Direito Tributário

A Prova Negativa

A Prova Negativa

 

 

Ives Gandra da Silva Martins*

 

 

Tenho pela Ministra Eliana Calmon particular apreço intelectual. Ministra séria, corajosa, com sólidos conhecimentos jurídicos, independente e cônscia de seu perfil de magistrada, é, sem sombra de dúvida, das grandes expressões da magistratura brasileira.

Introduzo este artigo com essa sincera afirmação, pelo profundo desconforto que me causou, como estudioso e operador do Direito, o voto que proferiu no RESP 758.439-MG (2005/0096913-1), em Acórdão assim ementado: “PROCESSO CIVIL E TRIBUTÁRIO – EMBARGOS À EXECUÇÃO – IPTU – NOTIFICAÇÃO DO LANÇAMENTO – PRESUNÇÃO NÃO AFASTADA.

 

1)  Presume-se a notificação do lançamento dos débitos do IPTU, quando entregue o carnê para pagamento, cabendo ao contribuinte afastá-la, mediante prova de que não recebeu, pelo correio, a cobrança do imposto. (grifos meus)

 

2)  Recurso especial conhecido em parte e, nessa parte, provido”,

 

Acrescentando, na sua decisão que: “caberia ao contribuinte, para afastar a presunção, comprovar que não recebeu pelo correio o carnê de cobrança (embora difícil a produção de tal prova), o que não ocorreu neste feito” (grifos meus).

 

É a própria Ministra quem reconhece ser difícil ao contribuinte provar que não recebeu a cobrança enviada pelo correio. Para mim, trata-se de prova impossível, pois, ou a correspondência foi entregue e esse fato é atestado pelo aviso de recebimento por ele firmado, ou não foi, e a prova da ausência de entrega – prova negativa – não pode ser produzida.

 

No tempo em que comecei a advogar, em 1957, a segurança jurídica era consideravelmente maior. Nos processos judiciais, apenas com citação pessoal ou a prova de regular intimação da parte dos atos do processo – além, evidentemente, de outros meios que constituíssem demonstração inequívoca de sua ciência, como, por exemplo, o ingresso espontâneo nos autos – é que eram deflagrados os prazos  para contestar, recorrer ou mesmo para produzir simples manifestação no processo. Formalidades semelhantes eram exigidas no tocante aos atos administrativos, cuja publicidade é, ainda hoje, segundo a doutrina, requisito de sua própria validade.

 

A necessidade de celeridade nos processos levou, todavia, principalmente as autoridades tributárias, a criarem mecanismos como, por exemplo, presunções, para assegurar a “eficácia” de seus atos, legítimos ou ilegítimos, legais ou ilegais, chegando a extremos nunca antes vistos. Houve inequívoca redução dos direitos do contribuinte, como a ampla defesa, o de ser considerado inocente até que se prove sua culpa (presunção da inocência) como determina a Constituição Federal, no art. 5º, inciso LVII, assim redigido: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

 

Ora, se, para facilidade da Administração, prefere ela utilizar o correio e não toma as cautelas próprias para se assegurar da efetiva entrega ao contribuinte das intimações para recolher tributos, não pode transferir para este o ônus de produzir prova negativa, para beneficiar-se da dificuldade, ou mesmo da impossibilidade, da produção dessa prova!

 

Eu, pessoalmente, apesar de minha formação jurídica, não saberia como provar que não recebi correspondência que alguém alegasse me ter sido enviada, visto que, além de não ser possível documentar a falta de entrega, tampouco poderia invocar o testemunho de alguém que, durante 24 horas, sem dormir, tivesse permanecido à porta de minha casa, para atestar que o correio efetivamente não a fizera chegar às minhas mãos.

 

 

Para mim, talvez, pela deficiência de percepção própria de um senil advogado de 71 anos, tal prova seria impossível, e não apenas “difícil”.

 

Conheço muito bem a preocupação da eminente jurista e Ministra Eliana Calmon com a distribuição da justiça. Sou obrigado, entretanto, a concluir, talvez por minhas naturais deficiências, que, na maioria das vezes, prova negativa não é difícil, mas impossível de ser feita. E não se justifica atribuir esse ônus ao contribuinte, quando é muito mais fácil exigir a prova da entrega (fato positivo) de quem enviou a correspondência.

 

O episódio, todavia, leva-me à triste convicção de que o avanço dos tentáculos do ente estatal contra o cada vez mais indefeso cidadão é uma característica do Estado Moderno. E, no Brasil, o “cidadão” não é verdadeiramente cidadão, mas um mero “administrado” – quase um escravo da gleba -, enquanto que o administrador comporta-se como um verdadeiro “senhor feudal” da Idade Média. Os representantes do povo legislam sem sintonia com a vontade daqueles que representam, quase sempre em causa própria, e, depois, assenhoram-se dos mais variados instrumentos de pressão para assegurarem-se “direitos”, na maioria das vezes, ilegítimos.

 

E, no campo tributário, cada vez mais me convenço de que o Estado é avassalador, e o tributo, o mais importante instrumento de poder, sendo o retorno em serviços públicos apenas um efeito colateral, como penso ter demonstrado em meu livro “Uma teoria do tributo” (Ed. Quartier Latin, 2005).

 

O insuperável Tobias Barreto, de forma sintética e absoluta, dizia que “um país em que o povo não é tudo, o povo não é nada”. Infelizmente, no Brasil, o Estado, como dizia Helmut Kuhn, é uma “mera estrutura do poder”, razão pela qual o Poder é tudo e o cidadão é nada.

 

 

* Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e do Centro de Extensão Universitária – CEU. Site: www.gandramartins.adv.br

 

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Como citar e referenciar este artigo:
MARTINS, Ives Gandra da Silva. A Prova Negativa. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/a-prova-negativa/ Acesso em: 28 mar. 2024