito Federal para a instituição do imposto sobre doação.

Veja-se que tal aberração não é privativa apenas da lei instituidora do ITCMD no Estado de São Paulo, encontrando-se também presente nas legislações de outros entes políticos. Em algumas situações, até de maneira mais explícita, como é o caso da Lei Mineira n. 14.491, de 29 de dezembro de 2003, que, logo em seu artigo 1º, VI[17], coloca como componente do critério material do imposto em comento a instituição de usufruto não oneroso, cuja base de cálculo, tal como no Estado de São Paulo, equivale a 1/3 do valor do bem (art. 4º, §2º, III)[18].

Se a instituição pura e simples de usufruto, mesmo a título gratuito, não importa transmissão e, por consequência, doação, conclusão semelhante se mantém por ocasião da extinção desse direito, em quaisquer das hipóteses previstas na legislação cível. É que findo o usufruto, o que ocorre é a restauração da propriedade plena, com a extinção do direito.

Se não há que se falar em incidência do ITCMD nessa circunstância, com muito mais razão não há que se falar em isenção quando extinto o usufruto, como o faz a legislação de São Paulo no artigo 6º, I, f, da Lei n. 10.705/2000[19], ao tratar da extinção por causa mortis quando o nu-proprietário for o instituidor. Tal assertiva se assenta na singela constatação já citada de que o usufruto não se transfere, somente se extingue, seja por renúncia, morte, pelo decurso do prazo fixado para esse direito ou qualquer outra forma de extinção.

Última hipótese em que as legislações estaduais, no mais das vezes, incluem como materialidade do imposto sobre doação, é a situação na qual há efetiva doação, porém, com reserva de usufruto.

Socorrendo-se novamente da legislação paulista, o artigo 9º, §2º, item 4, da Lei nº 10.705/2000[20], preceitua que a base de cálculo do ITCMD é 2/3 do valor de bem, quando se tratar de doação apenas da nua-propriedade.

Por certo, não há que se discutir que a transmissão a terceiro da nua-propriedade por ato de liberalidade efetivamente se enquadra na definição de doação, incluindo-se, portanto, como situação de fato que se amolda à regra-matriz constitucional do imposto em comento.

Não se pode deixar de frisar, entretanto, que a base de cálculo fixada em 2/3 do valor do bem é verdadeira presunção legal, visto que se trata de dedução de uma conclusão sobre fato desconhecido com fundamento em fato conhecido. Na ocasião, presume-se que a nu-propriedade represente 2/3 do valor do bem. Ocorre que essa valoração é impossível de ser feita a priori, sem se ater às condições e circunstâncias do caso concreto, servindo tão somente à praticabilidade tributária e à eficiência administrativa.

Por essa razão, sempre que essa base imponível destoar discrepante, em desfavor do contribuinte, deve este ingressar em juízo para se valer do seu direito/dever de ser tributado tal e qual disposto na Constituição Federal, o que significa dizer que o quantum de imposto a ser pago deve ter relação com a dimensão da materialidade do fato gerador praticado, motivo pelo qual a base de cálculo deve considerar efetivamente o valor da nu-propriedade doada, para fins de ITCMD, sob pena de se atribuir a uma presunção legal maior importância do que aos preceitos insertos na Constituição da República.

É o que expõe Luciano Amaro, segundo o qual a base de cálculo da nua-propriedade deve corresponder exatamente ao valor da nua-propriedade, de maneira que não se pode considerar o valor total da propriedade plena, tal como não se pode afirmar que a nua-propriedade seja despida de valor[21].

De outro lado, se é indiscutível que a transmissão da nua-propriedade se situa no espectro constitucional de incidência do ITCMD, o mesmo não se pode dizer a respeito da extinção da reserva de usufruto, pois, tal como dito alhures, o usufruto não se transmite, apenas se extingue.

Logo, finda a reserva de usufruto, por qualquer razão (causa mortis ou ato inter vivos), a propriedade plena se solidifica, sem que tenha havido qualquer transmissão passível de ser gravada pelo ITCMD.

4. Conclusões

Inspirada pelos princípios republicano e federativo, a Constituição Federal de 1988, ao traçar as nuanças do sistema constitucional tributário, implementou rígida repartição das competências tributárias entre os entes políticos, outorgando-lhes o poder de criar tributos nos moldes consignados no texto constitucional.

Em razão dessa rigidez e minúcia da Constituição no trato da matéria tributária, o exercício da competência pelo ente político somente pode se desenvolver nos estritos termos constitucionais, eis que é a própria Constituição da República que define as hipóteses de incidência possíveis para os tributos nela elencados.

Dentro dessa partilha de competência foi atribuído aos Estados e Distrito Federal o poder de instituir, in abstracto, o imposto sobre transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos, denominado de ITCMD, conforme disposição do artigo 155, I, da Constituição da República.

Ao enunciar a regra de competência em questão, o constituinte originário estabeleceu, com conceitos de direito privado, os limites de exercício do poder político de criar o tributo pelo ente federado competente, de tal sorte que o legislador ordinário, ao instituir o imposto previsto no artigo 155, I, da Constituição, não pode descrever hipótese legal que extrapole os conceitos de transmissão de bens e direitos, mediante causa mortis e doação.

Não se nega, no entanto, que os textos jurídicos, mesmo os mais específicos, são dotados de certa indeterminabilidade oriunda da plurivocidade semântica das palavras e da impossibilidade de se aprisionar, em um método a priori, todos os sentidos normativos passíveis de construção e todas as hipóteses fáticas de aplicação. Por essa razão que se diz que texto e norma, embora conexos, são coisas distintas. A norma é o produto do texto.

Não quer isso significar, entretanto, que não existem núcleos mínimos de significação nos textos normativos, dos quais o intérprete e o legislador infraconstitucional não podem se distanciar, sob pena de rompimento com o pilar que sustenta o Estado Democrático de Direito, representado, em grau máximo, pela Constituição Federal.

Diante desse quadro, o legislador ordinário, ao exercitar seu poder de tributar, está adstrito aos núcleos mínimos de significação do enunciado constitucional, sobretudo porque está a se tratar de enunciado definidor da competência tributária.

Assente nessas premissas e com relação especificamente ao imposto previsto no artigo 155, I, da CF, em parcela de sua materialidade que abrange ato inter vivos a título gratuito, o tributo a ser criado por legislação ordinária da lavra do ente político competente somente deve ter aptidão para gravar as situações fáticas que importem efetivamente em uma transmissão, como forma de transferência jurídica definitiva da coisa. E não basta que seja qualquer tipo de transmissão, mas sim a transmissão resultante do contrato típico de doação. É que transmissão e doação são termos dotados de um núcleo mínimo de significação construído pelo direito privado e foram explicitamente utilizados pelo legislador constitucional para demarcar a competência tributária, tolhendo, portanto, qualquer liberdade do legislador infraconstitucional quanto ao seu sentido normativo.

Conclui-se, dessa forma, que a lei ordinária que exercitar a competência tributária delineada no artigo 155, I, por ato inter vivos, ao traçar legalmente a hipótese de incidência do imposto em comento, não pode ultrapassar o conceito prévio de doação e de transmissão empregue pela Carta Magna. Porque se o fizer, estará rompendo com o texto constitucional, posto que, em verdade, estará criando poder tributário próprio, à margem do Estado de Direito, fundado na Constituição.

Nessa esteira, não parece haver dúvida, portanto, que o usufruto, como direito real sobre coisa alheia, seja pela instituição ou extinção, não se coaduna com a regra-matriz constitucional do imposto sobre doação. A um, porque não implica transmissão; a dois, porque não se trata de doação, cuja transmissão, inclusive, é pressuposta. Assim, flagrantemente inconstitucional são as legislações estaduais ou distrital que incluem o usufruto no bojo da hipótese de incidência do imposto delineado na regra de competência do artigo 155, I, da CF, por excederem os limites da competência tributária que lhes foi outorgada.

Referências bibliográficas

AMARO, Luciano. Usufruto e ITCMD. In Direito Tributário Contemporâneo: Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba. Aires Fernandino Barreto (coord.). São Paulo: Malheiros, 2011.

ÁVILA, Humberto. Presunções e Pautas Fiscais frente à Eficiência Administrativa. Grandes Questões Atuais de Direito Tributário. 9º v. São Paulo: Dialética, 2005. p. 280.

CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário, 30ª ed. São Paulo, Malheiros, 2015.

DINIZ, Maria Helena. Tratado teórico e prático dos contratos, 2º v. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 10ª ed. São Paulo: RT, 2013.

NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Instituições de Direito Civil, v. IV: direitos patrimoniais e reais. São Paulo: RT, 2016.



[1] Mestrando em Direito Constitucional e Processual Tributário pela PUC/SP. Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Professor do IBET. Advogado.

[2] Mestrando em Direito Constitucional e Processual Tributário pela PUC/SP. Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Agente Fiscal de Rendas do Estado de São Paulo.

[3] AMARO, Luciano. Usufruto e ITCMD. In Direito Tributário Contemporâneo: Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba. Aires Fernandino Barreto (coord.). São Paulo: Malheiros. 2011. p. 446.

[4] I – Arguição de inconstitucionalidade. A instituição de imposto sobre transmissão ‘causa mortis’ e doação de bens localizados no exterior deve ser feita por meio de Lei Complementar. Inteligência do art. 155, §1°, inciso III, Aline b, da Constituição Federal. II – O Legislador Constituinte atribuiu ao Congresso Nacional um maior debate político sobre os critérios de fixação de normas gerais de competência tributária para instituição do imposto sobre transmissão de bens – móveis/imóveis, corpóreos/incorpóreos – localizados no exterior, justamente com o intuito de evitar conflitos de competência, geradores de bitributação, entre os Estados da Federação, mantendo uniforme o sistema de tributos. III – Inconstitucionalidade da alínea ‘b’ do inciso II do art. 4o da Lei paulista n° 10.705, de/%8 de dezembro de 2000, reconhecida. Incide/te de inconstitucionalidade procedente. //  
(TJSP; Arguição de Inconstitucionalidade 0004604-24.2011.8.26.0000; Relator (a): Guerrieri Rezende; Órgão Julgador: Órgão Especial; Foro Central – Fazenda Pública/Acidentes – 8ª Vara de Fazenda Pública; Data do Julgamento: 30/03/2011; Data de Registro: 07/04/2011)

[5] Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.

[6] Art. 538. Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra.

[7] NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 10ª ed. São Paulo: RT, 2013. p. 722.

[8] AMARO, Luciano. Usufruto e ITCMD. In Direito Tributário Contemporâneo: Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba. Aires Fernandino Barreto (coord.). São Paulo: Malheiros. 2011. p. 446.

[9] Como bem leciona Roque Antonio Carraza, a Constituição Federal é dotada de eficácia normativa, não veiculando “mero repositório de recomendações, a serem ou não atendidas, mas um conjunto de normas supremas que devem ser incondicionalmente observadas”. (CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário, 30ª ed. São Paulo, Malheiros, 2015. p. 39.)

[10] Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

[11] NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Instituições de Direito Civil, vol. IV: direitos patrimoniais e reais. São Paulo: RT, 2016. p. 174.

[12] NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Instituições de Direito Civil, vol. IV: direitos patrimoniais e reais. São Paulo: RT, 2016. p. 391.

[13] DINIZ, Maria Helena. Tratado teórico e prático dos contratos, 2ª vol. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 85-86.

[14] NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Instituições de Direito Civil, vol. IV: direitos patrimoniais e reais. São Paulo: RT, 2016. p. 410.

[15] Nessa mesma linha, Luciano Amaro é taxativo: “A própria instituição gratuita de usufruto não se confunde com a doação (contrato típico). Mais uma vez: não há transmissão; instituição ou criação de direito”. (AMARO, Luciano. Usufruto e ITCMD. In Direito Tributário Contemporâneo: Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba. Aires Fernandino Barreto (coord.). São Paulo: Malheiros. 2011. p. 458.)

[16] Artigo 9º – A base de cálculo do imposto é o valor venal do bem ou direito transmitido, expresso em moeda nacional ou em UFESPs (Unidades Fiscais do Estado de São Paulo).

(…)

§ 2º – Nos casos a seguir, a base de cálculo é equivalente a:

(…)

3. 1/3 (um terço) do valor do bem, na instituição do usufruto, por ato não oneroso;

(…)

[17] Art. 1º O Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos -ITCD -incide:

(…)

VI – na instituição de usufruto não oneroso

[18] Art. 4º A base de cálculo do imposto é o valor venal do bem ou direito recebido em virtude da abertura da sucessão ou de doação, expresso em moeda corrente nacional e em seu equivalente em Ufemg.

(…)

§ 2º A base de cálculo do imposto é nos seguintes casos:

(…)

III -1/3 (um terço) do valor do bem, na instituição do usufruto, por ato não oneroso

[19] Artigo 6º – Fica isenta do imposto: (Redação dada ao artigo pela Lei 10.992, de 21-12-2001; DOE 22-12-2001; Efeitos a partir de 01-01-2002)

I – a transmissão “causa mortis”:

(…)

f) na extinção do usufruto, quando o nu-proprietário tiver sido o instituidor;

[20] Artigo 9º – A base de cálculo do imposto é o valor venal do bem ou direito transmitido, expresso em moeda nacional ou em UFESPs (Unidades Fiscais do Estado de São Paulo).

(…)

§ 2º – Nos casos a seguir, a base de cálculo é equivalente a:

(…)

4. 2/3 (dois terços) do valor do bem, na transmissão não onerosa da nua-propriedade.

[21] AMARO, Luciano. Usufruto e ITCMD. In Direito Tributário Contemporâneo: Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba. Aires Fernandino Barreto (coord.). São Paulo: Malheiros. 2011. p. 456.

Como citar e referenciar este artigo:
COPPI, Nicholas Guedes; SILVA, Thiago Santos da. O imposto sobre doação e o usufruto: uma análise crítica à luz dos direitos reais de propriedade. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2019. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/o-imposto-sobre-doacao-e-o-usufruto-uma-analise-critica-a-luz-dos-direitos-reais-de-propriedade/ Acesso em: 29 mar. 2024