Direito Tributário

A arbitragem tributária no Brasil e o princípio da indisponibilidade da receita tributária

Gustavo Pereira Santos[1]

Luana Ely Morgado Serra[2]

RESUMO

O presente artigo tem por escopo discutir sobre a possibilidade de aplicação da arbitragem nos litígios envolvendo Direito Tributário, mais especificadamente no que concerne ao crédito tributário. Trouxe-se questionamentos referentes ao princípio da indisponibilidade do interesse público, que entendia-se como um possível entrave à aplicação do instituto da arbitragem em matéria tributária, mas que restou superado, tendo em vista o caráter patrimonial do interesse público secundário. Outrossim, aborda-se a indisponibilidade do crédito tributário e a disponibilidade do quantum objeto da relação tributária. 

Palavras- chave: Arbitragem. Crédito Tributário. Indisponibilidade do Interesse Público. 

ABSTRACT

SUMMARY The purpose of this article is to analyze the possibility of applying arbitration in litigation involving Tax Law, more specifically, regarding tax credit. The issues related to the principle of unavailability of the public interest, which are considered as hindering the application of the tax arbitration institute, but which are overcome, are considered patrimonial of the secondary public interest. Also, an unavailability of the tax credit and a quantum object access of the tax influence is approached.

Keywords: Arbitration. Tax Credit. Unavailability of Public Interest.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho trata do instituto da arbitragem e a possibilidade de estendê-lo ao direito tributário. Para tanto, investigou-se o princípio da indisponibilidade do interesse público, tão como da indisponibilidade do crédito tributário, geralmente apontados como empecilhos à arbitragem tributária no Brasil.

O contencioso tributário é o mais vasto na jurisdição brasileira, tendo como marca a morosidade. A arbitragem, caracterizada pela celeridade, é um mecanismo eficaz para mitigar o abarrotamento do judiciário tributário. É nesse viés que se justifica o tema a ser trabalhado, de modo a demonstrar a possiblidade de se estender a arbitragem ao Direito Tributário e contribuir para melhor fluidez e dinamismo nos litígios fiscais.

O objetivo desta pesquisa é confrontar os princípios da Indisponibilidade do Interesse Público e da Indisponibilidade do Crédito Tributário com a arbitragem, de modo a demonstrar que há interesses públicos dispensáveis – os chamados “interesses públicos secundários” – e que a receita tributária também é disponível, com hipóteses abarcadas e disciplinadas em legislação constitucional e infraconstitucional. Demonstrado isto, vislumbrar-se-á o caminho aberto à arbitragem no Direito Tributário e, assim, um mecanismo transparente, célere e eficiente para diminuição do contencioso tributário.

2. ARBITRAGEM E DIREITO TRIBUTÁRIO

A Arbitragem é um método alternativo de resolução de conflitos no qual as partes elegem um árbitro (juiz), fora da litigância judicial, para resolver um determinado conflito. No Brasil, tal instituto é observado pela Lei 9.307/96, e traz consigo uma série de potencialidades, dentre as quais, destacam-se: possibilidade de seleção dos árbitros, definitividade, maior tecnicidade das decisões, celeridade e flexibilidade procedimental. Por isso, tem sido um atrativo à resolução de litígios, e, nesse viés, um método eficaz ao abarrotamento do judiciário.

Segundo levantamento feito pelo relatório “Justiça em Números 2017”, 75% das execuções em processo no Brasil são de cunho fiscal[3]. Ainda, a análise realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA demonstrou que o tempo médio total de tramitação de um processo de execução fiscal na Justiça Federal é de 8 anos, 2 meses e 9 dias[4]. Disto, resta patente a (excessiva) morosidade do processo tributário brasileiro.

De outro lado, a arbitragem, como já destacado, tem como uma de suas potencialidades a celeridade. Atestam “as câmaras arbitrais de maior prestígio no mundo que o tempo de duração de um procedimento [arbitral é] de aproximadamente 18 (dezoito) meses”. (ESCOBAR, 2017).

Entretanto, a doutrina, tradicionalmente, tem se posicionado de modo contrário à arbitragem na Administração Pública, tão como no Direito Tributário, e um dos principais motivos é que tal instituto, supostamente, fere o princípio da Indisponibilidade do Interesse Público, sendo, neste sentido, indisponível o crédito tributário.

2.1. Interesse Público e o Instituto da Arbitragem

O interesse público, de modo genérico, pode ser entendido como o conjunto de interesses pessoais que formalizam uma inclinação majoritária da sociedade, e não se confunde, necessariamente, com o interesse do Estado.

Conceitua Celso Antônio Bandeira de Melo que “o interesse público deve ser conceituado como o interesse público resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem” (2001, p. 69).

Marcelo Ricardo Escobar compreende que “pode-se conceituar ‘interesse público’ tanto como fundamento, limite e instrumento de poder quanto como medida e finalidade da função administrativa, apresentando-se como suporte e legitimação de atos e medidas no âmbito da Administração” (2017, p. 81).

Feitas tais considerações conceituais, deve-se conceber que a indisponibilidade dos interesses públicos pode ser absoluta ou relativa, e os interesses públicos, primários ou secundários. Estes, de natureza instrumental, viabilizam os primários e tratam de relações patrimoniais, sendo, por isso, disponíveis, na forma da lei. É só relembrar do disposto no artigo 1º da Lei nº 9.307/96, a Lei de Arbitragem, que diz que “as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”.

Torna translúcida a questão o voto de relatoria do Ministro João Otávio de Noronha, reproduzido por Ricardo Escobar, nos seguintes termos (2017, p. 82):

Em outras palavras, pode-se afirmar que, quando os contratos celebrados pela empresa estatal versem sobre atividade econômica em sentido estrito – isto é, serviços públicos de natureza industrial ou atividade econômica de produção ou comercialização de bens, suscetíveis de produzir renda e lucro -, os direitos e obrigações deles decorrentes serão transacionáveis, disponíveis e, portanto, sujeitos à arbitragem. Ressalte-se que a própria lei que dispõe acerca da arbitragem – art. 1º da Lei n. 9.307/96 – estatui que “as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”.

Por outro lado, quando as atividades desenvolvidas pela empresa estatal decorram do poder de império da Administração Pública e, conseqüentemente, sua consecução esteja diretamente relacionada ao interesse público primário, estarão envolvidos direitos indisponíveis e, portanto, não-sujeitos à arbitragem.

O que se quer destacar aqui é que o interesse público secundário é entendido como disponível, estando, portanto, aberto à arbitragem (ESCOBAR, 2017).

Neste sentido, contextualiza Carlos Alberto Carmona, citado por Ricardo Escobar (2017, p. 85):

(…) se é verdade que uma demanda que verse sobre direito de prestar e receber alimentos trata de direito indisponível, não é menos verdadeiro que o quantum da pensão pode ser livremente pactuado pelas partes (e isto torna arbitrável esta questão); da mesma forma, o fato caracterizado de conduta antijurídica típica deve ser apurado exclusivamente pelo Estado, sem prejuízo de as partes levarem à solução arbitral a responsabilidade civil decorrente de ato delituoso.

Nessa esteira, deve-se ter em mente que a cobrança do crédito tributário é direito indisponível da Administração Pública. Contudo, o quantum da questão jurídico-tributária pode ser submetido ao juízo arbitral, constituído livremente pelas partes.

2.2 A Indisponibilidade do Interesse Público e do Crédito Tributário – (in)viabilidade da Arbitragem?

De início, cumpre mencionar que não há óbice constitucional à instituição da arbitragem no direito tributário pátrio. Partindo-se, assim, ao Código Tributário Nacional, identifica-se o conceito de tributo em seu art. 3º, que assim dispõe: “Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”. É nesta última parte do texto legislativo, no que tange à cobrança do tributo como atividade vinculada da administração pública, que se encontra o cerne da controvérsia.

Hugo de Brito Machado, mencionado por Priscila Faricelli de Mendonça, se alinha à posição que, por ser indisponível a arrecadação do tributo pela Fazenda Pública, entende ser incabível se utilizar da arbitragem como método de resolução de conflitos tributários (MENDONÇA, 2013).

Todavia, como muito bem enfatizado por Priscila Faricelli de Mendonça, “o que é indisponível, de fato, é a atividade de cobrança do crédito tributário, e não o crédito tributário per si”.

Ademais, Ricardo Lobo Torres enfatiza que:

O princípio da supremacia do interesse público gerava a processualidade fundada na superioridade dos interesses da Fazenda Pública. A nova processualidade fiscal pressupõe a crítica vigorosa ao princípio da supremacia do interesse público. Hoje parte importante da doutrina brasileira repeliu a tese da superioridade do interesse público, separando o interesse da Fazenda Pública do interesse público. O interesse fiscal, na época do processo administrativo tributário equitativo, só pode ser o interesse de arrecadar o imposto justo, fundado na capacidade contributiva. (LOBO, p. 107).

Nesse sentido, percebe-se que a vinculação da cobrança do crédito tributário à Administração Pública não a responsabiliza, unicamente e necessariamente, pela resolução do conflito tributário, tampouco fere o princípio da Indisponibilidade do Interesse Público, de modo que “o interesse público não é absolutamente indisponível na medida em que prevalece o interesse da sociedade em detrimento do interesse estatal absoluto”, entendendo-se, dessa forma, que “o interesse público não necessariamente será o interesse do Estado” (MENDONÇA, 2013).

O próprio texto constitucional ilumina a questão, não oportunizando que se vislumbre a indisponibilidade do crédito tributário. O artigo 150, § 6º, diz que:

Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g.

Ora, se os entes da Federação têm a possibilidade de lançar mão de isenções de seus tributos, logo, podem abster-se de exercer a competência tributária lhes determinada pela Carta Magna de 88, o que é renúncia de receita tributária (PISCITELLI e MASCITTO, 2018). Destacam, quanto a isso, Tathiane Piscitelli e Andréa Mascitto:

Some-se a essa exigência o dever de o ente prever o impacto que tal renúncia de receita irá causar no orçamento, além de outras providências relacionadas à responsabilidade fiscal na gestão de recursos públicos, como a eventual criação de medidas (financeiras) de compensação de renúncia, nos termos do artigo 14 da Lei Complementar n.º 101/2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

A remissão e a anistia, presentes no artigo em questão, estão disciplinadas no Código Tributário Nacional, nos artigos 156[5] e 180[6], respectivamente. Tem-se, ainda, como formas de disposição do crédito tributário, a transação e o parcelamento, ambos também presentes no Código Tributário Nacional, nos artigos 171[7], 156[8] e 151[9].

Constata-se, disto, que a ordem jurídica pátria permite, em variadas situações, a disponibilidade do quantum objeto da relação tributária. Para tanto, requer-se em todas as hipóteses tão somente a previsão em lei (PISCITELLI e MASCITTO, 2018).

3. CONCLUSÃO

O ordenamento jurídico brasileiro pode ter uma arma poderosa para redução do contencioso tributário: a arbitragem. Tal instituto é bem mais célere que a máquina do judiciário e oportuniza, ainda, a possibilidade de decisões mais técnicas, chamando atenção as partes e sendo um ótimo veículo para desafogar a máquina pública.

Apesar das controvérsias que giram em torno do princípio da Indisponibilidade do Interesse Público, constata-se o interesse público secundário, de tom patrimonial, é disponível e, neste sentido, dá espaço à arbitragem. Aqui, a Administração Pública pode abrir mão de tutelá-los, ao revés do que acontece com os interesses públicos primários, que são indisponíveis.

Assim, não há que se falar em indisponibilidade do crédito tributário por conta da atividade de cobrança de tributos ser vinculada à Administração Pública. Como demonstrado, tal cobrança é direito indisponível da Administração Pública, o que não se confunde com a disponibilidade do crédito tributário em si. Esta é abarcada pela própria Constituição Federal, em seu artigo 150,§ 6º, que é disciplinado pelo Código Tributário Nacional, sedimentando hipóteses de disponibilidade da receita tributária.

REFERÊNCIAS

ESCOBAR, Marcelo Ricardo. Arbitragem Tributária no Brasil. 1ª ed. São Paulo: Almedina, 2017.

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. In: Escobar, Marcelo Ricardo. Arbitragem Tributária no Brasil. São Paulo: Medina, 2017.

CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei n. 9.307/96. In: Escobar, Marcelo Ricardo. Arbitragem Tributária no Brasil. São Paulo: Medina, 2017.

DESAFIOS E LIMITES DA ARBITRAGEM TRIBUTÁRIA NO DIREITO BRASILEIRO. Disponível em: < http://www.pinheironeto.com.br/Documents/Artigos/Revista_ArbitragemTributaria.pdf>. Acesso em: 29 nov. 2018

MENDONÇA, Priscila Faricelli. Transação e Arbitragem nas Controvérsias Tributárias. 2013. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo.

MACHADO, Hugo de Brito. Transação e arbitragem no âmbito tributário. In: Saraiva Filho, Oswaldo Othon de; Guimarães, Vasco Branco. Transação e arbitragem no âmbito tributário Homenagem ao Jurista Carlos Mário da Silva Velloso. In: Mendonça, Priscila Faricelli. Transação e Arbitragem nas Controvérsias Tributárias. Universidade de São Paulo, São Paulo.

TORRES, Ricardo Lobo. Transação, conciliação e processo tributário administrativo equitativo. In: Saraiva Filho, Oswaldo Othon de; Guimarães, Vasco Branco. Transação e arbitragem no âmbito tributário. Homenagem ao Jurista Carlos Mário da Silva Velloso. In: Mendonça, Priscila Faricelli. Transação e Arbitragem nas Controvérsias Tributárias. Universidade de São Paulo, São Paulo.

_________. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. In: Vade Mecum, 26ª.ed. atual e ampl.- São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

_________. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Institui o Código Tributário Nacional. In: Vade Mecum, 26ª.ed. atual e ampl.- São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

EXECUÇÕES FISCAIS SÃO DOIS TERÇOS DAS EXECUÇÕES PENDENTES DE JULGAMENTO, DIZ CNJ. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2017-set-04/execucoes-fiscais-sao-dois-tercos-execucoes-pendentes-cnj >. Acesso em: 10 dez. 2018.

A EXECUÇÃO FISCAL NO BRASIL E O IMPACTO NO JUDICIÁRIO. Disponível em:< http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/03/2d53f36cdc1e27513af9868de9d072dd.pdf >. Acesso em: 10 dez. 2018.



[1] Aluno do curso de Direito Bacharelado, 9º período, da Universidade Estadual do Maranhão – UEMA. Matrícula: 201419757

[2] Aluna do curso de Direito Bacharelado, 9º período, da Universidade Estadual do Maranhão – UEMA. Matrícula: 201419210

[3] https://www.conjur.com.br/2017-set-04/execucoes-fiscais-sao-dois-tercos-execucoes-pendentes-cnj

[4]http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/03/2d53f36cdc1e27513af9868de9d072dd.pdf

[5] Art. 156. Extinguem o crédito tributário: IV – remissão;

[6] Art. 180. A anistia abrange exclusivamente as infrações cometidas anteriormente à vigência da lei que a concede, não se aplicando: I – aos atos qualificados em lei como crimes ou contravenções e aos que, mesmo sem essa qualificação, sejam praticados com dolo, fraude ou simulação pelo sujeito passivo ou por terceiro em benefício daquele; II – salvo disposição em contrário, às infrações resultantes de conluio entre duas ou mais pessoas naturais ou jurídicas.

[7] Art. 171. A lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e conseqüente extinção de crédito tributário. Parágrafo único. A lei indicará a autoridade competente para autorizar a transação em cada caso.

[8] Art. 156. Extinguem o crédito tributário: III – a transação;

[9] Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário:VI – o parcelamento.   

Como citar e referenciar este artigo:
SANTOS, Gustavo Pereira; SERRA, Luana Ely Morgado. A arbitragem tributária no Brasil e o princípio da indisponibilidade da receita tributária. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2019. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/a-arbitragem-tributaria-no-brasil-e-o-principio-da-indisponibilidade-da-receita-tributaria/ Acesso em: 20 abr. 2024