Direito do Trabalho

Assédio moral nas organizações públicas

1. INTRODUÇÃO

O assédio moral remete a práticas de humilhações, perseguição e ameaças nos locais de trabalho, componentes todos de um processo de violência psicológica que pode chegar até arriscar a vida da vítima. As atitudes hostis como à deterioração proposital das condições de trabalho, o isolamento e recusa de comunicação, atentados contra a dignidade e o uso da violência verbal, física ou sexual – uma das modalidades do assédio moral que não será tratada aqui – constituem os meios pelos qual o agressor atinge as vítimas do assédio moral (HIRIGOYEN, 200l).

Os estudos iniciais sobre hostilidade no ambiente do trabalho, sob a ótica do funcionalismo público, são atribuídos a Heinz Leymann, responsável pela introdução do termo “mobbing” no universo trabalhista sueco na década de 80 do século passado. Outros termos usados: “bullying” e “harassment” nos EUA, “psicoterror ou acoso moral” na Espanha; “harcèlement moral” na França e “Ijime” no Japão (HIRIGOYEN, 2002, BARRETO, 2000).

O termo “assédio moral” é a nomenclatura adotada no Brasil e surge, oficialmente, no campo do direito administrativo municipal em 1999 através do Projeto de Lei sobre Assédio Moral, encaminhado para a Câmara Municipal de São Paulo, que dispõe sobre a aplicação de penalidades à prática desse comportamento entre o funcionalismo da administração pública municipal direta, inspirado na pesquisa realizada na França por Marie-France Hirigoyen e publicada com o titulo “Le harcèlment moral: la violence perverse au quotidien”(1998). A tradução da sua obra para o português, em 2000, e a defesa da dissertação de Mestrado de Barreto sobre a jornada de humilhação dos empregados adoecidos no trabalho (2000) foram os responsáveis pela repercussão do tema no Brasil.

2. – ASSÉDIO MORAL NO FUNCIONALISMO PÚBLICO

Assediar moralmente, segundo Barreto (2002, p. 2), é uma: “exposição prolongada e repetitiva a condições de trabalho que, deliberadamente, vai sendo degradado. Surge e se propaga em relações hierárquicas assimétricas, desumanas e sem ética, marcada pelo abuso de poder e manipulações perversas”.

O abuso do poder, de forma repetida e sistematizada durante um período longo de tempo, constitui a principal característica do assédio moral, configurando a prática da perversidade no local de trabalho (HIRIGOYEN, 2000; BARRETO, 2002; MOURA, 2002; FREITAS, 200I). Mas no assédio moral o abuso de poder não se dá de uma forma explicita.

O perverso do abuso do poder se estabelece subtilmente, através de estratagemas, por vezes até sob uma máscara de ternura ou bem-querer. O parceiro não tem consciência de estar havendo violência, pode até, não raro, ter a impressão de que é ele quem conduz o jogo. Nunca há conflito aberto. Se essa violência tem condições de se exercer de forma subterrânea, é porque se dá a partir de uma verdadeira distorção da relação entre o perverso e seu parceiro (BARRETO, 2000, p. 218).

A não explicitação do conflito é um elemento fundamental: se existe assédio moral, é justamente porque nenhum conflito pôde ser explicitado. No conflito, as recriminações são faladas, a guerra é aberta, enquanto que por trás de todo procedimento de assédio moral existe o não falado e o escondido. “Não são expressos em tom de cólera, e sim em tom glacial, de quem enuncia uma verdade ou uma evidência” (HIRIGOYEN, 2001, p. 135).

É necessário, portanto, distinguir a comunicação verdadeira e simétrica, mesmo que gerada na esfera de um conflito, daquela comunicação perversa, subliminar, sub-reptícia, composta de subterfúgios, porque esta é uma das armas usadas pelo agressor para atingir sua vítima: “junção de subentendidos e de não ditos, destinada a criar um mal-entendido, para em seguida explorá-lo em proveito próprio” (HIRIGOYEN, 2001, p. 117).

O agressor é frequentemente, mas não necessariamente, o chefe; segundo Hirigoyen (200l) o assédio moral pode provir do comando hierárquico (vertical), de colegas da mesma hierarquia funcional (horizontal), da omissão do superior hierárquico diante de uma agressão (descendente), ou caso raro, quando o poder, por alguma razão, não está com o comando superior e sim nas mãos do subalterno (ascendente). Mas quem detém o poder pode mais facilmente abusar dele, sobre tudo quando se trata de chefes considerados medíocres profissionalmente, com baixa autoestima e, consequentemente, necessidade de ser admirado e destacado.

Assim, pelas análises no cotidiano e baseado no autor abaixo descrito, tenho que às pessoas mais susceptíveis de se tornarem vítimas do assédio moral são aqueles funcionários públicos que apresentam algumas diferenças com respeito aos padrões estabelecidos, tal como exemplo o Adventista, quando na segurança pública não pode realizar a atividade normal aos sábados. Hirigoyen (2002) define os seguintes tipos discriminatórios: assédio moral por motivos raciais ou religiosos; assédio em função de deficiência física ou doença; assédio em função de orientações sexuais.

Também pessoas “atípicas”, “excessivamente competentes ou que ocupem espaço demais”, aliadas a grupos divergentes da administração, “improdutivas” ou temporariamente fragilizado por licenças de saúde tornam-se o alvo das perseguições por assédio moral.

Por sua vez, Barreto (2003) tipifica os seguintes funcionários públicos passíveis de violência no local de trabalho: os adoecidos, os sindicalizados, os acima de 40 anos, os criativos, os sensíveis à injustiça e ao sofrimento alheio, os questionadores das políticas de metas inatingíveis e da expropriação do tempo com a família, àqueles que fazem amizades facilmente e dominam as informações no coletivo e principalmente e o mais corriqueiro dos casos, aqueles que estão em estágio probatório.

2.1 – E o que é assédio moral no funcionalismo público?

É a exposição dos funcionários públicos a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a realização de suas atividades funcionais e no exercício de suas funções, sendo mais comuns em relações hierárquicas autoritárias e assimétricas, em que predominam condutas negativas, relações desumanas e aéticas de longa duração, de um ou mais chefes dirigida a um ou mais subordinado(s), desestabilizando a relação da vítima com o ambiente de trabalho e a organização, forçando-o a desistirem do emprego.

Caracteriza-se pela degradação deliberada das condições de trabalho em que prevalecem atitudes e condutas negativas dos chefes em relação a seus subordinados, constituindo uma experiência subjetiva que acarreta prejuízos práticos e emocionais para o funcionário público e a organização. A vítima escolhida é isolada do grupo sem explicações, passando a ser hostilizada, ridicularizada, inferiorizada, culpabilizada e desacreditada diante dos pares. Estes, por medo de não serem efetivadas pós-período de estágio probatório e a vergonha de serem também humilhados associados ao estímulo constante à competitividade, rompem os laços afetivos com a vítima e, frequentemente, reproduzem e reatualizam ações e atos do agressor no ambiente de trabalho, instaurando o ‘pacto da tolerância e do silêncio’ no coletivo, enquanto a vitima vai gradativamente se desestabilizando e fragilizando, ‘perdendo’ sua autoestima.

A humilhação repetitiva e de longa duração interfere na vida do funcionário público de modo direto, comprometendo sua identidade, dignidade e relações afetivas e sociais, ocasionando graves danos à saúde física e mental, que podem evoluir para a incapacidade laborativa, desemprego ou mesmo a morte, constituindo um risco invisível, porém concreto, nas relações e condições de trabalho.

A violência moral no trabalho constitui um fenômeno internacional segundo levantamento recente da Organização Internacional do Trabalho (OIT) com diversos países desenvolvidos. A pesquisa aponta para distúrbios da saúde mental relacionado com as condições de trabalho em países como Finlândia, Alemanha, Reino Unido, Polônia e Estados Unidos. “As perspectivas são sombrias para as duas próximas décadas, pois segundo a OIT e Organização Mundial da Saúde, estas serão as décadas do ‘mal estar na globalização”, onde predominará depressões, angustias e outros danos psíquicos, relacionados com as novas políticas de gestão na organização de trabalho e que estão vinculadas as políticas neoliberais.

2.2 – Fases da humilhação no trabalho

A humilhação no trabalho envolve os fenômenos vertical e horizontal.

O fenômeno vertical se caracteriza por relações autoritárias, desumanas e aéticas, onde predominam os desmandos, a manipulação do medo, a competitividade, os programas de qualidade total associado à produtividade. Com a reestruturação e reorganização do trabalho, novas características foram incorporadas à função: qualificação, poli funcionalidade, visão sistêmica do processo produtivo, rotação das tarefas, autonomia e ‘flexibilização’.

A “flexibilização”, que na prática significa desregulamentação para os funcionários envolve a precarização e consiste na eliminação de postos de trabalho. A ordem hegemônica do neoliberalismo abarca reestruturação produtiva, privatização acelerada, estado mínimo, políticas fiscais etc. que sustentam o abuso de poder e manipulação do medo, revelando a degradação deliberada das condições de trabalho.

O fenômeno horizontal está relacionado à pressão para laborar em atividades não compatíveis com o cargo ocupado e que muitos realizam com medo de perder o trabalho, haja vista que se encontra em estágio probatório favorecendo a submissão. O enraizamento e disseminação do medo no ambiente de trabalho reforçam atos individualistas, tolerância aos desmandos e práticas autoritárias no interior das organizações públicas. Enquanto os adoecidos ocultam a doença e trabalham com dores e sofrimentos, os sadios que não apresentam dificuldades produtivas, mas que ‘carregam’ a incerteza de vir a tê-las, mimetiza o discurso das chefias e passam a discriminar os ‘improdutivos’, humilhando-os.

A competição sistemática entre os funcionários que desejam ocupações melhores provoca comportamentos agressivos e de indiferença ao sofrimento do outro. Este fenômeno se caracteriza por algumas variáveis, tais como: dificuldade para enfrentar as agressões da organização e interagir em equipe; rompimento dos laços afetivos entre os pares, relações afetivas frias e endurecidas, aumento do individualismo e instauração do ‘pacto do silêncio’ no coletivo; comprometimento da saúde, da identidade e dignidade, podendo culminar em morte; sentimento de inutilidade, descontentamento e falta de prazer no trabalho, aumento do absenteísmo, diminuição da produtividade.

Portanto, lutar contra o assédio moral é estar contribuindo com o exercício concreto e pessoal de todas as liberdades fundamentais.

2.3. O assédio moral no serviço público

Em razão deste ambiente, o assédio moral tende a ser mais frequente em razão de uma peculiaridade:

O chefe não dispõe sobre o vínculo funcional do servidor.

Não podendo demiti-lo, passa a humilhá-lo e sobrecarregá-lo de tarefas inócuas.

Os chefes são indicados em decorrência de seus laços de amizade, parentescos (nepotismo) diretos ou indiretos ou de suas relações políticas – inclusive as decorrentes de certas ordenações.

Geralmente despreparado para o exercício do cargo ou função confiado, e muitas vezes sem o conhecimento mínimo necessário para tanto, mas escorado nos relacionamentos que garantiram a sua indicação, o chefe pode se tornar extremamente arbitrário, a fim de compensar suas evidentes limitações, mas resguardado por uma considerável intocabilidade. Este despreparo é bastante caracterizado por certas atitudes e posturas que são um verdadeiro desastre.

3. Entendendo o processo psicológico do assédio moral

Segundo Hirigoyen (2001), a primeira é a fase da sedução perversa, no inicio do relacionamento, envolvendo-se a vítima com o processo de desestabilização e perda progressiva da autoconfiança através de constantes humilhações que diminuem os valores morais do indivíduo e aniquilam a suas defesas.

A humilhação “é um sentimento de ser ofendido, menosprezado, rebaixado, inferiorizado, submetido, vexado e ultrajado pelo outro. É sentir-se ninguém, sem valor, inútil” (BARRETO, 2000, p. 218).

A segunda etapa, da violência manifesta, com a vítima já envolvida, é pontuada de estratégias de violências e de agressões aplicada aos poucos. Segundo Hirigoyen (200l), o enredamento, já na fase da violência manifesta, comporta um inegável componente destrutivo porque a vítima não tem mais resistência para reagir e o agressor usa e abusa dos seus poderes para manipular o indivíduo “coisificado”.

Uma vez implantado o assédio moral, com a dominação psicológica do agressor e a submissão forçada da vítima, a dor e o sentimento de perseguição passam para a esfera do individual, sem uma participação do coletivo. A presença do individualismo nas relações de trabalho tem uma função desarticuladora: “cada um sofre no seu canto sem compartilhar suas dificuldades com um grupo solidário”, explica Hirigoyen (2002, p. 26). A solidariedade dos colegas dificilmente aparece no momento da humilhação. A dor sentida não é compartilhada e nem compreendida.

Quando a vítima, de fato, começa a sentir os sinais da doença, aparece outro sintoma: a ocultação do problema. A atitude está diretamente relacionada ao medo de perder o cargo ou função pública e por isso, como tática, o funcionário não declara abertamente a sua doença e prefere sofrer sozinho. Uma vez adoecido, sem nenhuma alternativa, o caminho para o funcionário é afastamento do trabalho que, ao princípio, é por licença para tratamento da doença apresentada.

A vítima não se liberta totalmente com o afastamento do local de trabalho ou do agressor. Não convive mais diariamente com a prática da violência, mas carrega consigo toda angustia do período: “as agressões ou as humilhações permanecem inscritas na memória e são revividas por imagens, pensamentos, emoções intensas e repetitivas, seja durante o dia, com impressões bruscas, de iminência de uma situação idêntica, ou durante o sono, provocando insônias e pesadelos” (HIRIGOYEN, 2001, p. 183).

O suicídio pode ser o ponto final. Para Barreto (2000, p. 242) “quando o homem prefere a morte à perda da dignidade, se percebe muito bem como a saúde, trabalho, emoções, ética e significado social se configuram num mesmo ato, revelando a patogenicidade da humilhação”.

4. Considerações finais

A coisificação do trabalhador funcionário público é evidente: os mesmos, em todos os casos analisados, são tratados como peças substituíveis e não como seres humanos. Tal e como descrito por Hirigoyen e Barreto, as perseguições, maus tratos e humilhações se dão pela perversidade manifesta no descaso para com o semelhante e a desumanizarão das relações de trabalhado.

Podemos perceber a ligação do assédio moral com o dano moral, não apenas como o caminho judicial indenizatório e compensador do processo de humilhação e maus tratos, mas pela existência do nexo causal entre seus conceitos, pois ambos são vinculados aos agravos causados ao trabalhador no exercício da sua função.

O trabalho a ser feito nas organizações é uma reeducação de valores que implica uma mudança cultural, com incentivo a pratica do diálogo constante e permanente e a implantação de um código de ética e de conduta de todos os empregados, inclusive as chefias, baseado no respeito mútuo e no companheirismo.

5 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

http://www.assediomoral.org/site/, acesso em 05/05/16

 http://www.partes.com.br/assedio_moral.htm, acesso em  05/05/16

http://www.culturabrasil.pro.br/assediomor.htm, acesso em 05/05/16

 http://www.trt12.gov.br/, acesso em 05/05/16

BARBOSA, Lívia. O jeitinho brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

BARRETO, Margarida M. S. Uma jornada de humilhações. 2000. 266 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) – PUC, São Paulo, 2000.

Assédio moral: ato deliberado de humilhação ou uma “política da empresa” para livrar-se de trabalhadores indesejados. Disponível em. Acesso em: 12 mar. 2003a.

ALENCAR, Maria B. A. Assédio moral no trabalho: chega de humilhação! Disponível em. Acesso em: 14 mar. 2003.

BATISTA, Anália S. Violência “sem sangue” nos locais de trabalho. Disponível em. Acesso em: 11 fev. 2003.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. 19. Ed. São Paulo: Saraiva 2002.

 

LUIZ CARLOS DA CRUZ IORIO: ADVOGADO, ex-titular do escritório jurídico C. Martins & Advogados Associados no Rio de Janeiro, ex- Assessor Jurídico da Prefeitura Municipal de Conceição de Macabu, Pós Graduando em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense, Pós Graduado em Gestão Pública Municipal pela Universidade Federal Fluminense no RJ, especialista em Segurança Pública pelo SENASP Brasília, Pós Graduando em Políticas e Gestão em Segurança Pública pela Universidade Estácio de Sá no RJ, Graduado em Administração de Empresa pela faculdade Cenecista em Rio das Ostras, Graduado em Direito pela faculdade Brasileira de Ciências Jurídicas no RJ, Consultor Jurídico, especialista em Direito Civil pela Universidade Cândido Mendes/RJ.

Como citar e referenciar este artigo:
IORIO, Luiz Carlos da Cruz. Assédio moral nas organizações públicas. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2017. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-do-trabalho/assedio-moral-nas-organizacoes-publicas/ Acesso em: 28 mar. 2024