Direito do Trabalho

Teoria simplificada do Assédio Material

 

O parágrafo 2ª do artigo 59 da CLT, a Súmula 85 do TST e suas inconstitucionalidades.

 

DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 – Direito a vida e proteção ao trabalho operário

 

No que tange ao salário do operário, reza a Constituição Federal de 1988 que o trabalhador urbano e rural tem vários direitos básicos, insculpidos no artigo 7º, alguns deles abaixo transcritos.

 

VIII – décimo terceiro salário com base na remuneração integral ou no valor da aposentadoria;

IX –  remuneração do trabalho noturno superior à do diurno;

XVI – remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinqüenta por cento à do normal e

XXIII – adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei.

 

Resta então uma primeira pergunta: os direitos acima, em especial o direito à remuneração do serviço extraordinário, podem ser considerados como cláusulas pétreas?

 

A princípio sim, pois se trata de matéria de ordem pública, sendo de interesse da sociedade, como um todo, que o trabalhador seja respeitado, minimamente quando o assunto for salário, porquanto este se refere à alimentação e esta se refere ao direito a uma vida digna e a vida é direito indisponível.

 

Da Consolidação das Leis Trabalhistas – Redução do Salário com a supressão  do direito à remuneração do serviço extraordinário.

 

Enquanto a CF/88 agasalha o trabalho obreiro, ao se interpretar o teor do parágrafo 2ª do artigo 59 da CLT, percebe-se uma relativização nefanda dos Direitos Constitucionais que protegem a mão – de – obra operária, senão vejamos:

 

Art. 59 da CLT – A duração normal do trabalho poderá ser acrescida de horas suplementares, em número não excedente de 2 (duas), mediante acordo escrito entre empregador e empregado, ou mediante contrato coletivo de trabalho.

 

Até aqui nada de demais, visto que o caput retro estabelece padrões que regerão o quesito horas-extras, porém o parágrafo abaixo permite e licencia o empregador para que não remunere as horas extras, conforme se depreende a seguir.

 

CLT – Art. 59 da CLT  – §  2o  

Poderá ser dispensado o acréscimo de salário se, por força de acordo ou convenção coletiva de trabalho, o excesso de horas em um dia for compensado pela correspondente diminuição em outro dia, de maneira que não exceda, no período máximo de um ano, à soma das jornadas semanais de trabalho previstas, nem seja ultrapassado o limite máximo de dez horas diárias.

 

O parágrafo acima, oportunisticamente se apropria dos silêncios da Constituição Federal de 1988 e retira do proletário o direito às cláusulas pétreas, pois permite ao empregador reduzir o salário do empregado suprimindo o pagamento das horas-extras.

 

Cabe aqui mais uma perquirição:

 

Se a Constituição de 1988 assegura ao trabalhador a remuneração das horas suplementares, criando um direito fundamental, o que autoriza a CLT relativizar tal Cláusula Pétrea?

 

Talvez  uma das respostas esteja no furor que o lucro pelo lucro impõe às relações de trabalho e emprego no Brasil do terceiro mundo.

 

Ainda analisando a parágrafo acima, tem-se que o acréscimo de salário poderá ser dispensado por força de acordo ou convenção coletiva.

 

Aqui se usa o termo acordo ou convenção coletiva, e isso nos leva a crer que ambos são instrumentos de negociação que devem ser chancelados pelo sindicato obreiro.

Tal interpretação pode gerar uma dúvida, que fragiliza ainda mais os direitos Constitucionais alhures narrados, e é calçado com essa anfibologia que o TST vem ao mundo jurídico editar o brocardo abaixo analisado.

 

DA SÚMULA  85 DO TST – Precarização das Relações de Trabalho e Emprego e empobrecimento da classe operária.

 

Não poderia sem mais infeliz  o entendimento do TST acerca da remuneração do serviço extraordinário, pois o silêncio contido na Lei reverte-se contra os interesses da classe trabalhadora.

 

Trata-se do conteúdo da Súmula 85, cujo teor se transcreve transcrever a seguir com grifos.

 

SUM-85 COMPENSAÇÃO DE JORNADA (incorporadas as Orientações Juris-prudenciais nºs 182, 220 e 223 da SBDI-1) – Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005

I. A compensação de jornada de trabalho deve ser ajustada por acordo individual escrito, acordo coletivo ou convenção coletiva. (ex-Súmula nº 85 – primeira parte – alterada pela Res. 121/2003, DJ 21.11.2003)

II. O acordo individual para compensação de horas é válido, salvo se houver norma coletiva em sentido contrário. (ex-OJ nº 182 da SBDI-1 – inserida em 08.11.2000)

III. O mero não-atendimento das exigências legais para a compensação de jornada, inclusive quando encetada mediante acordo tácito, não implica a repetição do pagamento das horas excedentes à jornada normal diária, se não dilatada a jornada máxima semanal, sendo devido apenas o respectivo adicional. (ex-Súmula nº 85 – segunda parte – alterada pela Res. 121/2003, DJ 21.11.2003)

IV. A prestação de horas extras habituais descaracteriza o acordo de compensação de jornada. Nesta hipótese, as horas que ultrapassarem a jornada semanal normal deverão ser pagas como horas extraordinárias e, quanto àquelas destinadas à compensação, deverá ser pago a mais apenas o adicional por trabalho extraordinário. (ex OJ nº 220 da SBDI-1 – inserida em 20.06.2001)  as horas extraordinárias.

 

Não é preciso uma leitura acurada para se depreender de que o trabalhador é penalizado por força das regras explicitadas na súmula acima.

 

Primeiro, permite a compensação de jornada entabulada entre empregador e empregado – acordo individual – fato este dificilmente vantajoso para o operário, porquanto luta pela empregabilidade aceitando, em nome dela, condições de trabalho desfavoráveis.

 

Por outro lado, a Súmula 85 adentra o tema horas-extras de forma que o empregador estaria liberado para entabular acordos individuais tocantes à remuneração do serviço extraordinário, sendo que se retira do sindicato obreiro a possibilidade de promover a distribuição de renda, a pacificação e a justiça social estampadas nas Convenções e nos Acordos Coletivos de trabalho.

 

 

Dano material e assédio material?

 

Exposto o tema acima se percebe que a Constituição Federal de 88, criando cláusulas pétreas, protege os direitos do trabalhador, porém restou cindida, principalmente no objeto horas extras, pois a dispensa do acréscimo de salário calcada no permissivo da compensação de horas prevista no parágrafo 2ª da CLT e na Súmula 85 retira do empregador várias obrigações mínimas tocantes ao pagamento do salário.

 

Não é impróprio rematar que a compensação de horas protegidas pela CLT e balizada pela Súmula 85 do TST conspira a favor de um inconteste dano material, pois o não pagamento das horas extras atinge diretamente o patrimônio do trabalhador, mais ainda a sua única riqueza:  a força do seu trabalho.

 

A compensação de horas, que deveria ser uma exceção nas relações trabalho de emprego, tornou-se uma regra, porquanto é um regulamento, ou melhor um espécime de assédio material, no qual as regras da Lei cercam o operário, permitindo ao empregador apropriar-se do ganha-pão do empregado sem ter que devolver qualquer contrapartida social ou monetária.

 

DO ELENCO DE INCONSTITUCIONALIDADES – Renúncia Fiscal e isenção fiscal.

 

Cabe aqui arrolar algumas situações de inconstitucionalidades estampadas no arcabouço jurídico ora objurgado.

 

O §  2o  do Art. 59 da CLT regulamenta, de forma predatória e com dano lesivo para o trabalhador, o inciso XVI – do artigo 7º, pois sem qualquer esteio jurídico remove a obrigação de o empregador remunerar minimamente o serviço extraordinário.

 

Por força da compensação das horas, cria-se, de forma velada, o fim da remuneração do serviço extraordinário, pois todo trabalho extra pode ser objeto de compensação.

 

Mais ainda, a compensação de horas emudece a discussão acerca de qual seria o percentual mais justo para remunerar o trabalho extra-ordinário.

 

Com a possibilidade de compensação de horas, a CLT, obriga o Estado a uma forçosa renúncia fiscal, criando para o empregador a não prevista Isenção Fiscal por obra do não recolhimento do FGTS e do INSS sobre as horas extras, o que tem reflexos e não incidência do DSR, das  verbas rescisórias, das férias e do 13º, do seguro desemprego, da insalubridade, da periculosidade e do adicional noturno.

 

A possibilidade de compensação com a dispensa do acréscimo de salário  é na verdade uma redução salarial, irredutibilidade esta prevista na CF/88 somente em casos de extrema necessidade, salvo ainda se disposto em convenção ou acordo coletivo. (Inciso VI do Artigo 7ª da CF/88).

 

Destarte, a Súmula 85 do TST não pode abrigar o acordo individual para compensação de horas.

 

Nem a CLT nem as Súmulas do TST podem legislar de forma a permitir a redução salarial, sob pena de promoverem o empobrecimento da classe operária e a precarização das relações de trabalho e emprego, rasgando assim a Carta Magna.

 

A Compensação de horas-extras, nas leis brasileiras, não desobriga o empregador de recolher o FGTS/INSS, com incidência do DSR, verbas rescisórias, férias e 13º, seguro desemprego, insalubridade, periculosidade e adicional noturno e reflexos no valor do benefício da aposentadoria.

 

O Artigo 59 parágrafo 2º da CLT e a Súmula 85 transformaram-se numa panacéia para não se pagar horas-extras e não recolher  tributos, pois tudo é passível de compensação.

 

ALGUMAS REFLEXÕES

 

Toda compensação de horas deve vir com recolhimento do FGTS/INSS.

 

Não pode ser objeto de compensação os feriados emendados (graciosidades e licenciosidades patronais  – Banco de horas negativo)

 

Minimamente, se a compensação de horas fosse legal, levaria em conta a cláusula pétrea Constitucional que obriga o pagamento de 50%, ou seja, feita uma hora extra, compensa-se na forma de uma hora e meia.

 

Quanto ao dano material, tem-se abaixo um texto que simboliza o Assédio Material advindo da compensação de horas.

 

Assédio material

 

Assim como o assédio sexual e o assédio moral, a mulher e o homem podem sofrer, no local de trabalho, outro tipo de humilhação. O assédio material ou apropriação indébita.

 

Em alguns casos, quando o trabalhador rural vai pedir emprego a um fazendeiro, este contrata a mão-de-obra, oferecendo ao novo empregado uma toiça de banha de porco, um saco de arroz, um saco de feijão, um uniforme, uma enxada, uma pá, um chapéu, um par de botas, uma choupana para moradia e uma garrafa de pinga.

 

Satisfeito com aqueles “presentes” o trabalhador vê o raiar do dia como um novo horizonte de esperanças e de futuro melhor!

 

Ao fim do primeiro mês de trabalho, o empregado dirige-se ao empregador com a intenção de receber o seu salário.

 

– Salário? Mas, eu, graciosamente, não lhe dei uma toiça de banha de porco, um saco de arroz, um saco de feijão, um uniforme, uma enxada, uma pá um chapéu, um par de botas, uma choupana para moradia e uma garrafa de pinga? Você é quem me deve, afinal aqui não tem nada de graça!

 

Assim, o trabalhador volta para a choupana e avisa à mulher e aos filhos que não tem dinheiro para vencer o mês, pois o patrão fez as contas e avisou que não deve pagamento.

 

Moral da história: o trabalhador já inicia a sua labuta devendo uma conta que não contratou.

 

Guardadas as devidas proporções, pode-se concluir que um fenômeno parecido ocorre com os trabalhadores sujeitados aos ditames do Banco de Horas. Nesse sentido, cabe analisar o sistema adotado em algumas instituições de ensino.

 

Senão vejamos.

 

Quando o auxiliar de ensino vai procurar trabalho perante um empresário da educação, este contrata a mão-de-obra, oferecendo ao novo empregado um uniforme, um salário que não remunera adequadamente e um contrato, no qual o trabalhador assina concordando que, conforme reza o calendário escolar, todo feriado emendado será compensado em outro dia a ser escolhido em oportunidade conveniente.

 

Satisfeito com aquele novo emprego, o auxiliar de ensino vê o raiar do dia como um novo horizonte de esperanças e de futuro melhor!

 

Ao fim do primeiro mês de trabalho, o empregado dirige-se ao empregador com a intenção de receber o seu salário e as horas-extras trabalhadas.

 

– Horas-extras? Mas eu, graciosamente, não lhe dei uns dias de folga emendando o feriadão? Lembra não? Você assinou papel, mestre Jonas. Eu fechei a escola, dispensei todo mundo do trabalho, não houve qualquer atividade naqueles dias, até os alunos tiveram recesso, ninguém veio trabalhar, e o senhor ficou em casa. Fazendo o quê? Descansando às minhas custas! E mais, os próximos feriados emendados, já sabe, têm de pagar! Você é quem me deve, afinal aqui não tem nada de graça!

 

Assim, o auxiliar de ensino volta para a sua casa e avisa à mulher e aos filhos que aquelas horas-extras trabalhadas, com a intenção de engordar o pagamento do mês, não serão pagas, pois o patrão fez as contas e avisou que não deve pagamento e que o auxiliar ainda fará mais horas-extras para compensar o feriadão.

 

O ano letivo passa, o auxiliar trabalha sábado o dia todo, trabalha domingo, trabalha além da sua carga horária, trabalha até o dia raiar, e, mesmo assim, termina o ano devendo, porque, sem entender bem, concordou com a lógica do tal Banco de Horas.

 

O mais estranho é que nem todos os auxiliares de ensino estão submetidos ao Banco de Horas, pois uns poucos funcionários em algumas instituições de ensino têm tratamento diferenciado do restante do quadro de empregados.

 

A situação lembra os versos do poeta Castro Alves, quando este em sua lírica – Navios Negreiros – clamou:

 

“Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, Senhor Deus!

Se é loucura… se é verdade

Tanto horror perante os céus?!”

 

Haverá um Deus para os desgraçados – vítimas do Banco de Horas – e um Deus para abastados, que se apropriam e assediam o dinheiro destinado ao pagamento das horas-extras?

 

Quanto da riqueza negada ao pagamento de muitas horas-extras estará alimentando o lucro de poucos privilegiados?

 

Será necessário comparar a situação dos auxiliares de ensino, presos aos ferros do Banco de Horas, à situação dos escravos de outrora? Vivemos uma nova senzala que nega o pagamento do resultado do trabalho?

 

O Banco de Horas seria uma forma de assediar materialmente o salário do empregado, subtraindo-lhe o pagamento das horas-extras trabalhadas e seria uma forma de assediar moralmente a auto-estima do trabalhador?

 

Estaremos diante de um novo tipo de assédio, no qual um grupo de privilegiados apropria-se indevidamente da única riqueza que o trabalhador possui. Qual seja a força do trabalho?

 

Existe alguma moral para essa história?

 

Devemos rir de tudo isso ou devemos nos indignar?

 

 

Mário Lacerda, Advogado, é diretor do Saep/DF

Como citar e referenciar este artigo:
LACERDA, Mário. Teoria simplificada do Assédio Material. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-do-trabalho/teoria-simplificada-do-assedio-material/ Acesso em: 18 abr. 2024