Direito Tributário

CPMF. Celeuma em torno de sua prorrogação

CPMF. Celeuma em torno de sua prorrogação

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

Verdadeira guerra psicológica vem sendo travada através da mídia, que não para de massacrar os assustados contribuintes leitores e ouvintes, com notícias sobre os catastróficos efeitos do que convencionou chamar de atraso na prorrogação da CPMF pelo Congresso Nacional: o aumento do IPI, o aumento do IOF etc. Enquanto se distrai a população com anúncio desses aumentos, outros tributos disfarçados já foram introduzidos no ordenamento jurídico e estão sendo cobrados dos incautos contribuintes.

    

Juridicamente descabe falar em prorrogação da CPMF, que nasceu para vigorar até 18-6-2002, nos termos da Emenda Constitucional nº 21, de 18-3-99, que a instituiu para ser cobrada pelo prazo de 36 meses, respeitado o prazo de carência de 90 dias. Fosse mera prorrogação, certamente, não caberia cogitar-se da figura da anterioridade mitigada, ou seja, do prazo de 90 dias que deve mediar entre a data de vigência da lei criadora da contribuição e a data do início de sua arrecadação. Nessa hipótese, não haveria solução de continuidade na arrecadação do tributo, a menos que se tratasse de prorrogação com aumento da carga tributária.

    

Porém, neste caso em discussão, não se trata de prorrogação, em sentido jurídico. Trata-se, isto sim, de uma recriação, de uma reinstituição da CPMF já fadada a desaparecer do mundo jurídico pelo simples implemento da condição prevista no instrumento normativo que a instituíra, isto é, pelo mero decurso do prazo de 36 meses de cobrança. São as diversas reinstituições, que vêm se sucedendo ao longo do tempo, todas elas com prazo de vida prefixada, que lhes confere o caráter de tributo provisório.

    

Mas não é só. Em outro artigo escrito em dezembro de 2000 – Natureza jurídica da CPMF e o princípio da anterioridade – publicado neste site, demonstramos, com base no art. 4º do CTN, que a CPMF tem a natureza jurídica de imposto. Tanto isso é verdadeiro que a CPMF mantém como fato gerador da obrigação tributária o mesmo fato gerador previsto na Lei Complementar nº 77/73 que instituiu, pela vez primeira, o imposto provisório sobre a movimentação financeira – IPMF – com fundamento na Emenda Constitucional nº 3/93.

    

Ora, mesmo um jejuno em direito sabe que simples alteração do nome de ‘imposto’ para ‘contribuição’ não tem o condão de alterar a natureza jurídica específica do tributo. Da mesma forma, chamar o ‘José’ de ‘Josefina’ não tem o condão de provocar, por si só, a alteração sexual.

    

Assim sendo, em termos de direito, é absolutamente inútil essa histeria para apressar a votação da Emenda Constitucional de ‘prorrogação’ da CPMF. Tanto faz aprovar essa ‘prorrogação’ hoje, amanhã, daqui a três meses, ou ter sido aprovada em janeiro do corrente ano. Se não foi aprovada até o dia 31-12-2001 e, efetivamente não o foi, somente a partir de janeiro de 2003 a CPMF poderá ser cobrada, assim mesmo, se aprovada a sua ‘prorrogação’ até 31-12-2002; do contrário, só em 2004! É o que determina o principio da anterioridade do tributo em relação ao exercício da cobrança, previsto no art. 150, inciso III, letra ‘b’ da CF. Nem é preciso relembrar que esse princípio, por configurar cláusula pétrea, não pode ser ignorado pela Emenda Constitucional, conforme já decidiu o Plenário do STF (Adin 939-DF, Rel. Min. Sydney Sanches, RTJ 151/755). O mesmo se diga em relação ao princípio da anterioridade mitigada, previsto no § 6º do art. 195 da CF.

    

Contudo, o mais grave nessa discussão toda é a declaração de altas autoridades da República, no sentido de que o atraso na votação irá causar um rombo diário na receita pública, comprometendo as despesas fixadas para o exercício em curso. Para o público leigo isso pode funcionar como uma ponderação mais do que razoável. Afinal, toda despesa pública há de ter suporte em igual montante da receita pública. O corte desta, implica necessariamente na diminuição da despesa, em prejuízo parcial da execução de obras e serviços públicos, previstos no plano de ação governamental.

    

Entretanto, o problema é de ordem jurídica. A Lei Orçamentária Anual não poderia, jamais, ter feito a previsão de arrecadação da CPMF para todo o exercício de 2002, mas, tão somente até 18-6-2002. Texto algum permite estimativa de receita com fundamento em futura lei instituidora de tributo. Pelo contrário, tanto a Lei de Diretrizes Orçamentárias, quanto a Lei de Responsabilidade Fiscal prescrevem a estimativa de receita tributária com base em lei tributária material vigente, e nos termos dela. O art. 22 da Lei nº 4.320/64, que institui normas gerais de direito financeiro, chega a exigir que a proposta orçamentária a ser enviada ao Congresso Nacional, pelo senhor Presidente da República, contenha tabelas explicativas das estimativas de receitas contemplando, para efeitos de comparação, a receita arrecadada nos três últimos exercícios anteriores àquele em que se elaborou a proposta; a receita prevista para o exercício em que se elabora a proposta; e a receita prevista para o exercício a que se refere a proposta. Tudo isso, com o nítido propósito de obter uma estimativa, tanto quanto possível, próximo da realidade. A lei não permite sacar do bolso do colete um valor aleatório, para se ajustar ao montante da despesa pretendida, pois, isso seria o mesmo que plantar a semente do desequilíbrio das contas públicas, que a Lei de Responsabilidade Fiscal veio à luz, exatamente, para combatê-lo a todo custo.

    

Logo, descabe cogitação de corte de despesa em razão de atraso na aprovação da Emenda em questão, pois, em obediência aos preceitos legais e constitucionais, a despesa deve ter sido fixada em montante igual ao da receita pública, aí incluída a estimativa de arrecadação da CPMF até 18-6-2002. O que seria razoável sustentar, em termos de direito, é que sem a ‘prorrogação’ da CPMF(1) não seria possível a expansão de despesas, por meio de abertura de créditos adicionais suplementares ou especiais, o que é bem diferente dos anunciados cortes de despesas. É preciso colocar os pingos nos ‘is” e deixar de engabelar a população leiga e desprotegida.

    

Dessa forma, as estrambóticas declarações de autoridades fazendárias, que têm o dever de conhecer a lei, transmitidas pela mídia, deixam o senhor Presidente da República em uma situação bastante desconfortável, pois, revelam indícios de que o supremo mandatário da Nação tenha feito uma estimativa aleatória e irresponsável da arrecadação da CPMF, atentando contra normas orçamentárias, com as conseqüências previstas no art. 85, VI da CF. Preferimos acreditar que isso não aconteceu. Preferimos acreditar que essas declarações estapafúrdias fazem parte da guerra psicológica para apressar a votação da Emenda, no equivocado pressuposto de que se aprovada logo, poderá a CPMF ser cobrada no presente exercício. Incorrendo em uma sucessão incrível de equívocos já se fala em diminuir o prazo da anterioridade mitigada para 50 dias, ao invés de 90 dias que consta da Carta Magna, para compensar o atraso na votação da Emenda.

    

Tudo indica que a cada situação fática ou conjuntura adversa vai-se desmontando o edifício jurídico-constitucional. Ao menor sinal de dificuldade, em nome da governabilidade, vai-se procedendo as alterações constitucionais, por via de Emendas, um processo legislativo subalterno.

E isso é muito ruim para o País, porque mina o objetivo maior da Carta Política, qual seja, o de propiciar e manter um clima permanente de segurança, de paz e de tranqüilidade dos cidadãos, indispensável à construção de um verdadeiro Estado Democrático de Direito como proclamado no primeiro artigo de nossa Constituição cidadã.

 

 

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(1) Fazendo-se a abstração da inconstitucionalidade da cobrança no próprio exercício de sua instituição.

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SP, 18.04.02.

 

 

* Conselheiro do IASP.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. CPMF. Celeuma em torno de sua prorrogação. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/cpmf-celeuma-em-torno-de-sua-prorrogacao/ Acesso em: 16 abr. 2024