Direito do Trabalho

A reforma trabalhista analisada sob a ótica do acesso a justiça

Resumo

Numa busca incansável por celeridade e modernização, a reforma trabalhista pode, em verdade, ter se revelado como verdadeiro óbice ao acesso à justiça. Tendo como fundamento primacial a obra de Capelletti e Garth, Acesso à justiça, poderemos confirmar, de modo lamentável, a hipótese levantada.

Palavras-chave: Acesso à justiça; reforma trabalhista; constitucionalidade; trabalhador.

Abstract

In an untiring search for speed and modernization, labor reform may indeed have proved to be a real obstacle to access to justice. With Capelletti and Garth’s Access to Justice as its fundamental basis, we can confirm, in a regrettable way, the hypothesis raised.

Introdução

O termo “Modernização” está na moda. Sendo assim, se irá modernizar, de maneira automática significa dizer que será bom, que será positivo. Todavia, não é tão simples assim, principalmente quando essa modernização se dá sobre a relação de empregador e empregado, uma relação histórica de conflitos e pesares.

Todo e qualquer ajuste, no que concerne ao campo jurídico, a fim de buscar a efetividade da Justiça não só é necessário como é vital para a aproximação, cada vez maior, da harmonia social. Assim, e com esse fim, modernizações são bem vindas.

No entanto, se a modernização causa separação, causa ruptura com tudo aquilo que diz respeito a possibilidade de acesso, com a dignidade daqueles que já começam como parte mais vulnerável, ela não pode ser bem vinda e deveria causar uma atitude reflexiva em toda uma dada sociedade.

Desta forma, será demonstrado, de maneira sintética, o avanço da busca por acesso à justiça e a contradição da reforma trabalhista e sua modernização, na tentativa de tornar claro o retrocesso e os perigos da não atenção a tudo aquilo que dificulta, que obsta a possibilidade de acesso à justiça.

O avanço do conceito de acesso à justiça

Significante é a transformação que o acesso à justiça vem experimentando ao longo dos anos. Durante os séculos XVIII e XIX, os Estados liberais entendiam o acesso à justiça como um direito natural que não necessitava da interferência estatal (CAPPELLETTI, GARTH, 1988, p. 8). Em decorrência dessa concepção, o Estado apenas garantia que esse direito não fosse violado. Nas palavras dos autores Mauro Cappelletti e Bryant Garth:

Nos estados liberais “burgueses” dos séculos dezoito e dezenove, os procedimentos adotados para solução dos litígios civis refletiam a filosofia essencialmente individualista dos direitos, então vigorante. Direito ao acesso à proteção judicial significava essencialmente o direito formal do indivíduo agravado de propor ou contestar uma ação. A teoria era a de que, embora o acesso à justiça pudesse ser um “direito natural”, os direitos naturais não necessitavam de uma ação do Estado para sua proteção. Esses direitos eram considerados anteriores ao Estado; sua preservação exigia apenas que o Estado não permitisse que eles fossem infringidos por outros. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 9) (grifo nosso)

Entre outros fatores, o Estado ficava inerte quanto à possível ignorância e dificuldade de muitos cidadãos com relação ao uso efetivo da justiça e à capacidade de conhecimento pleno de seus direitos e dos meios para a defesa destes (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 9). Essa ausência estatal também alcançava a desigualdade existente entre as partes no que concerne aos recursos financeiros para litigar em juízo e pela diferença de acesso efetivo à justiça e ao sistema (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 9).

Além disso, nesse período o estudo jurídico se fazia extremamente formal, alheio à realidade e ao caso concreto. Concentravam-se os estudos apenas no sistema abstrato ou, quando finalmente extrapolavam esse pensamento, julgavam as normas de procedimento fundamentando-se em “sua validade histórica e em sua operacionalidade em situações hipotéticas” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 10).

Em razão não apenas desse sistema liberal individualista, assim como pela manutenção de um estudo jurídico dogmático em que ambos não se preocupavam com os inúmeros problemas e diferenças sociais existentes, o acesso à justiça da época se exteriorizava como um “acesso formal, mas não efetivo à justiça, correspondia à igualdade, apenas formal, mas não efetiva” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 9).

Entretanto, com o crescimento e desenvolvimento dessa sociedade liberal, houve uma drástica mudança nos direitos humanos e, a partir disso, passou a preponderar mais o coletivo em detrimento do individual, superando a visão individualista acima retratada (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 10). “O movimento fez-se no sentido de reconhecer os direitos e deveres sociais dos governos, comunidades, associações e indivíduos” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 10).

Afirmam Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 10 e 11) que esses novos direitos humanos criados – dentre os quais se inclui o direito ao trabalho – são essenciais para que todos os cidadãos tenham maior efetividade e acessibilidade aos outros direitos que já eram proclamados pelo sistema jurídico. Assim, ficou evidente a necessidade e importância de uma atuação Estatal para a garantia de que os direitos sociais básicos passassem a ser acessíveis e desfrutados por todos.

Mauro Cappelletti e Bryant Garth são categóricos e brilhantes ao concluírem que:

De fato, o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação. O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p.11 e12) (grifo nosso)

Desse modo, entende-se que o acesso à justiça e, consequentemente, a prestação jurisdicional deverão ocorrer de modo a buscar uma efetiva e eficiente garantia de direitos e solução das lides. Mais além, o acesso à justiça é pressuposto essencial para a formação de um sistema jurídico que supere a mera proclamação de direitos e passe a efetivamente garanti-los. Portanto, compreende-se que o acesso à justiça é um direito fundamental.

Já no que concerne ao ordenamento jurídico brasileiro, como significantemente pontua José Renato Nalini (2000, p. 19), a partir da sociedade moderna, o acesso à justiça extrapolou o âmbito teórico para, além de alcançar fundamento na Constituição, também retratar o empenho constante de todos os operadores jurídicos brasileiros no que tange à efetivação do acesso à justiça, em especial aos que dela sempre foram excluídos – empenho este que foi fortemente mitigado pelos elaboradores da Reforma Trabalhista de 2017.

A Constituição Federal de 1988 é clara quanto a sua intenção de intensificar e melhorar o acesso à justiça. Nos dizeres de José Renato Nalini:

A Constituição do Brasil de 1988 é pródiga em exemplos de preceitos demonstradores da intenção de favorecer o acesso de todos os homens ao benefício da justiça. Isso, a partir do art. 1º, III, que estabelece, como fundamento da República, a dignidade da pessoa humana. Sem a via aberta ao Judiciário nenhuma pessoa terá reconhecida em plenitude sua dignidade, quando vulnerada em seus direitos. Irradia-se pelo art. 3º, já invocado, a enunciar que constitui objetivo fundamental da República do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, erradicando a pobreza e a marginalização e promovendo o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação – incisos I, III, e IV. […] Existe destinação expressa do Judiciário, por vontade do constituinte, a atender ao maior número de reclamos. Não é necessário recorrer-se a interpretações sofisticadas para concluir que os responsáveis pela justiça institucionalizada têm compromisso consistente com a multiplicação de portas de acesso à proteção dos direitos lesados (NALINI, 2000, p. 42).

A partir disso, evidencia-se que a prestação jurisdicional e o processo devem ocorrer, conforme bem fundamenta a Constituição pátria, de modo a transformar o acesso à justiça em uma realidade, ou seja, visando sempre o máximo de concretização possível, maior atendimento e menor desigualdade entre os litigantes. É necessário que todo o ordenamento jurídico brasileiro, inclusive a legislação trabalhista, busque um acesso efetivo à justiça e não mera afirmação desse direito.

Obstáculos ao acesso à justiça

Se, por um lado, o acesso à justiça completamente efetivo seria aquele em que as partes fossem totalmente iguais, ou seja, aquele no qual as diferenças entre os partícipes fossem eliminada por completo, por outro, alcançar essa plenitude é ilusório. Assim, de modo mais aprofundado, nas palavras de Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 15):

A efetividade perfeita, no contexto de um dado direito substantivo, poderia ser expressa como a completa “igualdade de armas” – a garantia de que a conclusão final depende apenas dos méritos jurídicos relativos das partes antagônicas, sem relação com diferenças que sejam estranhas ao Direito e que, no entanto, afetam a afirmação e reivindicação dos direitos. Essa perfeita igualdade, naturalmente, é utópica. (grifo nosso)

Apesar da impossibilidade de erradicar toda e qualquer diferença existente entre os litigantes que acessarem a justiça, deve-se, em alternativa, caminhar para a eliminação do maior número possível dessas desigualdades e obstáculos. Como propõem Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 15) “a identificação desses obstáculos, consequentemente, é a primeira tarefa a ser cumprida”. Por isso, esse tópico terá como escopo a análise desses obstáculos.

Dentre os bloqueios existentes no alcance a esse direito fundamental tratados pelos autores, dar-se-á ênfase a dois deles, visto sua maior recorrência e pela grande relação com as alterações trazidas pela Lei n. 13.467/17: i) custas judiciais; e ii) “possibilidades das partes” (CAPPELLETTI e GARTH, 1988, p. 21).

No Brasil e em inúmeras outras sociedades, a prestação jurisdicional vem atrelada a muitos gastos. Como observam Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 16) alguns desses gastos são de responsabilidade do Estado – caso do salário dos juízes e de seus auxiliares e também da estrutura física para a prestação jurisdicional. Contudo, praticamente todas as demais despesas essenciais para solucionar a lide são atribuídas às partes litigantes como, por exemplo, os honorários advocatícios contratuais e sucumbenciais e determinadas custas judiciais. Esses custos, muitas vezes altos, acabam se tornando um percalço no acesso à justiça e aumentam o ônus da demanda.

A barreira transposta pelos altos custos de um processo também se encontra em sistemas nos quais vigora o princípio da sucumbência. Em outras palavras, a parte pode desembolsar grandes valores no litígio, não vencer a causa e ainda ser obrigada a pagar honorários sucumbenciais ao vencedor – como é o caso da Inglaterra, França, Alemanha e também do Brasil (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 16 e 17). Como relevantemente afirmam Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 17), nestes casos, “a penalidade para o vencido em países que adotam o princípio da sucumbência é aproximadamente duas vezes maior – ele pagará os custos de ambas as partes”.

Outrossim, não se pode esquecer ainda que o essencial gasto despendido pelas partes é o que se refere aos honorários advocatícios contratuais e “qualquer tentativa realística de enfrentar os problemas de acesso [à justiça] deve começar por reconhecer esta situação: os advogados e seus serviços são muito caros” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 18).

Inserido na barreira ao acesso à justiça criada pelas custas, encontra-se o tempo. A demora para a resolução de conflitos costuma ser consideravelmente alta, inclusive na justiça trabalhista que tem como um de seus princípios a celeridade processual.

A questão pode ser constatada por meio do relatório Justiça em Número 2018 divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça o qual exibe, entre outras questões, a taxa de congestionamento – trata-se de um “indicador que mede o percentual de casos que permaneceram pendentes de solução ao final do ano-base, em relação ao que tramitou” (CNJ, 2018, p. 72). Assim, por meio dos dados disponibilizados (CNJ, 2018, p. 90), evidencia-se que, apesar da Justiça do Trabalho apresentar 55,2% de taxa de congestionamento, o que é consideravelmente menor comparada à Justiça Estadual (74,5%) e à Justiça Federal (73,4%), ainda não alcançou a celeridade e eficiência desejáveis.

Os impactos aos litigantes dessa demora processual são vorazes visto que acarretam em intensificação dos custos e, consequentemente, possibilitam o constrangimento da parte hipossuficiente na demanda a desistir do processo ou a aceitar acordos significantemente abaixo daquilo a que teriam direito (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 20).

Além disso, como abordado, as partes impossivelmente entram em litígio em igualdade plena de condições e, portanto, desfrutam de vantagens e desvantagens. É o que Mauro Cappelletti e Bryant Garth denominam de “possibilidades das partes” o que, segundo os mesmos autores (1988, p. 21), “é o ponto central quando se cogita da denegação ou da garantia de acesso efetivo”.

Há diferentes questões que provocam esse desequilíbrio entre as partes e, consequentemente, dificultam o acesso à justiça. Dentre elas, podem ser citadas as mais recorrentes: recurso financeiro, conhecimento do direito processual e material, e, inclusive, a experiência em litígios. Como observaram Mauro Cappelletti e Bryant Garth:

A “capacidade jurídica” pessoal, se se relaciona com as vantagens de recursos financeiros e diferenças de educação, meio e status social, é um conceito muito mais rico, e de crucial importância na determinação da acessibilidade da justiça. Ele enfoca as inúmeras barreiras que precisam ser pessoalmente superadas, antes que um direito possa ser efetivamente reivindicado através de nosso aparelho judiciário (CAPPELLETTI e GARTH, 1988, p. 22).

Os indivíduos com maior recurso financeiro, obviamente, são capazes de arcar mais facilmente com advogados, custas e honorários. Estes também são capazes de suportar a demora dos processos judiciais e de desembolsar maiores valores, comparados a outras partes. Ademais, saem em significativa vantagem – em detrimento daqueles que desconhecem a disciplina e/ou sequer reconhecem seus direitos – os cidadãos que possuem maior conhecimento jurídico, de seus direitos, da forma de propor uma ação ou de se defender de um processo, e, inclusive, os que ostentam maior experiência na prestação jurisdicional (CAPPELLETTI e GARTH, 1988, p. 22 a 25).

O cenário acima retratado pode ser facilmente relacionado com a relação trabalhista a qual, notoriamente, encontra-se eivada de significativa desigualdade financeira e desvantagens do trabalhador em relação ao empregador. Importante salientar, como será visto ao longo desse trabalho, que após a Lei n. 13.467/17 essas questões foram, inclusive, intensificadas.

Ainda dentro do tema das barreiras ao acesso à justiça tratadas por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, a falta de conhecimento e informação da população a respeito de como propor ação judicial é extremamente impactante no acesso à justiça e, quanto a isso, é categórica a seguinte conclusão:

Na medida em que o conhecimento daquilo que está disponível constitui prérequisito da solução do problema da necessidade jurídica não atendida, é preciso fazer muito mais para aumentar o grau de conhecimento do público a respeito dos meios disponíveis e de como utilizá-los. (ABEL-SMITH; ZANDES; e CASS, 1973, p. 222 apud CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 23)

Desse modo, fica evidente que é de extrema importância que o conhecimento mínimo jurídico da população a respeito de seus direitos e de como propor uma ação ou se defender desta seja ampliado o máximo possível visto que essa conscientização se caracteriza como pressuposto essencial para o indivíduo acessar a justiça e, consequentemente, solucionar sua lide.

Outra barreira mencionada e que merece ser abordada é a experiência dos litigantes, ou seja, o contato frequente, ocasional ou nulo que a parte tem com o processo judicial interfere bastante no seu acesso à justiça. É o que Marc Galanter (1974 e 1975 apud CAPPELLETTI e GARTH, 1988, p. 25) chama de litigantes “eventuais” e litigantes “habituais”. Os litigantes habituais apresentam maiores vantagens já que, por exemplo, além de terem maior contato com o Direito, o que permite a preparação mais satisfatória da demanda, também gozam de chances substancialmente maiores de se relacionar informalmente com os funcionários do judiciário[1] (CAPPELLETTI e GARTH, 1988, p. 25). Relacionando os estudos de Marc Galanter, acima retratados, com a realidade da justiça trabalhista brasileira, evidencia-se que as empresas, predominantemente, apresentam expressiva experiência quando comparadas à realidade do trabalhador. Enquanto o empregado, muitas vezes, encontra-se em sua primeira demanda judicial, a sua empregadora já acumula numerosos processos.

É importante ressalvar que todos esses obstáculos anteriormente mencionados se expressam de formas diferentes em cada indivíduo. Em outras palavras, o efeito dessas barreiras pode ser maior ou menor, dependendo de cada pessoa, instituição e demandas envolvidas (CAPPELLETTI e GARTH, 1988, p. 24). Esta conclusão, entretanto, não altera o fato de que a expressiva maioria das pessoas, incluindo os trabalhadores, não é capaz, por si só, de superar os grandes obstáculos acima narrados.

As três ondas de acesso à justiça

Conforme Primeiramente, é de grande valia e importância apontar a reflexão feita por Mauro Cappelletti e Bryant Garth quanto à dificuldade que os indivíduos comuns enfrentariam para garantir seus direitos por meio de ações judiciais, quando presentes grandes obstáculos ao acesso à justiça, e de como superar isso:

É evidentemente uma tarefa difícil transformar esses direitos novos e muito importantes – para todas as sociedades modernas – em vantagens concretas para as pessoas comuns. Supondo que haja vontade política de mobilizar os indivíduos para fazerem valer seus direitos – ou seja, supondo que esses direitos sejam para valer – coloca-se a questão fundamental de como fazê-lo. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 29)

Como dito anteriormente, é ilusório buscar tanto pela extinção de toda desigualdade existente entre as partes, assim como por um pleno e eficaz acesso à justiça. Todavia, há meios que podem diminuir essas diferenças e também garantir um maior acesso à justiça.

Logo, neste momento, serão analisadas algumas soluções práticas aos problemas de acesso à justiça, trazidas por Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 31) por meio do que eles denominam de “ondas” ou movimentos do acesso à justiça. Em síntese, essas três ondas assinalam as tendências do mundo ocidental de aplicação de medidas que visassem à efetivação do direito fundamental de acesso à justiça (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 31).

Primeira onda de acesso à justiça

A primeira solução vista para os entraves ao acesso à justiça é a assistência judiciária gratuita. Os países devem se concentrar em viabilizar serviços jurídicos aos hipossuficientes. Quando não obrigatório, é de extrema importância à parte estar auxiliada por um advogado já que este é o profissional mais capacitado para realizar os difíceis procedimentos e encontrar todos os direitos necessários para o ajuizamento ou defesa de uma ação (CAPPELLETTI, GARTH, 1988, p. 32).

Em decorrência disso, “os métodos para proporcionar a assistência judiciária àqueles que não a podem custear são, por isso mesmo, vitais” (CAPPELLETTI, GARTH, 1988, p. 32). Assim, quanto mais desenvolvido e complexo um ordenamento jurídico, maior a importância e necessidade do demandante estar amparado por um advogado e, em caso do litigante não prover recursos financeiros suficientes para isso, é primordial o auxílio da assistência judiciária gratuita.

Desse modo, mostra-se indispensável que o Estado adote medidas ativas e positivas para que o sistema de assistência judiciária gratuita seja realmente eficiente. Por essa razão que ao longo das décadas os países que aderiram à primeira onda de acesso à justiça buscaram reformar e aperfeiçoar seus sistemas de assistência judiciária para que não se exteriorizassem como uma contradição ao acesso à justiça (CAPPELLETTI, 1988, p. 35).

Sobre esse primeiro movimento em busca de um acesso à justiça com menores barreiras, nos dizeres de Souto Maior e Valdete Severo (2017, p. 66):

A primeira onda, que diz respeito aos obstáculos econômicos de acesso à justiça, consiste, por isso mesmo, na preocupação com os problemas que os pobres possuem para defesa de seus direitos. Esses problemas são de duas ordens: judicial e extrajudicial. Extrajudicialmente, preocupa-se com a informação aos pobres dos direitos que lhe são pertinentes (pobreza jurídica) e com a prestação de assistência jurídica nas hipóteses de solução de conflitos por órgãos não judiciais. Judicialmente, examinam-se os meios a que os pobres têm acesso para defenderem, adequadamente, esses direitos (pobreza econômica). Para eliminação do primeiro problema, o movimento sugere a criação de órgãos de informação a respeito dos direitos sociais. Para supressão do segundo, a eliminação ou minimização dos custos do processo, inclusive quanto aos honorários de advogado. (grifo nosso)

Ao analisar essa primeira onda, Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 35) destacam a importância de acompanhar as três principais medidas estatais e seus limites rumo à reforma proposta por esse movimento: i) sistema judicare; ii) advogado remunerado por cofres públicos; iii) combinação dos dois primeiros modelos.

Os autores apontam como a maior medida dentro da assistência judiciária gratuita o sistema judicare o qual fora adotado por países como Áustria, Inglaterra, Holanda, França e Alemanha Ocidental (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 35). Neste sistema, a assistência judiciária é concedida como direito e para todos que se enquadrarem nas exigências legais, sendo os advogados particulares pagos pelo Estado.

Como nesse sistema judicare o advogado é pago normalmente, tal qual seria se o próprio cliente tivesse condições de arcar com os honorários advocatícios contratuais, a lista de advogados disposto a participar é consideravelmente grande. Além disso, destacam Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 36) que como, majoritariamente, é preciso encaminhar pedido de assistência judiciária gratuita para conseguir esse recurso, o sistema inglês, após a reforma de 1972, possibilitou que o demandante usufruísse de até 25 (vinte e cinco) libras esterlinas em serviços jurídicos, não exigindo autorização formal para isso – assim, o requerente poderia, inclusive, encaminhar o pedido de assistência judiciária sem gastar com isso.

Apesar de todos esses pontos positivos e eficientes, o sistema não é ausente de críticas e defeitos, como pode se extrair do trecho abaixo:

O judicare desfaz a barreira de custo, mas faz pouco para atacar barreiras causadas por outros problemas encontrados pelos pobres. Isso porque ele confia aos pobres a tarefa de reconhecer as causas e procurar auxílio; não encoraja, nem permite que o profissional individual auxilie os pobres a compreender seus direitos e identificar as áreas em que se podem valer de remédios jurídicos. […] Se, dúvidas, em sociedades em que os riscos e os pobres vivem separados, pode haver barreiras tanto geográficas quanto culturais entre os pobres o advogado. […] Mais importante, o judicare trata os pobres como indivíduos, negligenciando sua situação como classe. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 38 e 39)

A segunda medida em direção à primeira onda de acesso à justiça tratada pelos autores italianos é a do advogado remunerado pelos cofres públicos. Neste sistema, “os serviços jurídicos devem ser prestados por escritório de vizinhança, atendidos por advogados pagos pelo governo e encarregados de promover os interesses dos pobres, enquanto classe” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 39 e 40) – trata-se de uma equipe de advogados assalariados e não de uma advocacia privada igual ao sistema judicare.

Em oposto ao sistema judicare acima relatado, o sistema de advogado remunerado pelos cofres públicos visa que os indivíduos financeiramente menos favorecidos conscientizem-se de seus direitos e aspirem por advogados para assisti-los na busca pela efetivação desses direitos (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 40). Ademais, nesse sistema os advogados não apenas são orientados sobre os obstáculos enfrentados pelas classes mais baixas para que, dessa forma, essas barreiras possam ser melhor confrontadas, mas também têm como propósito a busca pela ampliação dos direitos dos hipossuficientes como classe (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 40).

Em suma, além de apenas encaminhar as demandas individuais dos pobres que são trazidas aos advogados, tal como no sistema judicare, esse modelo norte-americano: 1) vai em direção aos pobres para auxiliá-los a reivindicar seus direitos e 2) cria uma categoria de advogados eficientes para atuar pelos pobres, enquanto classe (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 41).

Assim como o sistema judicare, o sistema de remuneração do advogado pelos cofres público não é perfeito. Os escritórios de vizinhança têm que estabelecer a divisão de recursos (que são limitados) a ser realizada entre todos os casos que precisam atender dentre os quais estão incluídos tanto casos importantes para determinados indivíduos, como casos de relevância social (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 41).

Além disso, algumas críticas se posicionam no sentido de que ao atender o hipossuficiente, o advogado não o trata como indivíduo comum que apenas é desprovido de recursos financeiros, mas de forma paternalista (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 41). O problema mais significativo desse sistema, na opinião dos italianos Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 41), “é que ele depende de apoio governamental para atividades de natureza política, tantas vezes dirigidas contra o próprio governo”.

A terceira e última medida estatal em busca da assistência judiciária gratuita abordada por Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 43) é a da combinação dos dois modelos dispostos acima, ou seja, alguns Estados optaram por combinar o sistema judicare com o sistema do advogado remunerado pelos cofres públicos já que ambos apresentam prós e contras. Entretanto, cada país adotou essa combinação de modo particular, alguns mais tendenciosos ao sistema judicare e outros, ao sistema do advogado remunerado pelos cofres públicos.

A vantagem desse sistema combinado, segundo os mesmos autores, é que concede aos demandantes a opção de escolher entre os serviços personalizados prestados por um advogado particular ou a capacitação especial desempenhado pelos advogados de equipe (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 44). “Dessa forma, tanto as pessoas menos favorecidas, quanto os pobres como grupo, podem ser beneficiados” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 44).

Por fim, a respeito da assistência judiciária gratuita, é importante ressaltar uma pequena observação. Essa primeira onda não é suficiente para a busca da redução das barreiras ao acesso à justiça. Por isso, é necessário que outras medidas também ocorram. Dentre elas, primeiro, é de grande relevância que exista considerável número de advogados; além disso, estes advogados precisam estar dispostos a dar assistência aos hipossuficientes que não possam arcar com os honorários contratuais de um advogado (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 47). Para essa segunda questão é necessário que haja verba significativamente alta o que, claramente, é uma grande dificuldade para o Estado. 

Segunda onda de acesso à justiça

A segunda onda a caminho da redução dos obstáculos do acesso à justiça seria o da representação dos interesses difusos como, por exemplo, o dos consumidores. Mais especificamente, esse movimento dá enfoque à reflexão a respeito das normas tradicionais essenciais do processo civil (substancialmente individualistas) e da função dos tribunais e suas inadequações quanto à tutela dos interesses coletivos e difusos (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 49).

Para alcançar essa representação dos interesses difusos, a segunda onda visa sopesar a adequação das instituições jurídico-processuais em decorrência da produção de um alto número de interesses transindividuais os quais, muitas vezes, são de difícil satisfação dentro do processo civil tradicional o qual é, sobretudo, de cunho individualista (MAIOR; SEVERO, 2017, p. 66). “As regras determinantes da legitimidade, as normas de procedimento a atuação dos juízes não eram destinadas a facilitar as demandas por interesses difusos intentadas por particulares” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 50).

Algumas das reformas no sentido desse segundo movimento podem ser destacadas, conforme Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 50 e 51): i) legislação e jurisprudência passaram, gradualmente, no que diz respeito à legitimação ativa, a permitir que indivíduo ou grupos demandem em representação aos direitos coletivos – já que nem todos os titulares dos direitos difusos podem estar presentes em juízo; ii) para a proteção desses direito coletivos foi necessário também a mudança da função do juiz e de procedimentos basilares como a citação; iii) modificação da coisa julgada para que todos sejam obrigados a cumprir a decisão para esta ser efetiva.          

Terceira onda de acesso à justiça

A terceira e última onda é significativamente mais ampla e recebe o nome de enfoque do acesso à justiça. Essa reforma inclui a advocacia (seja a judicial ou a extrajudicial) e foca seus esforços nas instituições, nos mecanismos e nos procedimentos aplicados no processamento e na prevenção de demandas, visando maior efetividade no combate aos obstáculos ao acesso à justiça (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 67 e 68). Esse movimento preocupa-se em desenvolver um sistema que possua procedimentos mais simples de modo a permitir a efetivação de novos direitos sociais criados pelas legislações – o que não ocorreria se a prestação jurisdicional permanecesse sem mudanças (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 68).

Nas palavras dos autores italianos Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988, p. 67 e 68), pode-se sintetizar essa terceira onda do seguinte modo:

Essa “terceira onda” de reforma inclui a advocacia, judicial ou extrajudicial, seja por meio de advogados particulares ou públicos, mas vai além. Ela centra sua atenção no conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir disputar nas sociedades modernas. […] Seu método não consiste em abandonas as técnicas das duas primeiras ondas de reforma, mas em tratá-las como apenas algumas de uma série de possibilidades para melhorar o acesso (grifo nosso).

Por fim, em relação a tudo que foi exposto dentro desse capítulo, evidencia-se que para existir acesso à justiça é preciso, anteriormente, um processo efetivo. Entretanto, ressalvam os processualistas Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988) que o termo efetividade é bastante vago já que só é alcançado quando ambas as partes encontram-se em igualdade de forças de modo que a decisão submeta-se apenas aos direitos debatidos no processo e não a outras questões externas como recurso financeiro e conhecimentos jurídicos.

Como essa igualdade é utópica, ou seja, impossível de acontecer, a plena efetividade do direito ao acesso à justiça não será alcançada, mas deve-se sempre movimentar o sistema no sentido de fornecer o máximo possível dessa efetividade por meio da identificação e redução dos obstáculos à garantia do acesso à justiça a partir de reformas no sistema. Assim, “o acesso à justiça, nesse contexto, aparece como a garantia de que o sujeito poderá, efetivamente, consumir o direito que lhe fora direcionado, servindo-se, se necessário, do Estado para tanto” (MAIOR; SEVERO, 2017, p. 67).

O acesso à justiça e a reforma trabalhista (Lei n. 13.467/17)   

A CLT data de 1943, o que, para os reformadores brasileiros, a tornava antiga e desatualizada. Em decorrência disso, foi elaborada a Lei 13.467/17 para a modernização da legislação trabalhista e visando, principalmente, a produção de empregos, a valorização da negociação coletiva e o aprimoramento das relações de emprego[2].

Em razão dessas alterações, a Lei da Reforma, ao buscar a modernização da legislação trabalhista, apresentou fortes medidas que reduziram a proteção ao trabalhador para, em contrapartida, tornar a relação de emprego mais econômica para os empregadores e, segundo a ideia dos reformadores, produzir maior número de empregos.

Além disso, a Lei n. 13.467/17 também buscou complementar e aperfeiçoar a garantia do acesso à justiça apenas ao reclamado – como é o caso da sucumbência recíproca –, ignorando o reclamante que, majoritariamente, é composto pelo trabalhador, parte mais fraca da relação trabalhista e, por isso, em desvantagem no acesso à justiça (SCHIAVI, 2017a, p. 17 e 18). Mais que ignorar, a Reforma Trabalhista de 2017 trouxe alterações negativas quanto a esse direito fundamental no que tange a figura do reclamante.

O instituto constitucional da justiça gratuita é um claro exemplo de direito que sofreu significativas alterações, refletindo uma involução quanto à efetivação do acesso à justiça e, em decorrência disso, causará impactos negativos aos trabalhadores. Caminha o ordenamento jurídico trabalhista brasileiro, assim, na contramão das ondas ao acesso à justiça. Portanto, “há uma contradição insuperável na intenção do legislador, pois vislumbra dificultar o acesso à justiça exatamente às pessoas para as quais o benefício da assistência judiciária gratuita foi direcionado para que pudessem ter acesso à justiça” [3].

Evidente que as alterações no ordenamento jurídico trabalhista brasileiro realizadas pela Lei n. 13.467/17 atingem diretamente o trabalhador o qual fica exposto ao agravamento do ambiente e das condições de trabalho. Ademais, também acarretam prejuízos no acesso à Justiça do Trabalho visto que tais mudanças interferem diretamente na redução da proteção jurídica ao trabalhador – a parte mais fraca no âmbito trabalhista – fato este que dá abertura a inúmeras consequências, principalmente nocivas.

Por essa razão, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 5766 contra dispositivos da Lei n. 13.467/17 que envolvem o benefício da justiça gratuita. Requer o procurador-geral a declaração de inconstitucionalidade dos artigos 790-B, caput e §4º; art. 791-A, caput e §4º; e o art. 844, §2º da CLT por violarem, entre outras questões, a garantia de acesso à justiça e princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho[4].

No mesmo sentido, o Senador Randolfe Rodrigues, discordando da Reforma Trabalhista sob o argumento de que a medida retirou direito dos trabalhadores, propôs por meio do Projeto Lei do Senado (PLS) n. 359/18 – encontra-se em andamento – a revogação da Reforma Trabalhista de 2017, exceto quanto à alteração que extingue a obrigatoriedade do imposto sindical[5].

Ademais, a gravidade da Reforma Trabalhista de 2017 é substancial ao ponto de que a questão alcançou nível internacional. A Comissão de Peritos da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ao analisar o atual contexto brasileiro, entendeu que a Lei n. 13.467/17 pode apresentar sérias transgressões a normas do Direito Internacional do Trabalho com as quais o Brasil está submetido desde que se tornou integrante da OIT, em 1919[6]. O governo brasileiro tem até o mês de novembro desse ano para enviar à OIT explicações sobre a reforma.

A Constituição Federal brasileira ao longo de toda sua redação não é tímida ao demonstrar o objetivo de proporcionar o acesso de todos à justiça (NALINI, 2000, p. 42).

Quanto a isto, a carta magna pátria é clara ao dispor na redação do art. 5º, XXXV, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, garantindo os princípios da inafastabilidade da jurisdição e o do acesso à justiça. Notório que “trata-se de uma das garantias mais importantes do cidadão, uma vez que, modernamente, a acessibilidade ao Judiciário é um direito fundamental de qualquer pessoa para efetivação de seus direitos” (SCHIAVI, 2017a, p. 15).

Sobre o dispositivo legal art. 5º, XXXV, CF, é essencial ter consciência de que “embora o destinatário principal desta norma seja o legislador, o comando constitucional atinge a todos indistintamente, vale dizer, não pode o legislador e ninguém mais impedir que o jurisdicionado vá a juízo deduzir pretensão”, conforme observação de Nelson Nery Júnior (2000, p. 130 e 131). Evidencia-se, assim, que todos os envolvidos no acesso à justiça devem caminhar em favor da efetivação desse direito fundamental. No mesmo sentido, adverte José Renato Nalini (2000, p. 38):

A vivência e aplicação da Constituição não está dirigida apenas ao Judiciário, mas a todos os demais órgão estatais, aos grupos sociais e inclusive aos cidadãos, pois somente a plena compreensão dos preceitos fundamentais garantirá a sua atualização e permanência.

Por outro lado, o acesso à justiça não é suficiente para que o indivíduo tenha seus direitos efetivados. Também se faz de grande importância que “o procedimento seja justo e que produza resultados (efetividade)” (SCHIAVI, 2017a, p. 15). Diante disso, ficou comprava a essencialidade do processo na efetivação do acesso à justiça.

Por fim, por meio de todo esse cenário introduzido pela Lei n. 13.467/17, obstaculizar o acesso à justiça dos trabalhadores por meio da redução da proteção a eles concedida, em especial daqueles com baixo ou nenhum recurso financeiro, caracteriza evidente violação e desrespeito à Constituição pátria tanto como ideal, quanto no que tange aos direitos fundamentais garantidos por ela aos trabalhadores[7] e mostra-se completamente antagônico às importantes ondas de acesso à justiça de Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988).

A partir de tudo estudado ao longo deste trabalho, fica deveras evidente que a Reforma Trabalhista de 2017 simboliza um completo retrocesso quanto ao direito fundamental do acesso à justiça por alterar e retirar direitos alcançados com muito esforço e ao longo de anos pelos trabalhadores os quais estão dispostos tanto na Constituição Federal, quanto na CLT. No mesmo sentido é a opinião de Mauro Schiavi (2017a, p. 14):

A Lei n. 13.467/17, apesar de ter realizado alterações na CLT, em nossa visão, não foi suficiente para tornar o processo trabalhista mais justo e efetivo. De outro lado, em muitos aspectos, a lei trouxe retrocessos, criando entraves ao acesso do economicamente fraco à justiça, tais como: comprovação de insuficiência econômica para a gratuidade judiciária, pagamento de despesas processuais, prescrição intercorrente, e limitação de responsabilidade patrimonial. Ainda há muito a ser feito no processo do trabalho a fim de acelerar o procedimento de tramitação, bem como na execução, a fim de instituir meios coercitivos mais contundentes a forçar o devedor a cumprir a obrigação consagrada no título executivo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Incontestável, ao longo de toda a explanação desse texto, a vitalidade do acesso à justiça para a efetivação dos direitos individuais e sociais. Seria insignificante o cidadão estar formalmente assegurado com direitos, quando inviável reivindicar sua efetivação. Em outras palavras, sem o acesso à justiça, os direitos individuais e sociais seriam meramente proclamados. Por isso, os Estados, incluindo o Brasil, devem sempre buscar pela melhor forma de acesso à justiça e, por outro lado, repudiar o maior número de barreiras e empecilhos à concretização desse direito.

Ainda, não se pode ignorar a importância ímpar e fundamental do processo na busca pela garantia e efetivação do acesso à justiça e para uma ordem mais justa, principalmente porque o acesso está além da mera prestação jurisdicional. É crucial que as normas processuais eliminem as barreiras para o acesso à justiça ao, por exemplo, conceder o benefício da justiça gratuita às partes hipossuficientes, e também que sirva à efetividade do direito material trabalhista.

Entretanto, com a entrada em vigor da Reforma Trabalhista, o Brasil caminha em sentido totalmente oposto ao proporcionar a criação de novos obstáculos processuais à efetivação do acesso à justiça e, consequentemente, à reivindicação e garantia dos direitos de cada cidadão. Diante de tudo o que fora abordado, ficou inequívoco que as alterações trazidas pela Lei da Reforma interferiram em grau substancial no direito fundamental de acesso à justiça pelo empregado e, consequentemente, corromperam a função da Justiça do Trabalho em proporcionar uma prestação jurisdicional justa e eficiente.

Destarte, constatou-se que a carta magna brasileira e, consequentemente, o acesso à justiça foram violados ou, ao menos, mitigados pela Lei n. 13.467/17 fato que se opõe ao crescente movimento de reconhecimento e efetivação desse direito fundamental. Assim, a garantia do acesso à justiça fica comprometida e, por conseguinte, coloca-se em risco a razão de ser da legislação processual trabalhista.

Nesse sentido, entende-se que em decorrência da aplicação de medidas de modernização, como ocorreu com Lei da Reforma Trabalhista, não se pode tanto sobrepor o interesse econômico sobre o social, quanto admitir ofensa aos pressupostos constitucionais brasileiros (CUNICO; OLIVEIRA, 2010, p. 129) porque essas novidades se concretizam em um destrutivo retrocesso social e, concomitantemente, prejudicam a condição do trabalhador.

Apesar disso, como visto, a Reforma Trabalhista de 2017 atingiu o acesso à justiça ao trazer nas novas disposições da CLT a possibilidade do beneficiário da justiça gratuita, por exemplo, tanto arcar com os honorários advocatícios e sucumbenciais, quanto ser condenado ao pagamento das custas processuais, caso, injustificadamente, não compareça à audiência inicial.

Em decorrência da extrema desigualdade na relação trabalhista, a Justiça do Trabalho é o último e, constantemente, o único meio que a parte mais frágil, fraca e hipossuficiente da relação trabalhista, o empregado, tem para buscar a garantia e efetivação de seus direitos – os quais são comumente e em grande escala desrespeitados pelos empregadores. Por isso, os impactos a serem gerados aos trabalhadores são brutais e lastimáveis já que prejudicam o amparo jurídico, restando aos empregados, muitas vezes, submeter-se a trágicas e deploráveis condições de labor.

Além disso, evidencia-se que o legislador da Reforma Trabalhista ao promover alterações nos dispositivos processuais sem se preocupar em observar o direito fundamental do acesso à justiça e os princípios norteadores do Direito Processual do Trabalho, desconstitucionalizando, como concluiu Bezerra Leite (2017, p.17), esse ramo do Direito. Ainda mais afundo, pode-se averiguar que o legislador buscou mitigar o acesso à Justiça do Trabalho, evitar a efetivação dos direitos pelos trabalhadores e, inclusive, reduzir a existência do direito e da justiça trabalhista.

Consequentemente, a Reforma Trabalhista de 2017 configura um retrocesso por impor ao sistema jurídico de um Estado Democrático de Direito – o qual busca não apenas declarar os direitos humanos e sociais, mas, garanti-los – medidas aplicadas durante o ausente Estado Liberal. Ainda é de capital importância salientar que além da Justiça do Trabalho ser criada para equilibrar as desigualdades advindas da relação trabalhista e sob os princípios da proteção e da igualdade, também há o fato de que o projeto constitucional pátrio busca a garantia da dignidade da pessoa humana, dos direitos sociais e dos Direitos Humanos e também visa melhores condições aos empregados.

Claramente, o verdadeiro objetivo das alterações realizadas na legislação trabalhista foi o de dificultar o acesso à justiça e, além de assistir à reprodução da opressão e injustiça ocorridas dentro do contexto laboral, também reforçar esse abuso. Portanto, a Lei n. 13.467/17 não apenas é complacente com a permanência das violações dos empregadores à legislação trabalhista, mas também ofende, por meio de seu texto o acesso à justiça e a Constituição.

Sendo assim, como bem coloca Departamento de Direito do Trabalhado e da Seguridade Social “os dispositivos em questão não merecem sequer o atributo de normas trabalhistas, vez que sua preocupação fundamental foi a de negar a garantia constitucional de amplo acesso à Justiça aos trabalhadores”[8]. Por essa razão, nas palavras de Mauro Schiavi (2017a, p. 18) que:

(…) a Lei n. 13.467/17 deve ser interpretada e aplicada pelo Judiciário Trabalhista considerando-se as premissas constitucionais de acesso à justiça do trabalho, os princípios e singularidades do processo do trabalho, de modo a não inviabilizar a missão institucional do processo trabalhista, e prejudicar o acesso à justiça pelo trabalhador.

De modo mais incisivo, na opinião de Jorge Luiz Souto Maior e Valdete Souto Severo (2017, p. 57), o essencial seria declarar a ilegitimidade e inconstitucionalidade da Lei n. 13.467/17 e, assim, recusar sua aplicação:

Esclarecemos desde logo que reiteramos a nossa avaliação de que a reforma trabalhista, levada a cabo para atendimento dos interesses do grande capital, é ilegítima, por ter sido mero instrumento de reforço dos negócios de um setor exclusivo da sociedade, o que, além disso, desconsidera a regra básica da formação de uma legislação trabalhista, que é a do diálogo tripartite, como preconiza a OIT, e também por conta da supressão do indispensável debate democrático que deve preceder a elaboração, discussão e aprovação de uma lei de tamanha magnitude, ainda mais com essa intenção velada de afrontar o projeto do Direito Social assegurado na Constituição Federal.

Entretanto, como a Lei 13.467/17 já se encontra em atividade, é necessário buscar por soluções que atenuem os efeitos negativos aos trabalhadores. Nesse contexto, notória se mostra a importância do papel dos magistrados e tribunais para não corroborarem com as alterações e não se tornarem transigentes com o retrocesso efetuado na legislação do trabalho.

Em busca da redução desses efeitos nocivos da Reforma Trabalhista aos trabalhadores, os juízes e tribunais podem recorrer a interpretações jurídicas viáveis e admissíveis da Lei da Reforma Trabalhista. Como visto, para isso há soluções como, por exemplo, a aplicação supletiva e subsidiária do CPC, a nova Lei n. 13.660/18 e também o fato de que muitas alterações ofendem preceitos, princípios e direitos garantidos na Constituição Federal, e os Direitos Humanos.

Na perspectiva do entendimento acima disposto, o Tribunal Pleno do Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais aprovou, por maioria absoluta de votos, a inconstitucionalidade da expressão “ainda que beneficiário da justiça gratuita” prevista no art. 844, §2º, da CLT, e todo o texto do art. 844, §3º, da CLT, alegando que ambos os dispositivos violam os princípios constitucionais da isonomia, da inafastabilidade da jurisdição e da concessão de justiça gratuita aos hipossuficientes[9].

A partir de todo o amplamente discorrido, bastante oportuno finalizar os apontamentos deste artigo com as palavras provocativas e inspiradoras de Souto Maior e Valdete Severo (2017, p. 92):

É o momento, pois, de o Judiciário trabalhista se recompor do baque e compreender que os ataques que sofreu constituem, em verdade, os fundamentos para retornar e prosseguir cumprindo o seu papel de impor o respeito aos valores sociais e humanos nas relações de trabalho, revendo, inclusive, os atos que contribuíram para a sensação de impunidade de empregadores que reiteradamente descumprem a legislação do trabalho.

BIBLIOGRAFIA

CAPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988.

 NALINI, José Renato. O juiz e o acesso à justiça. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; SEVERO, Valdete Souto. O acesso à justiça sob a mira da reforma trabalhista: ou como garantir o acesso à justiça diante da reforma trabalhista. Revista eletrônica [do] Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, Curitiba, PR, v. 6, n. 61, p. 57-92, jul./ago. 2017.

SCHIAVI, Mauro. A Reforma Trabalhista e o Processo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2017.

OLIVEIRA, Lourival José de; CUNICO, Dayane Souza. Os limites da flexibilização no direito do trabalho sob uma perspectiva constitucional. Revista da SJRJ, Rio de Janeiro, n.27, 2010, p. 125.

BEZERRA LEITE, Carlos Henrique. Curso de Direito do Trabalho. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2017.

 

Autoria de:

 Nicollas Madeira de Oliveira.

 Mestrando em Direito no Núcleo de Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-SP (PUC);

 Graduado em Direito e Pós Graduado em Filosofia pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS);

 Escrevente no 2º Oficial de Registro de Imóveis de Santo André-SP.

 



[1] Este trabalho não incentiva a quebra da imparcialidade do sistema judiciário. O que se busca pontuar neste momento é que os litigantes habituais apresentam maiores chances de formação de uma relação informal com funcionários do judiciário o que, indevida e ilegalmente, pode proporcionar uma influência vantajosa no acesso à justiça. Entretanto, hodiernamente, existem medidas legais no ordenamento jurídico brasileiro para que isso seja evitado ou, ao menos, contestado como, por exemplo, por meio da arguição de impedimento ou de suspeição do magistrado.

[2] OLIVEIRA, Ronaldo Nogueira. EM nº 00036/2016 MTB. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Projetos/ExpMotiv/MTE/2016/36.htm>. Acesso em 02 out. 2018. 19 AMATRAIV. Reforma trabalhista na real: a inexplicável urgência da tramitação. Disponível em: <http://www.amatra4.org.br/publicacoes/41-midia/1298-reforma-trabalhista-na-real-a-inexplicavel-urgencia-datramitacao>. Acesso em: 29 set. 2018.

[3] DEPARTAMENTO DE DIREITO DO TRABALHO E DA SEGURIDADE SOCIAL DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Parecer Técnico do Departamento de Direito do

Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da USP sobre a ADI 5766. Disponível em: <https://www.jorgesoutomaior.com/blog/parecer-tecnico-do-departamento-de-direito-do-trabalho-e-daseguridade-social-da-faculdade-de-direito-da-usp-sobre-a-adi-5766>. Acesso em: 28 ago. 2018. 21 Ibid.

[4] BON, Fábio Tibirçá; SERRANO, Mariana Salinas. Atenção: Justiça Gratuita na Justiça do Trabalho está em pauta no STF. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2018/05/03/atencao-justica-gratuitana-justica-do-trabalho-esta-em-pauta-no-stf/>. Acesso em: 28 ago. 2018.

[5] SENADO NOTÍCIAS. Projeto de Randolfe revoga a reforma trabalhista. Disponível em:

<https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/08/13/projeto-de-randolfe-revoga-a-reforma-trabalhista>. Acesso em: 15 set. 2018.

[6] ANAMATRA. Caso Brasil na OIT: Brasil continua na “lista suja” e terá de dar explicações a peritos sobre reforma trabalhista. Disponível em: <https://www.anamatra.org.br/imprensa/noticias/26571-caso-brasilna-oit-brasil-continua-na-lista-suja-e-tera-de-dar-explicacoes-a-oit-sobre-reforma-trabalhista>. Acesso em: 12 set. 2018.

[7] DEPARTAMENTO DE DIREITO DO TRABALHO E DA SEGURIDADE SOCIAL DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Parecer Técnico do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da USP sobre a ADI 5766. Disponível em: <https://www.jorgesoutomaior.com/blog/parecer-tecnico-do-departamento-de-direito-do-trabalho-e-daseguridade-social-da-faculdade-de-direito-da-usp-sobre-a-adi-5766>. Acesso em: 28 ago. 2018.

[8] DEPARTAMENTO DE DIREITO DO TRABALHO E DA SEGURIDADE SOCIAL DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Parecer Técnico do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da USP sobre a ADI 5766. Disponível em: <https://www.jorgesoutomaior.com/blog/parecer-tecnico-do-departamento-de-direito-do-trabalho-e-daseguridade-social-da-faculdade-de-direito-da-usp-sobre-a-adi-5766>. Acesso em: 28 ago. 2018.

[9] TRT3. Pleno declara inconstitucional cobrança de custas processuais a beneficiários da justiça gratuita. Disponível em: <https://portal.trt3.jus.br/internet/conheca-o-trt/comunicacao/noticias-institucionais/plenodeclara-inconstitucional-cobranca-de-custas-processuais-a-beneficiarios-da-justica-gratuita>. Acesso em: 02 out. 2018.

Como citar e referenciar este artigo:
OLIVEIRA, Nicollas Madeira de. A reforma trabalhista analisada sob a ótica do acesso a justiça. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2020. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-do-trabalho/a-reforma-trabalhista-analisada-sob-a-otica-do-acesso-a-justica/ Acesso em: 25 abr. 2024