Direito Penal

Atipicidade Material na Conduta do Art. 14 do Estatuto do Desarmamento

 

 

Resumo: O breve estudo exposto busca expor a superação, jurisprudencial e doutrinária, da condenação sob a égide da tipicidade formal no delito do art. 14 da Lei 10.826/03. Os tribunais têm buscado interpretar a lei segundo princípios constitucionais e, acertadamente, decidido pela atipicidade da conduta em casos de carência de lesividade.

 

Palavras-chave: Estatuto do desarmamento, porte, lesividade, ofensividade, atipicidade.

 

Sumário: INTRODUÇÃO; 1 PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO; 2 PRINCÍPIO DA OFENSIVIDADE; 3 DECISÕES DOS TRIBUNAIS; 4 ALINHAMENTO DOUTRINÁRIO; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS;

 

INTRODUÇÃO

 

1 – PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO

 

O direito penal – exatamente por tutelar os bens jurídicos de maior valor – deve ser verificado sob a égide dos preceitos fundamentais que regulam o mundo jurídico.

 

Tal necessidade decorre de evitar que haja tipificação de condutas que sejam carentes de lesividade material, além de evitar que ocorre um ataque aos princípios de Dignidade e Sociedade Justa expostos na Carta Democrática.

 

A Lei 10.826/03, em seu art. 14, tipificou a conduta de portar arma de fogo de uso permitido em desacordo com a legislação ou sem autorização:

 

“Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

 

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.”

 

            Tal conduta, consoante a materialidade, é de perigo abstrato, ou seja, não necessita a efetiva ocorrência de lesão ao bem jurídico, bastando o potencial de lesão, por ser tal potencialidade inerente a conduta praticada pelo sujeito.

 

Caracteriza-se, quanto à pluralidade de ações, como tipo misto alternativo ou delito de ação múltipla. Assim, ainda que haja a prática de mais de uma conduta, o crime em que incorre é, efetivamente, apenas um, o delito de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido.

 

Já sobre o bem jurídico, classifica-se como uniofensivo por lesar a incolumidade pública, sendo delito comum e de mera atividade.

 

 

2 PRINCÍPIO DA OFENSIVIDADE

 

            Em ensinamento preciso, Regis Prado determina requisito dos crimes, qual seja, a necessidade de lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico. (2)

 

            Consoante os tipos de perigo, a questão avança para conflito forte.

 

            In verbis, ensinamento de Zaffaroni e Pierangeli:

 

“Os tipos de perigo têm acarretado sérios problemas interpretativos. Para começar, um dos mais árduos é a forma de determinar o perigo, concluindo-se hoje que somente pode ser valorado ex-ante, isto é, do ponto de vista de um observador situado no momento da realização da conduta, e não ex-post, isto é, no momento de julgá-la. O perigo surge sempre de uma incerteza, e, posteriormente à conduta, geralmente, já não há incerteza.” (3)

           

            Assim, a incerteza é elemento caracterizador de tal espécie, não havendo precisão quanto à ocorrência do perigo. Punir-se-ia por um uma presunção carente de especificidade ou de, efetiva, lesão.

 

            Ainda dentro dos delitos de perigo, há distinção, (i) perigo concreto e (ii) perigo abstrato.

 

            O potencial de lesão é o critério distintivo. Enquanto no primeiro a possibilidade de lesão deve ser concreta no crime de perigo abstrato apenas o “perigo do perigo” é suficiente para sustentar a tipicidade. A insustentabilidade de tal espécie é verificada pelos autores supra, os quais determinam ainda que o perigo presumido orbita sobre uma inversão de ônus e cabe prova da ausência de possibilidade do perigo.

 

            A ofensividade inexiste no perigo abstrato, acertado é a determinação de que nullum crimen sine iniuria.

 

            Tal conceito é acertado em razão da necessidade de proteção do fundamento da Republica que é a Dignidade.

 

            Deve-se atentar ao fato de que condenar com o perigo abstrato é condenar sob a égide da incerteza da lesão ou do potencial de lesão na conduta do cidadão enquanto a conduta do julgador é revestida de precisão quanto à sua, efetiva, lesão à Dignidade, fundamento da República.

 

            Em mesma linha, o Pacto de San Jose:

 

“Artigo 11

§1. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.”

 

            A Dignidade deve ser protegida de forma eficaz e há um conflito, ainda não superado, com os delitos de perigo presumido, pois são carentes de ofensividade.

 

            Aspecto relevante é sustentando por Streck. O autor leciona que há estrita ligação entre os Princípios e os bens-jurídicos.

 

            Diante de tal situação, não há viabilidade em punir quando os direitos constitucionais não são, ao menos, expostos a risco:

 

Não pode restar qualquer dúvida no sentido de que o bem jurídico tem estrita relação com a materialidade constitucional, representado pelos preceitos e princípios que encerram a noção de Estado Democrático e Social de Direito. Não há dúvida, pois, que as baterias do direito penal do Estado Democrático de Direito devem ser direcionadas para o combate dos crimes que impedem a concretização dos direitos fundamentais nas suas diversas dimensões. Neste ponto, aliás, entendo que é neste espaço que reside até mesmo uma obrigação implícita de criminalização, ao lado dos deveres explícitos de criminalizar constantes no texto constitucional”. (4)

 

            Fundamental é a conclusão de Bittar sobre bem jurídico, pois a limitação da própria punição parte do descumprimento de uma norma legal e a norma apenas pode ser criada para a proteção de um bem socialmente valorado:

 

“O bem jurídico possui funções importantíssimas, podendo-se destacar como as relevantes: 1) a garantidora (ou limitadora) do próprio direito de punir do Estado; 2) a de critério de interpretação dos tipos penais, que alcança à finalidade de determinado bem jurídico; 3) a individualizadora (critério de medição da pena, no momento de sua fixação) levando-se em conta a gravidade da lesão ao bem jurídico; 4) a sistemática, como elemento classificatório decisivo na formação dos grupos de tipos de parte especial do Código Penal .Portanto, além de não poder admitir que se prescinda do conceito do bem jurídico mister observar, que este será decisivo, dentre outros, para se mensurar a necessidade, ou não tutela jurídico-penal de condutas, bem como de possibilitar à análise da necessidade de sanção penal.” (5)

           

            O Tribunal de Justiça do Paraná ensina, sob o fundamento já vislumbrado pelo STF:

 

RECURSO CRIME EM SENTIDO ESTRITO. – PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO (ARTIGO 14 DA LEI 10.826/2003) E DIRIGIR VEÍCULO AUTOMOTOR, EM VIA PÚBLICA, SEM A DEVIDA HABILITAÇÃO (ARTIGO 309 DA LEI 9.503/1997). – LAUDO QUE CONSTATA A IMPRESTABILIDADE DA ARMA DE FOGO. – ESCORREITA REJEIÇÃO DA DENÚNCIA NOS TERMOS DO ARTIGO 43, INCISO I, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. – PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. – DECISÃO MANTIDA. – RECURSO NÃO PROVIDO. I. Conforme Auto de Exame Descritivo de Eficiência e Potencialidade Lesiva de Arma de Fogo (fls. 24/25), ratificado pelo Termo de Constatação de Eficiência de Arma de Fogo (fls. 65), submetida a arma de fogo à prova de tiros, foi observado o não funcionamento dos mecanismos de propulsão, de engatilhamento e de disparo, não tendo funcionado na ação simples e também na ação dupla. II. “APELAÇÃO. PORTE ILEGAL DE ARMA. LEI N. 10.826/ 2003. ARMA DE FOGO DESMUNICIADA E INAPTA PARA CAUSAR DANOS. AUSÊNCIA DE LESIVIDADE. ATIPICIDADE DA CONDUTA. ABSOLVIÇÃO. 1) SEGUINDO PRECEDENTES DESTA CORTE, NÃO SE CONFIGURA CRIME PORTAR ARMA DE FOGO DESMUNICIADA E INAPTA A SER UTILIZADA PARA CAUSAR DANOS OU EXPOR A PERIGO O BEM JURIDICO PROTEGIDO PELA NORMA. 2) NO CASO, INEXISTE LESÃO EFETIVA OU POTENCIAL A BEM JURÍDICO TUTELADO PELA LEI PENAL. 3) MANTIDA A ABSOLVIÇÃO DO ACUSADO NOS TERMOS DO ART. 386, VI, DO CPP. 4) APELO IMPROVIDO.”(TJGO. Processo nº 200603366982. Relator Des. PAULO TELES. 2ª Câmara Criminal. Julgado em 05/06/2007)
(TJPR – 2ª C.Criminal – RSE 0448856-4 – Guaíra – Rel.: Des. Lidio José Rotoli de Macedo – Unanime – J. 31.01.2008)

 

            Neste sentido de necessidade de lesão, determinou o Supremo Tribunal Federal:

 

“EMENTA: Arma de fogo: porte consigo de arma de fogo, no entanto, desmuniciada e sem que o agente tivesse, nas circunstâncias, a pronta disponibilidade de munição: inteligência do art. 10 da L. 9437/97: atipicidade do fato: 1. Para a teoria moderna – que dá realce primacial aos princípios da necessidade da incriminação e da lesividade do fato criminoso – o cuidar-se de crime de mera conduta – no sentido de não se exigir à sua configuração um resultado material exterior à ação – não implica admitir sua existência independentemente de lesão efetiva ou potencial ao bem jurídico tutelado pela incriminação da hipótese de fato. 2. É raciocínio que se funda em axiomas da moderna teoria geral do Direito Penal; para o seu acolhimento, convém frisar, não é necessário, de logo, acatar a tese mais radical que erige a exigência da ofensividade a limitação de raiz constitucional ao legislador, de forma a proscrever a legitimidade da criação por lei de crimes de perigo abstrato ou presumido: basta, por ora, aceitá-los como princípios gerais contemporâneos da interpretação da lei penal, que hão de prevalecer sempre que a regra incriminadora os comporte. 3. Na figura criminal cogitada, os princípios bastam, de logo, para elidir a incriminação do porte da arma de fogo inidônea para a produção de disparos: aqui, falta à incriminação da conduta o objeto material do tipo. 4. Não importa que a arma verdadeira, mas incapaz de disparar, ou a arma de brinquedo possam servir de instrumento de intimidação para a prática de outros crimes, particularmente, os comissíveis mediante ameaça – pois é certo que, como tal, também se podem utilizar outros objetos – da faca à pedra e ao caco de vidro -, cujo porte não constitui crime autônomo e cuja utilização não se erigiu em causa especial de aumento de pena. 5. No porte de arma de fogo desmuniciada, é preciso distinguir duas situações, à luz do princípio de disponibilidade: (1) se o agente traz consigo a arma desmuniciada, mas tem a munição adequada à mão, de modo a viabilizar sem demora significativa o municiamento e, em conseqüência, o eventual disparo, tem-se arma disponível e o fato realiza o tipo; (2) ao contrário, se a munição não existe ou está em lugar inacessível de imediato, não há a imprescindível disponibilidade da arma de fogo, como tal – isto é, como artefato idôneo a produzir disparo – e, por isso, não se realiza a figura típica.
(RHC 81057, Relator(a):  Min. ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 25/05/2004, DJ 29-04-2005 PP-00030 EMENT VOL-02189-02 PP-00257 RTJ VOL-00193-03 PP-00984)”

 

            Já expostas as razões – aqui entendidas também no sentido de estar com a razão – afirmação que sustenta o voto fundamental do Ministro Peluso deve ser verificada:

 

“Igualmente é de ser inadmitida a punição de estados de ânimo, como o estado perigoso, pretendendo-se punir alguém, mesmo sem a prática de atos preparatórios, pela simples razão de se detectar a probabilidade de vir, no futuro, a realizar crimes. A periculosidade sempre foi o recurso dos sistemas políticos totalitários.” (6)

 

            A lição é precisa. A ausência de efetivo comprometimento do bem jurídico, junto da possibilidade de punição do metafísico são elementos que não podem ser desconsiderados.

 

 

3 DECISÕES DOS TRIBUNAIS

 

            Os Tribunais tem se alinhado no sentido de realizar as funções do direito penal evitando condenações em que há, evidente, carência de lesividade.

 

            O Supremo Tribunal Federal, em decisão recente, enuncia que a arma sem munição e a ausência de laudo que comprove a lesividade da arma não pode tipificar a conduta:

 

“EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. ARMA DESMUNICIADA. AUSÊNCIA DE LAUDO PERICIAL. ATIPICIDADE. Inexistindo laudo pericial atestando a potencialidade lesiva da arma de fogo resulta atípica a conduta consistente em possuir, portar e conduzir espingarda sem munição. Ordem concedida.
(HC 97811, Relator(a):  Min. ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 09/06/2009, DJe-157 DIVULG 20-08-2009 PUBLIC 21-08-2009 EMENT VOL-02370-05 PP-00923)“

 

            O STJ, em mais de um momento, direcionou-se pelos Princípios:

 

“Arma de fogo (porte ilegal). Arma sem munição (caso). Atipicidade da conduta (hipótese).

1. A arma, para ser arma, há de ser eficaz; caso contrário, de arma não se cuida. Tal é o caso de arma de fogo sem munição, que, não possuindo eficácia, não pode ser considerada arma.

2. Assim, não comete o crime de porte ilegal de arma de fogo, previsto na Lei nº 10.826/03, aquele que tem consigo arma de fogo desmuniciada.

3. Ordem de habeas corpus concedida.

(HC 70.544/RJ, Rel. Ministro  NILSON NAVES, SEXTA TURMA, julgado em 25/11/2008, DJe 03/08/2009)”

                       

O Voto da ilustre desembargadora Maria Thereza de Assis Moura ilustra a questão da atipicidade material:

 

“Quando do julgamento do citado HC 56.358/RJ, de minha relatoria, diante da tipificação trazida pela Lei 10.826/03, incriminando o porte tão-apenas da munição (sem a arma), entendi que, ipso iuris, também se deveria aceitar – logicamente – a tipificação do porte de arma, sem a munição.

Todavia, melhor refletindo sobre a matéria, à luz do Direito Penal do fato e da culpa, iluminado pelo princípio da ofensividade, vejo-me forçada a reformular minha posição, alinhando-se ao entendimento do Ministro Nilson Naves.

Da leitura da denúncia, não apuro concreta colocação em risco do bem jurídico tutelado – incolumidade pública-, evidenciando-se, no caso, a atipicidade material.”

 

            A verificação do voto da julgadora permite construir a superação do Princípio – em razão de sua auto-aplicabilidade – sobre a regra, situação necessária com a superação do positivismo.

 

            Um ato sem potencialidade de dano ao bem jurídico não pode ser uma conduta típica pela própria estrutura de construção lógica da regra. O sujeito, ao cometer um ato, deve ter atuado em desconformidade com uma regra, causando a implicação de uma sanção.

 

            O descumprimento necessita, no direito penal, lesão ou potencial efetivo de lesão ao bem jurídico. Órbita nesta questão o problema, pois pode ocorrer situação em que não há, ao menos, potencial de lesão, ocorrendo a possibilidade da possibilidade.

 

            O entendimento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul também trata da ofensividade:

           

ESTATUTO DO DESARMAMENTO. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO COM NUMERAÇAO RASPADA. BEM JURÍDICO. ATIPICIDADE. FALSA IDENTIDADE. CRIME INEXISTENTE. 1. Mesmo nos crimes de perigo, como porte de arma de fogo, exige-se, no mínimo a violação de uma relação de cuidado-de-perigo, como manifestação da ofensividade necessária à tipicidade do crime. As normas penais, em um Estado Democrático de Direito, somente se legitimam quando perseguem o objetivo de assegurar ao cidadão uma coexistência pacífica e livre. Por bem jurídico há que se entender as “circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias para uma vida segura e livre” e não a mera descrição típica, a mera previsão normativa. No caso em tela, o porte de arma de fogo municiada, contudo, inapta a produzir disparos, na medida em que não ostenta condições normais de uso e de funcionamento, não permite o reconhecimento da ofensa ao bem jurídico, portando, atípico o fato. 2. Quando a prova demonstra que a arma de fogo apreendida não apresenta condições normais de uso, é de ser reconhecida a inexistência da prática de crime, na medida em que não há ofensa ao bem jurídico. 3. Não existe crime na ação do agente que, preso em flagrante delito, mente sobre seu nome. Considerando que o Estado tem a possibilidade de identificar fisicamente o flagrado ou indiciado, através de método datiloscópico com a colheita de impressões digitais, torna impossível a ocultação do verdadeiro status personae do agente, deste modo, os elementos inverídicos declinados à autoridade policial com o intuito de passar-se por outra pessoa, são absolutamente ineficazes. APELOS DEFENSIVOS PROVIDOS. (Apelação Crime Nº 70015430655, Sétima Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nereu José Giacomolli, Julgado em 05/10/2006)

 

            Em decisão justa sob o aspecto constitucional, o Egrégio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro decidiu, expondo sobre a distinção da tipicidade formal com a material:

 

“EMENTA – PENAL – LEI DE ARMAS – NUMERAÇÃO SUPRIMIDA – ARMA DESMUNICIADA – BEM JURÍDICO PRINCÍPIO DA LESIVIDADE – TIPICIDADE – LEI 11706/08 – IRRETROATIVIDADE O moderno direito penal não mais se contenta com a mera tipicidade formal. Exige para o reconhecimento da infração a ofensa ao bem jurídico protegido no tipo respectivo. O comportamento que não ofende ou ameaça de lesão o bem jurídico protegido não possui tipicidade material, não justificando a condenação respectiva. Desta forma, a conduta de portar ou guardar arma de fogo desmuniciada não coloca em perigo concreto a segurança coletiva, salvo quando o agente também estiver na posse das munições respectivas. Todavia, considerando que a arma apreendida estava com a numeração suprimida ou raspada, a discussão acerca da ausência de munição se torna desnecessária, eis que o controle do SINARM já foi violado na ocasião, ocorrendo à indispensável tipicidade material. Esta Câmara, ademais, firmou entendimento de que o disposto na Lei 11706/08 não se aplica aos fatos ocorridos em data anterior à sua vigência, não tendo efeito retroativo. (2009.050.02649 – APELACAO – 1ª EmentaDES. MARCUS BASILIO – Julgamento: 05/08/2009 – PRIMEIRA CAMARA CRIMINAL)”

 

            A decisão reflete o Estado Democrático.

 

            Os Tribunais, como já mencionado, estão firmando entendimentos no sentido da Constituição e – ainda ausente uma unanimidade de entendimentos – o cuidado a ser tomado passa pela necessidade de repressão de tais delitos e da retomada do armamento, já que não se deseja, de forma alguma, a impunidade ou a violência, apenas é necessário elucidar, sob um entendimento, que a criminalização deve ocorrer em conformidade com a Constituição.

 

 

4 ALINHAMENTO DOUTRINÁRIO

 

            Há situações a serem verificadas, consoante a necessidade de laudo que comprove a potencialidade da arma e, ainda, a possibilidade de haver disponível espécie de munição.

 

            A resolução menos resistente trata da ausência de potencialidade em razão de, sob qualquer possibilidade, haver possibilidade de lesão efetiva, sendo um potencial impossível e acarretando, portanto, a classificação do delito como crime impossível.

 

            Capez elucida a questão:

 

“A arma de fogo sem potencialidade lesiva, ou seja, absolutamente ineficaz para detonar projéteis, não pode ser considerada como arma, para configurar a elementar do tipo constante do art. 12 da Lei 10.826/2003.” (7).

 

            Consoante a arma desmuniciada, Damásio explica com a lição do preceito da Lesividade:

 

“Desmuniciada a arma, inexiste tipicidade do fato, pois não há afetação ao bem jurídico, quer na forma de lesão efetiva ou potencial. Diante da lei penal, trata-se de crime impossível: o meio é inidôneo para lesão à objetividade jurídica.” (8)

 

            O conflito entre o medo e a Constituição. Considerando apenas o elemento axiológico do bem jurídico, a possibilidade de criminalizar a conduta que não causa lesão ou potencial efetivo é viável, ainda mais diante de uma sociedade em que a criminalidade é forte.

 

            Outro núcleo a ser verificado é da relação crítica entre o bem jurídico penal e os Princípios Fundamentais, havendo um ataque a esta relação por haver sustentação de uma atribuição da lei que não existe no mundo da vida.

 

            O argumento de Nucci é preciso;

 

“Arma quebrada e inapta a qualquer disparo: não é crime. Carregar uma arma desmuniciada é algo diverso de ter consigo arma completamente inapta a produzir disparo, afinal, cuida-se de delito impossível; a segurança pública não corre risco nesse caso; nem argumentemos como o fato de uma arma quebrada poder intimidar alguém, em caso de roubo, pois a arma de brinquedo também pode e isso não significa ser figura enquadrável no art. 14 desta Lei” (9).

 

            As razões têm diversos elementos, pois considerar a arma sem munição, quebrada ou de brinquedo como apta a causar a lesão é superar o próprio conceito de tipicidade.

 

            No entanto, há que se proteger a incolumindade pública, haja vista necessidade e o dever de segurança. Atribuir a lei, no entanto, a figura de ente multifacetário de combate ao crime é subverter uma relação lógica.

 

            Por evidente, a proteção da incolumidade é relevante, a materialização dos direitos do cidadão também, pois já ficou demonstrado ser esta a melhor das medidas preventivas do delito.

 

            Cabe a distinção das situações pelo magistrado que deverá concluir pela possibilidade de lesão, pois, mesmo o magistrado, não tem qualquer direito de lesar a Carta.

 

            A lição de Fragoso enquadra-se no exposto:

 

“Cumpre, no entanto, observar que o perigo deve ser presumível, excluindo-se o crime sempre que a ação tiver sido praticada em circunstâncias que excluam por completo a probabilidade da dano.” (10)

 

            Evita-se a apenação em razão de um anterior enquadramento formal no tipo.

 

 

CONCLUSÃO  

 

Os Tribunais não tem, ainda, uma determinação ampla em um sentido, havendo o embate sobre a Constituição e o medo em tensão a todo momento.

 

Necessário que haja as finalidades da pena como forma de proteção social, outro elemento a ser considerado é a necessidade de dispositivos de real incidência para as atribuições de pacificar.

 

O porte de arma em desconformidade pode representar uma diversidade de situações, contudo, a Lei não supera a Carta Republicana e seus preceitos.

 

Assim, a necessidade de se verificar o efetivo potencial não pode ser desconsiderada.

Como já mencionado, o desejo não é a impunidade e sustentar tal afirmação é carente de força argumentativa. Busca-se, de fato, demonstrar a necessidade de superar um empoeirado entendimento inconstitucional existente e necessidade de uma política de direitos humanos eficaz por ser a melhor das medidas.

 

Notas

           

(1)      Acadêmico de Direito, cursando o 5º ano na Universidade Estadual de Londrina, Paraná, membro do Projeto Prisão em Flagrante, adquirindo experiência e conhecimento de direito penal individual e processo penal, além de direito civil e administrativo, tendo publicado diversos artigos e estudos sobre direitos e garantias dos cidadãos, interpretação vinculada à Constituição, tendo participado de congressos e palestras, apresentando projetos de pesquisas. Figurou como monitor em projetos de ensinos, além de ter participado de outros.

 

(2)      PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Volume 1. Parte Geral. 7ª edição revista, atualizada e ampliada. São Paulo: RT, 2007, p. 140.

 

(3)      ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Volume 1. Parte Geral. 7ª edição revista e atualizada. São Paulo: RT, 2008, p. 484.

 

(4)      STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e constituição: da proibição de excesso (übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Disponível em:<http://leniostreck.com.br/index.php?option=com_docman&Itemid=40> Acesso em: 05 fev. 2009.

 

(5)      BITTAR, Walter Barbosa. Aspectos jurídico-penais da autorização do aborto do feto anencéfalo.

 

(6)      REALE JR., Miguel. Instituições do Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 33.

 

(7)      CAPEZ, Fernando. Estatuto do Desarmamento – Comentários à Lei n. 10.826, de 22-12-2003, 4ª edição. Editora Saraiva: São Paulo, 2006, p.17.

 

(8)      JESUS, Damásio E. de. Direito Penal do Desarmamento. 5ª edição reformulada. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 54.

 

(9)      NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. São Paulo, Editora RT, 2006, p. 258

 

(10) FRAGOSO, Heleno. Lições de Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 173.

 

 

 

* Diego Prezzi Santos, Acadêmico de Direito, cursando o 5º ano na Universidade Estadual de Londrina, Paraná, membro do Projeto Prisão em Flagrante, adquirindo experiência e conhecimento de direito penal individual e processo penal, além de direito civil e administrativo, tendo publicado diversos artigos e estudos sobre direitos e garantias dos cidadãos, interpretação vinculada à Constituição, tendo participado de congressos e palestras, apresentando projetos de pesquisas. Figurou como monitor em projetos de ensinos, além de ter participado de outros.

Como citar e referenciar este artigo:
SANTOS, Diego Prezzi. Atipicidade Material na Conduta do Art. 14 do Estatuto do Desarmamento. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/atipicidade-material-na-conduta-do-art-14-do-estatuto-do-desarmamento/ Acesso em: 25 abr. 2024