Direito Tributário

IPVA – O problema da ausência de lei complementar

IPVA – O problema da ausência de lei complementar

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

Repete-se todos os anos, principalmente às vésperas dos prazos de recolhimentos do IPVA – imposto sobre propriedade de veículos automotores – a discussão em torno da constitucionalidade ou não de sua cobrança. Inúmeros são os argumentos contra a cobrança desse imposto:

 

a elaboração da tabela de valor venal dos veículos em desacordo com a lei;

a sua divulgação no próprio exercício da cobrança, ferindo o princípio da anterioridade;

a exacerbação de alíquota em relação ao veículo importado contrariando o art. 152 da CF, que veda a distinção tributária entre bens e serviços, de qualquer natureza, em razão de sua procedência ou destino (a Lei nº 7.644/91 eliminou essa diferenciação introduzida pela Lei nº 7.002/90 que veio a ser considerada inconstitucional pelo E. Tribunal de Justiça, conforme Ap. Cível nº 186.323-2, Rel. Des. Itamar Gaino, 11ª Câmara, vu, de 15.6.92);

ausência de lei complementar definindo o fato gerador do imposto.

    

No presente artigo cuidaremos apenas da questão da ausência de definição do fato gerador da obrigação tributária em nível de lei complementar, em face do estatuído no art. 146 da CF:

 

   

“Cabe à lei complementar:

 

dispor sobre conflitos de competência…….

regular as limitações…….

estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

definição de tributo e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;

………………………………………….

………………………………………….”.

   

Esse imposto, conhecido pela sigla IPVA, surgiu com a Emenda Constitucional nº 27, de 28 de novembro de 1985, que acrescentou o inciso III ao art. 23 da Emenda 1/69, conferindo aos Estados a competência para instituí-lo. A previsão constitucional veio como sucedâneo da proibição de cobrar impostos ou taxas incidentes sobre a utilização de veículos. Todos estão lembrados da celeuma levantada em torno da chamada “Taxa Rodoviária Única” que, de única, só tinha o nome. Por isso o IPVA tem como fato gerador a propriedade de veículo automotor de quaisquer espécie, o que abrange as aeronaves, os veículos terrestres e as embarcações. Alguns julgados que declaram a não incidência desse imposto em relação às embarcações confundem o conceito de veículo automotor com o de veículo terrestre. Tudo aquilo que, transportando a sua própria energia de propulsão, pode ser conduzido na direção desejada constitui veículo automotor. O fato gerador é renovável a cada ano, no dia primeiro, sendo que, em relação ao veículo novo considera-se ocorrido na data de sua primeira aquisição e, na hipótese de importação, na data do desembaraço aduaneiro.

    

Em nosso Estado ele foi instituído, pela vez primeira, através da Lei nº 4.955, de 27/12/85. Daí a ausência de sua disciplinação no CTN, Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Este fato, porém, nunca gerou qualquer contestação dos contribuintes ao longo de sua vigência, talvez porque no regime constitucional antecedente inexistia referência à definição de fato gerador de imposto por lei complementar.

    

Na vigência da Constituição de 1988, a Lei nº 6.606, de 20 de dezembro de 1989, veio a revogar a lei anterior, passando a produzir efeitos a partir de 1º de janeiro de 1990. Essa última lei sofreu ligeiras alterações pelas Leis nºs 7002/90 e 7.644/91 que não interferem no estudo aqui objetivado. Até hoje inexiste lei complementar a respeito e tudo indica que assim continuará. Daí o seu questionamento à luz da ordem constitucional vigente, que confere à lei complementar a atribuição de estabelecer normas gerais em matéria tributária, especialmente sobre a definição, dentre outras coisas, dos fatos geradores de impostos discriminados na Carta Política, como revela a disposição do art. 146 retro transcrito.

    

Examinemos a questão.

    

As atribuições da lei complementar, previstas no art. 146, incisos I, II e III, com exceção das especificações das letras a, b e c, já estavam inscritas na ordem constitucional antecedente (§ 1º, do art. 18 da Emenda 1/69). Ponderável parcela da doutrina especializada sempre entendeu que a competência para estabelecer normas gerais de direito tributário abarcava a definição de fatos geradores de impostos. Nem por isso se questionou a constitucionalidade da cobrança do IPVA instituído, originariamente, em nosso Estado, pela Lei n. 4.955/85. O CTN, Lei 5.172/66, como não poderia deixar de ser, só definiu os fatos geradores, as bases de cálculo e os contribuintes de impostos existentes à época de sua elaboração legislativa, os quais, restaram recepcionados pela ordem constitucional vigente. O problema surge em relação a impostos novos, sem disciplinação no CTN. Relativamente ao adicional do imposto sobre a renda, de competência impositiva estadual, por exemplo, o STF julgou inconstitucional a sua cobrança em vários Estados, inclusivo no nosso Estado, por ausência de lei complementar. Na verdade, o adicional do imposto de renda não é tributo novo, mas uma nova receita pública para o Estado-membro. Como o próprio nome está indicando, é mero adicional do imposto sobre a renda, cujo fato gerador acha-se definido no art. 43 do CTN, só que limitando a sua incidência aos lucros, ganhos e rendimentos de capital.

    

Feitos esses esclarecimentos preliminares, enfrentemos a questão da ausência de lei complementar definindo o fato gerador do IPVA.

    

Dúvida não pode haver que, nos precisos termos do inciso III do art. 146 da CF, cabe ao Congresso Nacional editar normas gerais de natureza tributária, que não se exaurem nas matérias elencadas nas letras “a” a “c”, o que se deduz da expressão – especialmente sobre – utilizada no texto constitucional, indicadora da enumeração exemplificativa. E fez bem o legislador constituinte, pois até hoje não há unanimidade na doutrina quanto ao conteúdo da norma geral em matéria tributária e nem há uma conceituação precisa do que seja norma geral. Ela não se confunde com o princípio, como querem alguns autores, pois este, apesar da sua força vinculativa, não constitui norma jurídica em sentido formal. É verdade que certos princípios são traduzidos por meio de preceitos constitucionais ou legais (princípios da imunidade, da anterioriedade, da legalidade etc.), porém, na realidade, situam-se entre os valores e as normas, isto é, representam o marco inicial na escala de concreção do direito. Daí porque são eles munidos do mais alto grau de abstração a exemplo das normas gerais, que representam o segundo estágio da concretização dos valores jurídicos. O critério da generalidade, invocado por outros autores, também, não serve para distinguir a norma geral. No dizer de José Afonso da Silva esse critério é falho “por envolver uma petição de princípio, pois só é aplicável igualmente à União, aos Estados e Municípios, se for norma geral; quer dizer, primeiro é preciso saber se é norma geral, para depois concluir pela sua aplicação a todas essas esferas” (Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 78). O critério acertado para identificação de normas gerais, ao nosso ver, está na sua natureza uniformizadora. Assim, ao conferir à União o poder de editar normas gerais sobre determinada matéria, a Lei Maior está a outorgar-lhe a faculdade de coordenadora em relação àquela matéria, o que veda o poder de discipliná-la de forma pormenorizada, exaurindo o assunto. Em matéria tributária, pode-se afirmar com grande probabilidade de acerto, todos os institutos ou categorias jurídicas positivados no Livro Segundo do Código Tributário Nacional inserem-se no campo de abrangência das normas gerais, como vem demonstrando a prática, ao longo dos trinta anos de existência desse estatuto específico. Trata-se de uma visão pragmática da questão. Não há negar, contudo, que continua grassando controvérsia doutrinária sobre a matéria. Onde, por exemplo, há alguns anos, havia dúvida acerca da inclusão de certo tema como objeto de norma geral, hoje, aquele mesmo temário está positivado em nível de norma geral e é aceito, pacificamente, como tal, pela generalidade dos doutrinadores.

     A conclusão que se extrai disso tudo é a de que a definição de fato gerador de obrigação tributária sempre esteve incluído no campo de atuação da lei complementar, instituidora das normas gerais em matéria de legislação tributária como, aliás, já apregoava a boa doutrina, desde os primórdios da implantação do CTN.

    

Mas, esse fato não quer dizer que o IPVA não possa ser validamente cobrado.

    

E isso porque a legislação concernente ao direito tributário insere-se no campo de competência concorrente das entidades políticas que compõem o Estado Federal Brasileiro (art. 24, I da CF), onde a União limita-se a estabelecer normas gerais (§ 1º), sem excluir a competência suplementar dos Estados-membros nessa matéria (§ 2º). Inexistindo lei complementar, editada pelo Congresso Nacional, os Estados passam a exercer a competência legislativa plena (§ 3º). A lei estadual só perderá a eficácia naquilo que contrariar a lei federal posterior dispondo sobre normas gerais, vale dizer, a superveniência de lei complementar, editada pelo Congresso Nacional, suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário (§ 4º).

    

Assim, ausente lei complementar da União definindo o fato gerador do IPVA, forçoso concluir que o Estado-membro ficou legitimado a exercer sua competência legislativa plena para instituir e cobrar o imposto que lhe coube privativamente pela discriminação constitucional de rendas tributárias.

    

Esse posicionamento encontra respaldo na jurisprudência do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

 

“Ao regulamentar a incidência do IPVA, através da Lei nº 6.606/89, o legislador paulista esteve nos limites da competência atribuída pelo art. 155, I, “c” da CR para instituir o imposto sobre propriedade de veículos automotores, observado o disposto no art. 97 do CTN que possibilitou definir o fato gerador da obrigação tributária e sua base de cálculo” (Apelação Cível nº 184.683, de 11/2/92, Relator Des. Mello Junqueira). No mesmo sentido Apelação Cível nº 250.631-2, de 27/12/94, Relator Des. Roberto Stucchi.

 

    

Convém esclarecer, desde logo, que não é apenas o Estado-membro, titular da competência supletiva em matéria de normas gerais, que pode exercer a competência legislativa plena para instituir e cobrar imposto privativo. O Município também pode, como veremos.

    

A disposição constitucional da letra a do inciso III não pode ser interpretada literalmente, mas dentro do sistema jurídico-constitucional. A Carta Magna ao instituir a partilha de competência tributária, com a discriminação de impostos cabentes a cada poder tributante, objetivou a preservação do princípio federativo inscrito em seu art. 1º, assegurando às entidades componentes da Federação Brasileira os recursos financeiros indispensáveis à autonomia político-administrativa. Tão importante a atuação desse princípio que o § 6º, do art. 34 do ADCT, para possibilitar a imediata instituição e cobrança de impostos novos pelos Estados e Municípios, suspendeu a aplicação do princípio da anterioridade tributária, em relação a esses impostos, até o dia 31 de dezembro de 1989, determinando , apenas, a observância do prazo de trinta dias entre a data de sua criação ou aumento e a data de sua cobrança. A regra excepcional não fez referência ao IPVA, porque esse imposto preexistia e vinha sendo cobrado sem qualquer questionamento.

    

Disposição constitucional em questão não pode ser interpretada no sentido de subordinar o exercício pleno da competência impositiva à vontade do legislador infra-constitucional (legislador complementar). Se, de um lado, não é compulsório o exercício do poder tributário, que deriva exclusiva e diretamente da Constituição Federal, de outro lado, esse exercício não pode ficar dependendo da boa vontade dos congressistas. Se deles dependesse a discriminação constitucional de rendas tributárias não cumpriria a sua finalidade de propiciar, às entidades políticas componentes da Federação Brasileira, a indispensável independência financeira, asseguradora da autonomia político-administrativa. O princípio federativo, que pela sua importância é erigido à categoria de cláusula pétrea (art. 60, § 4º, I da CF), estaria sendo vulnerado por vias oblíquas.

    

Por isso, acertada a tese de que na omissão do legislador complementar cabe à entidade política contemplada (Estado-membro ou Município) instituir e cobrar o imposto. Na superveniência de lei complementar, a lei ordinária, criadora do imposto, perderá eficácia naquilo que conflitar com aquela. Estados e Municípios receberam da Carta Magna as competências, não para exercerem-nas em proveito próprio, mas para que atuem em prol da comunidade regional e local, respectivamente. Se a criação e cobrança de impostos, principal fonte regular de receitas públicas, ficasse na dependência do legislador complementar restaria inviabilizada a própria formulação de política governamental pelas entidades periféricas.

 

 

* Advogado em São Paulo e Professor de Direito Financeiro e Tributário

 

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. IPVA – O problema da ausência de lei complementar. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/ipva-o-problema-da-ausencia-de-lei-complementar/ Acesso em: 16 abr. 2024