Direito Tributário

MP do Bem e do Mal

MP do Bem e do Mal

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

     A fúria tributária, alimentada por centenas de medidas provisórias, tende a crescer cada vez mais. O legislador palaciano vem utilizando desse peculiar instituto normativo, derrogador do universal princípio da legalidade tributária, com uma intensidade diretamente proporcional à velocidade com que os recursos financeiros arrecadados desaparecem, misteriosamente, nos escaninhos dos órgãos de administração direta e indireta. Aliás, muitos desses sumiços não são tão misteriosos assim; pelo contrário, são notórios e ostensivos. Acontecem à luz do dia, em balcões de negócios. Só não são percebidos pelos que não querem vê-los ou fingem não enxergá-los.

 

     De há muito perdeu-se o senso ético na elaboração de instrumentos normativos. Normas traiçoeiras, opressoras e afrontosas aos direitos e garantias constitucionais dos contribuintes são elaboradas à toque de caixa como se fossem a coisa mais natural do mundo. A constatação desse fato é assustadora e sumamente preocupante.

 

     Não só confisco de riquezas dos particulares é perpetuada em caráter permanente, por meio de tributos espúrios, como também os mecanismos legais de defesa vêm sendo manietados de ‘n’ maneiras diferentes fazendo tabula rasa aos princípios do devido processo legal, do contraditório e ampla defesa.

 

     Contra intimações computadorizadas da Receita Federal, por exemplo, não cabe impugnação ou recurso, mas apenas o tal de ‘envelopamento’, que consiste em envelopar e protocolar o documento comprobatório da quitação do tributo reclamado. Muitas vezes, o envelope só é aberto depois de ajuizada a execução fiscal, por conta do congestionamento burocrático. Outros institutos truculentos existem como o bloqueio on- line das contas bancárias de devedores, a indisponibilidade universal de bens por meios eletrônicos, o arrolamento de bens pelo fisco, a ação de depósito cominando pena de prisão do devedor, a inativação do CNPJ, a exigência de certidão negativa em situações cada vez mais numerosas, até para levantar o dinheiro do precatório judicial.

 

     Ultimamente vem ganhando corpo a invasão armada de estabelecimentos para apreensão indiscriminada de documentos e bens da empresa, seguida de prisão dos administradores com vistas à futura e eventual constituição do crédito tributário pelo lançamento regular, em uma verdadeira inversão da ordem natural das coisas. Quando representantes do Poder, responsável pela correta aplicação das leis, tomam posição política a favor de invasões até de escritórios de advogados, que patrocinam os interesses das empresas visadas pelo fisco, tem-se a sensação de que o reinado do terror está próximo.

 

     A teimosia do legislador palaciano, a deslealdade para com os cidadãos e a falta de ética no ato de legislar parece não ter limite.

 

     A tentativa de bloquear o acesso dos contribuintes lesados aos Conselhos de Contribuintes, feita pela MP 232, no apagar das luzes de 2004, não deu resultado em virtude da violenta reação da sociedade civil, que provocou o enterro daquela medida provisória, conhecida como ‘Tsunami Tributário’ tamanho o seu efeito avassalador. De quebra, a cidadania conseguiu emplacar a Proposta de Emenda Constitucional nº 371/05 , que proíbe o uso de medida provisória em matéria tributária.

 

     Pois bem, aquela mesma idéia de torpedear o direito do contribuinte, abrigada no seio da sepultada MP nº 232, de triste memória, vem embutida na MP nº 252/05, denominada pelo próprio governo de ‘MP do Bem’ em tácito reconhecimento de que as demais representavam a ‘MP do Mal’.

 

     Refiro-me ao art. 68, onde consta delegação ilegal, inconstitucional, absurda e irracional ao Ministro da Fazenda, para criar “Turmas Especiais’ com a finalidade de julgar determinados casos que o Ministro houver por bem especificar, em função da matéria e do valor envolvidos. O Ministro ficou com a faculdade de criar essas ‘Turmas Especiais’ compostas de quatro membros ‘pro tempore’, designados entre conselheiros suplentes.

 

     Ora, isso tem outro nome: chama-se Tribunal Administrativo de Exceção, para perseguir certos contribuintes, no interesse da rápida arrecadação, dentro do princípio amoral ‘o fim justifica os meios’.

 

     Esse renitente desvio ético é de uma gravidade ímpar, à medida em que revela uma arrogância e prepotência inusitadas, em clara provocação aos sentimentos de justiça e de moralidade, externados pela sociedade, quando conseguiu banir a monstruosa MP 232, que continha o veneno traiçoeiro, ora transplantado para a ‘MP do Bem’.

 

     São medidas como a embutida na irônica “MP do Bem’, que geram a falta de legitimidade do governo, raiz de toda a crise institucional em que se acha mergulhado o País.

 

     É de se lembrar o que está prescrito logo no parágrafo único do 1º artigo da Constituição Federal: todo poder emana do povo. Significa que direitos e garantias fundamentais, consagrados pela Carta Política, porque resultantes da soberania popular, acham-se acima do poder político do Estado. Nenhum homem, governante ou não, órgão ou Poder pode-se colocar-se acima deles.

 

     É chegada a hora de a cidadania atuar para resgatar os valores informativos da sociedade e restabelecer a normalidade das instituições.

 

SP, 27.06.05

 

* Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças.  Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. MP do Bem e do Mal. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/mp-do-bem-e-do-mal/ Acesso em: 29 mar. 2024