Direito Tributário

Apropriação indébita de contribuições. Anistia decretada pela Lei nº 9.639/98.Sua republicação. Efeitos

Apropriação indébita de contribuições. Anistia decretada pela Lei nº 9.639/98.Sua republicação. Efeitos

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

Recentemente a imprensa trouxe ao conhecimento do público em geral a troca de acusações envolvendo o Executivo e o Legislativo quanto a responsabilidade pela equivocada anistia contida no bojo da Lei nº 9.639, de 25 de maio de 1998, publicada no DOU do dia 26-05-98.

    

Essa lei concedeu a anistia das infrações penais relacionadas com o não recolhimento, ao órgão securitário, das contribuições ou outras importâncias retidas ou recebidas de terceiros.

    

O art. 11 e seu parágrafo único, que concederam a anistia, prescrevem o seguinte:

 

“Art. 11 – São anistiados os agentes políticos que tenham sido responsabilizados, sem que fosse atribuição legal sua, pela prática dos crimes previstos na alínea “d” do art. 95 da Lei nº 8.212, de 1991, e no art. 86 da Lei nº 3.807, de 26 de agosto de 1960. Parágrafo único – São igualmente anistiados os demais responsáveis pela prática dos crimes previstos na alínea “d” do art. 95 da Lei nº 8.212, de 1991, e no art. 86 da Lei nº 3.807, de 1960”.

 

    

O parágrafo único teria sido incluído, equivocadamente, pelo que o texto da referida lei foi republicado no DOU do dia 27/9/98, com a supressão daquele parágrafo.

    

O objetivo deste estudo é o de verificar a conseqüência jurídica dessa republicação, isto é, através do exame das regras de interpretação concluir pela produção ou não de efeitos jurídicos da anistia assim decretada.

    

Comecemos pelo exame dos textos legais pertinentes aos crimes anistiados. O art. 95 da Lei nº 8.212/91 considera crime:

 

“d – deixar de recolher, na época própria, contribuição ou outra importância devida à seguridade social e arrecadada dos segurados ou do público”.

 

     

O sujeito ativo do crime, consoante prescrição de seu § 3o, pode ser o “titular da firma individual, os sócios solidários, gerentes, diretores ou administradores que participem ou tenham participado da gestão de empresa beneficiada, assim como o segurado que tenha obtido vantagens”.

   

Esse art. 95 não nominou o crime, mas dispôs em seu § 1o que “no caso dos crimes caracterizados nas alíneas “d”, “ e” e “f” deste artigo, a pena será aquela estabelecida no art. 5o, da lei 7.492, de 16 de junho de 1986, aplicando-se à espécie as disposições constantes dos arts. 26, 27, 30, 31 e 33 do citado diploma legal”.

    

Portanto, a pena é a de reclusão, de dois a seis anos, e multa, correspondente ao crime de apropriação prevista na Lei nº 7.492/86, que define os crimes contra o sistema financeiro nacional, tendo como sujeito ativo as pessoas mencionadas em seu art. 25, quais sejam “o controlador e os administradores de instituição financeira, assim considerados os diretores, gerentes”.

    

O art. 86 da Lei nº 3.807/60, por sua vez, prescreve:

 

“Art. 86 – Será punida com as penas do crime de apropriação indébita a falta de recolhimento, na época própria, das contribuições e de outras quaisquer importâncias devidas às instituições de previdência e arrecadadas dos segurados ou do público.

Parágrafo único – Para os fins deste artigo, consideram-se pessoalmente responsáveis o titular da firma individual, os sócios solidários, gerentes, diretores ou administradores das empresas incluídas no regime desta lei”.

 

    

Aqui foi utilizada a figura criminal prevista no estatuto repressivo básico. A pena, portanto, é a de reclusão de um a quatro anos e multa, na forma do art. 168 do Código Penal. Essa pena é acrescida de um terço quando o agente recebeu a coisa em depósito necessário, ou, em razão de ofício, emprego ou profissão, como prescrevem os incisos I e III do § 1º do citado art. 168. Depósito necessário, como se sabe, é aquele que resulta do desempenho de uma obrigação legal.

    

Não é de boa técnica o legislador penal tomar de empréstimo os tipos criminais previstos tanto no estatuto penal comum, como em legislações esparsas conferindo-lhes tratamentos diferenciados no que tange à dosagem das penas. Afinal, qual o critério utilizado pelo legislador pátrio para punir com diferentes penalidades os agentes do mesmo tipo criminal?

    

As duas anistias decretadas dizem respeito aos crimes de apropriação indébita, porém, definidos em instrumentos normativos diversos e com penalidades diferentes.

    

Contudo, a simples leitura ocular do art. 11 da Lei nº 9.639/98 e de seu parágrafo único revela tratar-se de normas que não têm a mesma natureza jurídica.

    

A norma do parágrafo único tem o nítido propósito de isentar de culpa ou do cumprimento da pena os agentes ativos de crimes do art. 95, “d” da Lei nº 8.212/91 e do art. 86 da Lei nº 3.807/60 em geral e em caráter absoluto, isto é, sem quaisquer condições. Quanto a isso não paira e nem pode pairar qualquer dúvida. O dispositivo é peremptório. Já o preceito do caput, tem caráter restrito, à medida em que beneficia apenas os agentes políticos. E aqui é oportuno definir o que são agentes políticos. São espécies do gênero agentes públicos, os quais, são pessoas físicas que desempenham alguma função estatal em caráter temporário ou definitivo. São pessoas que prestam serviços à Administração Pública, direta ou indireta, sem se sujeitarem à hierarquia funcional ou ao regime estatutário, como ocorre com os servidores públicos. Os agentes públicos, por força das atribuições dos cargos que exercem atuam em nome da Administração Pública, dispondo de competência legal para praticar atos de efeitos internos, como os relativos aos servidores públicos, ou externos, como os decorrentes do Poder de Polícia, das restrições administrativas, das posturas ou da fiscalização em geral. Agora, agentes políticos são apenas as pessoas que integram o primeiro escalão do Governo, investidos em cargos ou funções, por eleição ou por nomeação, para cumprimento de atribuições constitucionais. Alguns autores incluem os membros do Judiciário e do Legislativo dentre os agentes políticos. Entretanto, no nosso entender, constituem agentes políticos somente os governantes e seus auxiliares diretos, que referendam os seus atos, como são os Ministros ou Secretários das diversas pastas do Poder Executivo. Com efeito, é nesse âmbito, exclusivamete, que se executa a linha política de uma gestão administrativa. Dessa forma, membros do Poder Judiciário e do Poder Legislativo não podem ser tidos como agentes políticos. Os agentes políticos (Presidentes da República, Governadores, Prefeitos, Ministros de Estado, Secretários estaduais e municipais etc.) investidos em cargos ou funções públicas para cumprimento, exclusivamente, de missões de interesse público não se confundem com meros administradores de empresa, onde reina o interesse privado. Outrossim, aquela norma do artigo 11 caput tem natureza condicional, porque a anistia envolve apenas aqueles agentes políticos que “tenham sido responsabilizados, sem que fosse atribuição legal sua”.

    

Essa expressão está a indicar que, na verdade, os agentes políticos não têm a atribuição legal de reter ou receber contribuições para, ao depois, promover o seu recolhimento aos cofres da Seguridade Social. Essa circunstância fica bem aclarada pelo exame tanto do § 3o do art. 95 da Lei nº 8.212/91, como também, do parágrafo único do art. 86 da Lei nº 3.807/60 que imputam a responsabilidade penal apenas ao titular da firma individual, aos sócios solidários, aos gerentes e aos diretores ou administradores das empresas. Ora, o agente político, seja ele Ministro de Estado, Secretário da Fazenda, Prefeito, Governador etc. nenhuma semelhança tem com atribuições desempenhadas pelas pessoas retro referidas. Aquelas pessoas, quando se apropriam de recursos retidos ou recebidos de terceiros, o fazem em proveito das empresas a que se acham vinculadas como sócios ou administradores. E a empresas cumprem sempre uma finalidade privada e não pública, mesmo porque o objetivo delas, por sinal, legítimo, é a perseguição do lucro, ao menos no regime capitalista como o nosso.

    

O agente político que venha eventualmente reter ou receber contribuições sociais terá que apropriar as respectivas entradas de dinheiro como receita pública para, ao depois, promover a saída do Tesouro a título de pagamento de despesa legalmente autorizada. Por força do princípio de unidade de tesouraria, previsto na Lei nº 4.320/64, lei de natureza complementar, aplicável no âmbito nacional, todo dinheiro que ingressa aos cofres públicos é receita pública. Por isso não foi recepcionada a conceituação doutrinária, segundo a qual só configura receita a entrada de dinheiro que, integrando-se no patrimônio público sem quaisquer reservas, condições ou correspondência no passivo, vem acrescer o seu vulto, como elemento novo e positivo (Aliomar Baleeiro; Uma Introdução à Ciência das Finanças, Forense, p. 130). Inexiste, assim, a figura de receita provisória, mesmo porque o estorno de receita configura crime de responsabilidade política (art. 10, inciso 3 da Lei nº 1.079/50). O dinheiro ingressado aos cofres públicos só pode dele sair como pagamento de despesas. Inexistindo dotação própria para determinada despesa cabe ao governante providenciar a abertura de crédito adicional especial. E, se existente a dotação, mas esgotada a verba respectiva cumpre ao mesmo governante diligenciar a abertura de crédito adicional suplementar. Uma e outra providência, de natureza legislativa, decorrem do princípio constitucional de fixação de despesas (art. 167, II da CF).

    

Sendo assim, o dinheiro correspondente às contribuições sociais retidas ou recebidas pelo Poder Público, ainda que não venha a ser recolhido aos cofres do Instituto Nacional do Seguro Social, só poderia ter destinação prevista na lei orçamentária anual ou nas leis especiais de abertura de créditos adicionais. N’uma e n’outra hipótese o dinheiro seria empregado em benefício da sociedade em geral. Cumpriria, pois, de qualquer maneira, a finalidade pública que cabe à entidade política perseguir. Somente na hipótese de o agente político apropriar-se do recurso financeiro retido pela Administração Pública que ele representa, ou desviá-lo em proveito próprio ou alheio é que caracterizar-se-ia o crime de peculato previsto no art. 312 do Código Penal. Daí a absoluta distinção entre o agente político e o mero administrador de empresa privada, este sim, passível de ser o agente ativo do crime de apropriação indébita de que cuida o texto normativo sob exame.

    

Não é por outra razão que o Superior Tribunal de Justiça vem decidindo reiteradamente que “a falta de recolhimento das contribuições previdenciárias, descontadas dos servidores municipais, não qualifica o Prefeito como sujeito ativo do crime de apropriação indébita” (Resp nº 40.950/93, Rel. Min. Assis de Toledo, DJ de 6/3/95, p. 4.377; Resp nº 34.830/93, Rel. Min. Edson Vidigal, DJ de 05/02/96, p. 01411; Resp nº 18.233/93, Rel. Min. Vicente Leal, DJ de 12/02/96, p. 2.445; Resp nº 118.050/97, Rel. Min. Cid Flaquer Scartezzini, DJ de 15/12/97, p. 66.483; Resp nº 79.882/95, Rel. Min. José Dantas, DJ de 02/03/98, p. 127).

    

Feita essa explanação é possível sustentar que a norma do art. 11 caput da Lei nº 9.639/98 tem natureza meramente interpretativa. De fato, a apropriação de contribuições sociais retidas na fonte em relação a agentes políticos que exercem a Superior Administração é fato atípico não se caracterizando o delito previsto no art. 95, “d” da Lei nº 8.212/91. Tanto é assim que essa conduta omissiva dos agentes políticos – não transferência ao Instituto Nacional do Seguro Social das contribuições retidas – continuará não configurando o crime de apropriação indébita, ainda que venha ocorrer após o advento da anistia de que cuida o art. 11 sob exame. O beneficiário dessa retenção sempre será a entidade política representada pelo agente político, a qual, persegue uma finalidade pública que, em última análise, beneficia a sociedade com um todo.

    

O parágrafo único do art. 11, como antes salientado, tem natureza diversa, pelo que a sua interpretação, há de ser feita com total abstração de sua situação topológica. Seu conteúdo, na verdade, encerra um dispositivo autônomo e independente, que nada tem a ver com o caput. Efetivamente, o citado parágrafo único anistiou ampla e incondicionalmente todos aqueles agentes particulares que tenham incorrido na prática de crimes aí previstos. Contém todos os elementos necessários à formação de uma norma autônoma. A inserção da expressão “igualmente anistiados os demais responsabilizados” em nada retira a autonomia retro afirmada. Assim, aquele dispositivo surtiu todos os efeitos jurídicos no momento que ingressou no mundo jurídico, o que se deu com a sua publicação no dia 26/5/98 (art. 14).

    

Ocorre que houve republicação do texto legal, no dia seguinte, com a supressão daquele parágrafo, a pretexto de que houve equívoco na redação da lei. Não há, nem pode haver lei equivocada. Cabe falar apenas em equívoco do legislador, corrigível pela edição de nova lei.

    

A lei, depois de elaborada e ingressada na ordem jurídica, passa a ter vontade própria, que é aquela extraída objetivamente da norma prescindindo da vontade, efetiva ou presumível do legislador. É a prevalência da mens legis sobre a mens legislatoris que é prestigiada pelo art. 5o da Lei de Introdução ao Código Civil, que assim prescreve: “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Como se sabe, esse dispositivo é de aplicação genérica abrangendo todos os ramos da Ciência Jurídica, não se limitando ao âmbito do direito privado. É patente o prestígio que essa norma imperativa empresta à corrente que confere prevalência à votade da lei sobre a vontade efetiva ou presumida do legislador, pois ela permite a constante atualização legislativa por via de interpretação adequada, segundo a realidade social reinante, que não é estática, mas dinâmica. Dessa forma, o conceito de bem comum a que se refere o citado texto legal não pode ser tido como algo inflexível, imutável e imodificável. Ao contrário, deve variar no tempo e no espaço de conformidade com as situações conjunturais do momento em que estamos vivendo. A vontade do legislador pode até contribuir para esclarecer a finalidade da lei, porém, não é elemento preponderante a que se deve dar maior atenção, porque, por ser um fator puramente subjetivo, pode não se ajustar ao fim prático do preceito (Cf. Espinola, Tratado de Direito Civil Brasileiro, vol. IV, p. 429-430). Na interpretação do caput do ar. 11 cabe levar em conta a vontade do legislador, que outra coisa não fez senão positivar aquilo que a jurisprudência já vinha proclamando. Quanto ao seu parágrafo único deve prevalecer unicamente a vontade objetiva da lei. Normas de natureza diversa, como as que estamos comentando, devem comportar interpretações sob enfoques diferenciados.

    

Assim sendo, a republicação levada a efeito, não para sanar qualquer inexatidão material, mas para alterar a substância do texto normativo, importou inegavelmente na revogação do texto original, pelo que não pode deixar de reconhecer os efeitos já produzidos, sob pena de afrontar o princípio da irretroatividade da lei, que resulta do princípio inserto no art. 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal. Pouco importa o meio utilizado: se lei nova ou o expediente da “republicação”, fazendo as vezes de novo instrumento normativo.

    

Aquele texto do parágrafo único do art. 11, apesar de não mais existir no ordenamento jurídico, por força do princípio da ultra-atividade do preceito de natureza penal, impedirá que o agente venha a ser responsabilizado criminalmente por fatos que chegarem ao conhecimento das autoridades públicas após a republicação, desde que ocorridos anteriormente ao novo texto legal.

 

 

* Advogado e professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário, Diretor da Escola Paulista de Advocacia e Ex-Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica da

  Procuradoria Geral do Município de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. Apropriação indébita de contribuições. Anistia decretada pela Lei nº 9.639/98.Sua republicação. Efeitos. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/apropriacao-indebita-de-contribuicoes-anistia-decretada-pela-lei-no-963998sua-republicacao-efeitos/ Acesso em: 29 mar. 2024