Direito Tributário

ISS – Aspectos polêmicos da Lei Complementar nº 116/03

ISS – Aspectos polêmicos da Lei Complementar nº 116/03

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

1. Introdução

 

     A nova lei de regência nacional do ISS, Lei Complementar nº 116/03, que substituiu a LC nº 56/87, trouxe vários pontos controvertidos. Neste artigo iremos analisar apenas quatro dos aspectos, conforme constantes do sumário.

 

 

2. Ampliação da lista de serviços e possível conflito com o icms

 

     Neste aspecto é relevante saber se a elevação em quase ao dobro, da lista de serviços a serem tributados, implicou ou não usurpação de competência tributária estadual, prevista no art. 155, § 2º, inciso IX, letra ‘b’ da CF, que determina a incidência do icms sobre o valor total da operação, quando mercadorias forem fornecidos com serviços não compreendidos na competência impositiva dos municípios.

 

     Ampliar a lista de serviços, ressalvados os serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, por si só, não implica invasão de competência impositiva dos Estados-membros. Ao restringir a competência tributária estadual, prevista na letra ‘b’ do inciso IX retro referido, por via indireta, a lei complementar sob comento fê-lo de forma legítima e constitucional. De fato, a expressão ‘serviços não compreendidos na competência tributária dos Municípios’ não pressupõe a imutabilidade da lista de serviços, mesmo porque a cada dia novos serviços vêm surgindo em função de novas descobertas tecnológicas, capazes de gerar serviços antes inexistentes.

 

     O enxugamento dos subitens de serviços, conflitantes com o ICMS, feito pelo Senado Federal, resultou na intocabilidade da competência impositiva dos Estados-membros.

 

 

3. Inclusão de itens que não configuram serviços

 

     Não existe, nem pode existir a liberdade discricionária do legislador complementar de transformar em serviço aquilo que não o é, nem pode ser. Desde o advento da primeira lista, os diversos itens de serviços vêm sendo elaborados de forma aleatória, sem maiores considerações de natureza jurídica.

 

     Ora, para elaborar a lista de serviços é preciso, antes de mais nada, conceituar o que é serviço. Se a Constituição Federal utilizou a expressão ‘serviços de qualquer natureza’ para fixar a competência impositiva municipal, sem dizer o que é, obviamente, o conceito dado pelo direito privado é vinculante, não podendo o legislador tributário alterar esse conceito. Isso está expresso no art. 110 do CTN.

 

     Serviço significa um bem econômico imaterial, fruto de esforço humano aplicado à produção. ‘É produto da atividade humana destinado à satisfação de uma necessidade (transporte, espetáculo, consulta médica), mas que não se apresenta sob forma de bem material (Cf. Grande Enciclopédia Delta Larousse. Rio de Janeiro : Editora Delta S ª, 1970, vocábulo serviço).

 

     Prestar serviço significa servir, isto é, ato ou efeito de servir. É o mesmo que prestar trabalho ou atividade a terceiro, mediante remuneração. O ISS recai sobre circulação de bem imaterial (serviço). Resulta da obrigação de fazer. O ICMS recai sobre circulação de bem material (mercadoria). Resulta da obrigação de dar.

 

     Basta simples exame ocular da lista para detectar subitens que contemplam como serviços tributáveis os que não poderiam ser assim considerados.

 

 

3.1. Itens de inconstitucionalidade manifesta

 

     Muitos dos itens constantes da lista anexa à LC nº 116/03 são de inconstitucionalidade manifesta, por violação da conceituação do que seja ‘serviços de qualquer natureza’, utilizada pela Constituição Federal para definição de competência impositiva municipal.

     São os casos dos subitens do item 3, que se referem a ‘serviços prestados mediante locação, cessão de direito de uso e congêneres’; no subitem 15.09 há referência a ‘arrendamento mercantil (leasing) de quaisquer bens, inclusive cessão de direitos e obrigações’; o subitem 25.01, por sua vez, contempla fornecimento de ‘caixão, urna ou esquifes’, de ‘flores, coroas e outros paramentos’, ‘aluguel de capela’ etc.

 

     Em todos esses casos, há uma confusão generalizada entre prestação de serviços e locação de bens móveis, regida pelo Código Civil, ou, entre prestação de serviços e fornecimento de bens materiais.

 

     A expressão ‘locação de bens móveis’ constante do item 79 da lista anexa à LC nº 56/87 já foi declarada inconstitucional pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (RE nº 116.121-03-SP, Rel. Min. Octávio Gallotti, Trib. Pleno, decisão não unânime. DJ de 25-05-2001). Por tal razão, o subitem 3.01 da nova lei complementar foi vetado. Outros itens deveriam ter sido vetados pela mesma razão, pois o fundamento da inconstitucionalidade proclamada pelo STF não se restringe à locação de bens móveis como se vê de sua ementa:

 

    “TRIBUTO – FIGURINO CONSTITUCIONAL. A supremacia da Carta Federal é conducente a glosar-se a cobrança de tributo discrepante daqueles nela previstos.

    IMPOSTO SOBRE SERVIÇOS – CONTRATO DE LOCAÇÃO. A terminologia constitucional do Imposto sobre Serviços revela o objeto da tributação. Conflita com a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo considerado contrato de locação de bem móvel. Em Direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido próprio, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo Código Civil, cujas definições são de observância inafastável – artigo 110 do Código Tributário Nacional.”

    (Relator Min. Octavio Gallotti – Relator p/ o acórdão Min. Marco Aurélio – Tribunal Pleno – j. 11.10.2000).

 

     Em síntese, onde não houver envolvimento do esforço humano, aplicado à produção, não há que se falar em prestação de serviço.

 

 

3.2. Serviços cartorários, notariais e de registros

 

     Outros itens de serviços existem, cuja inconstitucionalidade não é manifesta. Dependem de exame profundo de cada caso, à luz da ordem jurídica global. É o caso, por exemplo, do item 21 e do respectivo subitem 21.01, pertinente aos serviços cartorários e notariais, bem como os de registros público em geral, que passaremos a analisar.

 

     Não há, ainda, uma posição doutrinária a respeito, nem jurisprudência firmada. Não há, no subitem 21.01 vício transparente como nas hipóteses retro mencionadas. Sua eventual inconstitucionalidade há ser minudentemente demonstrada, o que não é uma tarefa muito fácil tendo em vista a dúbia redação do art. 236 da CF que assim prescreve:

 

    Art. 236 – Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.

    § 1º. Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.

    § 2º. Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.

    § 3º. O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses.

 

     A redação do caput, ao prescrever que os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público, possibilitaria o entendimento de que esses prestadores de serviços seriam particulares e não agentes públicos. Poder-se-ia entender como concessionários de serviços públicos, isto é, particulares que executam serviços públicos, por delegação do Poder Público competente, submetendo-se ao regime tarifário para percepção do preço do serviço prestado. Mas, a questão não tão simples.

 

     Dúvida não há que, concessionários de serviços públicos podem ser sujeitos passivos de tributos, dependendo a exoneração do encargo tributário da legislação específica de cada ente político. Só que, no caso de concessão de serviço público, impõe-se a licitação por força do disposto no art. 175(1) da CF.

 

     Ora, não existe o certame licitatório na hipótese sob exame. Ao contrário, o § 3º do art. 236 da CF prevê a realização do concurso público de provas e títulos para ingresso na atividade notarial e de registro. E mais, o § 1º dispõe que a lei disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, bem como, definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário. Finalmente, o § 2º prescreve que a lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro. Em nível infraconstitucional, o caput está regulado pela Lei nº 8.935/94, alterada pela Lei nº 10.506/02. E o § 2º acha-se regulado pela Lei nº 10.169/00.

 

     As atividades de notários e de oficiais de registro são exercidos por delegação do Poder Público, ‘em caráter privado’ como diz o texto constitucional, porém, submetidas aos rígidos princípios do direito público. São exercidas por titulares de cargos preenchidos por concurso público de títulos e provas e sujeitas à fiscalização do órgão estatal.

 

     Com efeito, a atividade notarial e de registro é da maior relevância no mundo jurídico. Não diz respeito apenas à autenticidade e segurança dos documentos, adentrando nas áreas probatória e de eficácia dos atos jurídicos. É o que prescreve o art. 1º da Lei nº 8.935/94:

 

    Art. 1º – Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos.

 

     Daí porque a doutrina costuma afirmar que os notários e registradores exercem duas funções básicas distintas e que se completam: a de certificação, atribuindo fé pública, e a de adequação, ou seja, de integração do objetivo prático, externado pelas partes, aos ditames da lei. Desta última função decorre o poder de controle da legalidade dos atos praticados pelas partes, evidentemente, dentro dos limites compatíveis ao exercício dessa atividade. Assim, o notário pode deixar, por exemplo, de lavrar a escritura de compra e venda de bem imóvel, sendo o outorgante um menor púbere, sem assistência dos pais; pode deixar de lavrar, também, um testamento em desacordo com a lei civil. Mas, não pode deixar de lavrar a escritura de compra e venda de bem imóvel, sob o pretexto de que as partes não trouxeram a prova do pagamento do ITBI, porque isso representaria um abuso e um ato ilegal, porquanto a ocorrência do fato gerador desse imposto só se daria por ocasião do registro da escritura.

 

     Por tudo isso, os notários e registradores são considerados servidores públicos lato sensu, tanto é que seus atos estão sujeitos à fiscalização do Poder Judiciário, e percebem remuneração à conta de receita pública derivada (emolumentos fixados por lei). Nesse sentido já se pronunciou o STF (RE nº 178.236, RTJ-162/772). No Estado de São Paulo, esses emolumentos estão regulados pela Lei nº 11.331/02. Outrossim, não há mais dúvida de que esses emolumentos configuram taxas de serviços, a partir do pronunciamento da Corte Suprema, que proclamou sua natureza tributária, ainda, na vigência da ordem constitucional antecedente (RE nº 116.208, RTJ-132/867).

 

     De fato, o serviço notarial, bem como, o de registro são específicos e divisíveis. Têm sua matriz no § 2º do art. 145 da CF e preenchem os requisitos dos artigos 77 e 79 do CTN.

     Logo, esses serviços públicos, não são passíveis de imposição tributária, por meio de impostos. Embora a LC nº 116/03, na definição do fato gerador do ISS (art. 1º), não mais faça referência à prestação, por empreitada ou profissional autônomo, com ou sem estabelecimento fixo, de serviços constantes da lista anexa, conforme preceituava o art. 8º do Decreto-lei nº 406/68, é fora de dúvida de que esse imposto manteve sua característica mercantil. Logo, só é passível de tributação pelo ISS o serviço prestado sob o regime de direito privado, orientado pelos princípios da autonomia da vontade e da licitude ampla, em contraposição ao rígido princípio da estrita legalidade, que rege as relações de direito público. E mais, se são serviços públicos, tanto é que sua execução é delegada pelo Poder Público, a pretendida tributação pelo ISS esbarraria na proibição constitucional do art. 150, VI, a da CF, que instituiu a chamada imunidade recíproca em matéria de impostos.

 

     O subitem 21.01 da lista anexa à LC nº 116/03 é, portanto, inconstitucional. Por conseguinte, do mesmo vício padece o item 21 e o respectivo subitem 21.01 da lista anexa à Lei nº 13.701/03 do Município de São Paulo.

 

(1) Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

 

 

4. Tributação por alíquotas fixas

 

     Com o advento da LC nº 116/03, cujo artigo 10 elencou os dispositivos legais ‘revogados’, incluindo aqueles não passíveis de revogação, logo surgiu estranho posicionamento doutrinário advogando a tese do desaparecimento da tributação fixa das sociedades de profissionais liberais, apesar de não ter sido revogado o § 3º do art. 9º do DL nº 406/68, único artigo, aliás, mantido pela nova lei do ISS.

 

     Desde o início posicionamo-nos pela preservação da chamada tributação fixa, porque os dispositivos revogados – art. 3º, V do DL nº 834/69 e art. 2º da LC nº 56/87 – haviam se limitado a conferir nova redação ao § 3º do art. 9º do DL nº 406/68, isto é, eram normas de efeito concreto, de caráter instantâneo. Ao vir à luz ao mundo jurídico cumpriram a sua única função de derrogar a redação anterior, substituindo-a pela nova, tornando-se, por essa razão, imune à derrogação. Uma coisa é revogar a norma que recebeu nova redação, possível a qualquer tempo, respeitados o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; outra coisa bem diversa é revogar a norma que alterou a redação original, juridicamente impossível.

     Sobre esta matéria, remetemos o leitor ao artigo específico que publicamos (Imposto sobre serviços. Polêmica em torno da chamada tributação fixa. Repertório de Jurisprudência IOB, 2ª quinzena de dezembro/03, nº 24, p. 894-891).

 

     Conforme assinalamos naquele artigo, o certo seria revogar o art. 9º do DL nº 406/68 e acrescentar parágrafos ao art. 7º da LC nº 116/03, a fim de prescrever a tributação fixa dos serviços prestados por profissionais autônomos e pelas sociedades de profissionais liberais. É o que veio a acontecer com a aprovação pelo Senado Federal, em 10 de dezembro de 2003, do projeto de lei de nº 70/02, que altera a lista de serviços. Conforme § 7º do art. 7º da LC nº 116/03 os serviços beneficiados pela tributação fixa, quando prestados por sociedades de profissionais, são os dos itens 4.01, 4.02, 4.06, 4.11, 4.12, 4.13, 4.14, 4.16, 5, 7.01, 10.03, 17.14, 17.16, 17.19 e 17.20. O art. 3º da propositura legislativa aprovada pelo Senado Federal, por sua vez, revoga o art. 9º do Decreto-lei nº 406/68, único dispositivo concernente ao ISS, então mantido pela LC nº 116/03.

 

     A lei do Município de São Paulo, Lei nº 13.701/03, em seu artigo 15, estabeleceu como base de cálculo das sociedades de profissionais liberais o valor de R$800,00 mensais, multiplicado pelo número de profissionais habilitados, sobre os quais incide a alíquota de 5%. Não guarda, ao nosso ver, harmonia com a lei de regência nacional do ISS, que estabelece para o caso o chamado tributo fixo. A lei municipal estabeleceu, por presunção, o preço do serviço prestado, correspondente a R$800,00 por mês, multiplicado por número de profissionais habilitados, sócios, empregados ou não. Mas, essa é uma questão, que merecerá estudo específico em outra oportunidade.

 

 

5. Dedução das subempreitadas

 

     Outro aspecto controvertido diz respeito à suposta eliminação da dedução da base de cálculo do imposto, do valor das subempreitadas, em razão do veto aposto ao inciso II do § 2º, do art. 7º da LC nº 116/03.

 

Na verdade, aquele dispositivo havia sido vetado por vício de redação, que se referia a ‘subempreitadas sujeitas ao imposto’ ao invés de ‘subempreitadas já tributadas pelo imposto’, como constava corretamente na legislação anterior. Tanto é assim que o art. 1º do projeto de lei nº 70/02, retro referido, já aprovado pelo Senado Federal, em 10 de dezembro de 2003, mediante acréscimo do inciso III, restabeleceu a dedução do valor das subempreitadas já tributadas pelo imposto, referente às obras constantes dos subitens 7.02 e 7.05 da lista de serviços anexa a esta Lei.

 

SP, 27.01.04

 

 

* Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. ISS – Aspectos polêmicos da Lei Complementar nº 116/03. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/iss-aspectos-polemicos-da-lei-complementar-no-11603/ Acesso em: 20 abr. 2024