Direito Penal

Dos Requisitos da Acusação no Processo Penal

 

 

Sumário. 1. Regularidade formal da inicial. 2. Condições da ação penal. 3. Pressupostos processuais. 4. Justa Causa

 

 

 

 

1. Regularidade formal da inicial

 

 

              Dispõe o art. 41, do Código de Processo Penal, que a denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol de testemunhas.

 

              Por exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias compreende-se a descrição, pelo acusador – Ministério Público ou querelante -, da conduta imputada ao denunciado ou querelado – sujeito passivo da ação penal -, de forma a permitir o exercício da ampla defesa e o respeito ao contraditório.

 

              Assim, não basta a menção ao crime – tipo – previsto pela legislação penal, impondo-se a narrativa do comportamento – ação ou omissão – em princípio ilícito, a indicação do elemento subjetivo do agente – dolo ou culpa -a data, hora e local do evento – quando apurados –, o nexo causal entre a conduta e o resultado lesivo – em se tratando de crime com resultado material – e, por fim, havendo mais de um réu e existindo o concurso de agentes, a descrição da contribuição prestada por cada co-autor ou partícipe.

 

              Deve a peça acusatória, também, individualizar a pessoa do imputado, precisar seu nome, endereço, estado civil, filiação, domicílio e número de inscrição no Registro Geral constante da Secretaria de Segurança Pública (RG).

 

              Ainda que desconhecida a qualificação do sujeito passivo da ação penal, pode a denúncia ou queixa ser oferecida, desde que existam elementos que possibilitem a identificação inequívoca do imputado, tais como características físicas e outros traços – apelido, deficiência física, tatuagem, etc. Se tais características, entretanto, não forem suficientes à identificação perfeita do denunciado, inviável restará a instauração da ação penal, pois inadmissível o início de um processo penal sem que se conheça sobre quem pesa a acusação.

 

              Além da descrição do fato criminoso e da qualificação do imputado, exige o art. 41, do Código de Processo Penal, que conste da inicial acusatória a classificação do crime, isto é, não apenas o nome constante da rubrica lateral, mas também o dispositivo penal que o prevê. 

 

              Por fim, a denúncia ou queixa deverá conter, quando necessário, o rol de testemunhas.

 

              Embora excepcionalmente possa se prescindir, no processo penal, da prova oral, as regras de experiência demonstram que por conter a denúncia ou queixa a atribuição de determinado comportamento ao sujeito, dificilmente à formação de um juízo de convicção seguro a respeito da imputação é suficiente a prova documental ou pericial.

 

              Em todo o caso, havendo justa causa para a ação penal – indícios de participação na prática do crime, como veremos -, poderá ser a inicial acusatória recebida, mesmo sem o oferecimento de rol de testemunhas. Não apresentado, todavia, o rol quando do oferecimento da denúncia ou queixa, caracteriza-se a preclusão consumativa da oportunidade para tal fim, não podendo haver indicação de testemunhas em aditamento à inicial ou em outra oportunidade processual.

 

              A não observância dos requisitos citados implica a inépcia da inicial acusatória e tem por conseqüência a sua rejeição, nos termos da nova redação do art. 396, parágrafo único, inciso I, do Código de Processo Penal.

 

 

2. Condições da Ação Penal

 

2.1. Legitimidade

 

              Parte legítima, no processo penal, é apenas aquela que tem o direito de requerer a punição – legitimidade ativa – e, de outro lado, aquela que tem o seu interesse – liberdade – em conflito com aquela pretensão – legitimidade passiva.

 

              Nas ações penais públicas, tanto as incondicionadas, como as condicionadas, legitimado ativo é o Ministério Público, a quem cabe, nos termos do art. 129, inciso I, da Constituição Federal[1], e art. 257, inciso I[2], do Código de Processo Penal, privativamente, a promoção da ação penal pública.

 

              Assim, se a ação penal pública vier a ser proposta pelo ofendido, ou por outro eventual interessado, de rigor será a sua rejeição, por ausência de legitimidade ativa ad causam.

 

              Excepcionalmente, contudo, a lei confere ao ofendido o direito de exercer a acusação e de postular a condenação, em nome próprio. Trata-se das ações penais privadas, tanto as originalmente privadas[3], como as subsidiárias, estas últimas decorrentes da inércia do Ministério Público em oferecer a denúncia no prazo legal – cinco dias, se estiver preso o réu, e quinze dias, se solto ou afiançado, nos termos do art. 46, caput, do Código de Processo Penal.[4]

              A ação penal privada cabe ao ofendido ou, tratando-se de incapaz, nos termos da legislação civil, a quem tenha qualidade para representá-lo.[5] Inexistindo representante legal, ou sendo os seus interesses colidentes com os do ofendido, o direito de queixa poderá ser oferecido por curador especial, nomeado pelo Juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público.[6] Na hipótese de morte ou ausência do ofendido, declarada por decisão judicial, o direito de oferecimento de queixa passará ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão, que a exercerá não por representação, mas em nome próprio.

 

              Ausentes pessoas com essa relação de parentesco, inviável será a queixa, pois a enumeração do art. 31, do CPP é taxativa, de forma que, se oferecida, por exemplo, por tio, sobrinho ou primo do ofendido morto ou ausente, configurada restará a carência de ação, por ilegitimidade ativa.

 

              Parte legítima passiva, por sua vez, trata-se da pessoa a quem se imputa a prática do comportamento ilícito-típico, sujeito à imposição de uma pena.

 

              Assim, desde logo se percebe que os adolescentes, menores de dezoito anos, não têm legitimidade para figurar no pólo passivo de um processo penal, pois seus comportamentos não se sujeitam à legislação penal e nem podem ter por conseqüência a imposição de uma sanção desta natureza.

 

               De fato, fez o constituinte uma opção político-criminal de excluir do direito penal os indivíduos que, por ainda não terem atingido sua maturidade completa, devem ser submetidos a legislação especial e medidas outras que não a pena.

 

               Luiz Fernando Camargo de Barros Vidal – valendo-se das lições de Fragoso e Hungria – ressalta que: “A declaração constitucional de inimputabilidade penal significa que os menores não têm responsabilidade penal, ´estão fora do direito penal e não podem ser autores de fatos puníveis`. O que pretende a declaração de inimputabilidade etária é por critério de política criminal excluir o menor de 18 anos dos efeitos sempre negativos e estigmatizantes do direito penal, impedir de assinalar o adolescente transviado com o ferrete de uma condenação criminal”.[7]

 

               A inimputabilidade dos menores de 18 anos, assim, não se confunde com a inimputabilidade – real – do art. 26, caput, do Código Penal, mas traduz uma incapacidade de se submeterem ao direito penal e sua ilegitimidade para figurarem no pólo passivo de um processo penal.

 

               Como ressalta Aníbal Bruno: “O pensamento fundamental em referência à criminalidade dos menores é que ela não constitui matéria do Direito punitivo, mas de um regime tutelar (…) trazendo definitivamente os menores para fora do sistema de penas e castigos”.[8]

 

               Estas pessoas, portanto, não são submetidas ao direito criminal e ao processo penal, mas a um corpo de normas específico (Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069/90), cujo único fim é a educabilidade e a proteção daqueles que ainda não atingiram a maturidade plena – o que não se confunde com o juízo de reprovação ínsito à aplicação de uma sanção penal.

 

               Logo, eventual denúncia ou queixa oferecida contra menor de 18 anos deverá ser rejeitada, face à ilegitimidade passiva do denunciado ou querelado.

 

               Ainda como parte ilegítima deve ser reconhecido aquele que, em virtude de fraude – situação, infelizmente, de relativa incidência nos Juízos criminais -, teve os seus dados de qualificação indevidamente utilizados pelo verdadeiro autor do ilícito penal.

 

               Com efeito, se o legitimado passivo de um processo penal é a pessoa à qual se imputa a prática do fato criminoso – o que não se confunde com os meros dados de qualificação utilizados -, demonstrada a fraude, de rigor será a não instauração do processo contra quem não prestou contribuição alguma para o ilícito, e mais, que também foi vitimado, por via indireta, pela ação delituosa.

 

               Em conclusão, verificada a ilegitimidade de parte, seja a ativa, seja a passiva, a conseqüência será a rejeição da denúncia ou da queixa, por falta de uma das condições para o exercício da ação penal, conforme disposição contida no art. 396, parágrafo único, inciso II, segunda parte, do Código de Processo Penal.

 

1.2.2. Interesse Processual

 

                 Como sustentam Nelson Nery Jr. e Rosa Maria Andrade Nery: “Existe interesse processual quando a parte tem necessidade de ir a juízo para alcançar a tutela pretendida e, ainda, quando essa tutela jurisdicional pode trazer-lhe alguma utilidade de ponto de vista prático[9].

 

               Cintra, Grinover e Dinamarco ensinam que “Essa condição da ação assenta-se na premissa de que, tendo embora o Estado o interesse no exercício da jurisdição (função indispensável para manter a paz e a ordem na sociedade), não lhe convém acionar o aparato judiciário sem que dessa atividade se possa extrair algum resultado útil. É preciso, pois, sob esse prisma, que, em cada caso concreto, a prestação jurisdicional solicitada seja necessária e adequada”.[10]

 

               Em sentido próximo, já tratando especificamente do processo penal, mas ainda antes de sua reforma, posiciona-se Heráclito Antonio Mossin: “Não há no Código de Processo Penal nenhuma regra a estabelecer quais são as condições genéricas ou gerais da ação penal. Por essa razão, socorrendo-se do suplemento dos princípios gerais do direito (art. 3º do CPP), vão-se buscar tais condições no direito de ação abraçado pelo Código de Processo Civil, que em seu art. 267, VI, diz que se extinguirá o processo sem o julgamento [resolução] do mérito, “quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual” (…). O interesse processual ou de agir traduz-se, em última análise, em pedido idôneo a provocar a tutela jurisdicional do Estado. Portanto, somente haverá o interesse de agir quando a pretensão punitiva formulada pelo autor justifique a tutela estatal. Como se observa, o interesse processual ou de agir está intimamente ligado à movimentação da jurisdição. Assim, somente será viável o exercício da jurisdictio quando houver interesse processual, ou seja, quando a providência jurisdicional requerida seja adequada à situação concreta a ser decidida. Melhor dizendo, somente se justifica a movimentação do poder de julgar quando o pedido feito pelo autor é idôneo para tutelar sua pretensão punitiva. Disso resulta que o interesse processual é uma condição de exame de mérito”[11].

 

               Trata-se o interesse processual, portanto, da necessidade, adequação e utilidade do provimento jurisdicional postulado.

 

               No processo penal a necessidade está sempre presente, pois não há hipótese admitida pelo ordenamento jurídico para a imposição de uma sanção penal sem o devido processo legal.

 

               Resta, portanto, a adequação ou utilidade do processo, isto é, a análise de se a movimentação da máquina judiciária, a realização da instrução criminal e, posteriormente, a prolação de sentença, trarão algum proveito à sociedade.

 

               Tal exame não se confunde com a apreciação do direito alegado.

 

               Primeiro porque a justa causa para a ação penal constitui, agora, como veremos, requisito independente para o recebimento da denúncia ou queixa.

 

                Segundo porque, como anotam Cintra, Grinover e Dinamarco, “várias objeções poderiam levantar-se contra essa posição, porquanto a existência ou a aparência do direito não dizem respeito ao interesse de agir, como necessidade, utilidade ou adequação do provimento pretendido”.[12]

 

               Cremos, assim, que a ausência de interesse processual, no processo penal, apta a ensejar a rejeição da inicial acusatória, está ligada à instrumentalidade do processo e impõe a análise da utilidade do possível provimento, isto é, se eventual sentença condenatória será passível de execução ou se restará, de plano, atingida por causa de extinção da punibilidade.

 

               Trata-se, a nosso ver, de consagração da “prescrição virtual”, “antecipada” ou “em perspectiva”, majoritariamente rechaçada pela jurisprudência, apta a obstar a instauração de uma ação penal quando, diante das circunstâncias judiciais favoráveis e inexistência de fato que, em caso de sentença condenatória, implique a aplicação de eventual sanção penal em seu grau máximo, torne certo o futuro reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva e, por conseqüência, a decretação da extinção da punibilidade, com a “rescisão” da – hipotética – sentença condenatória e de seus efeitos principais e acessórios.

 

               Como o processo, nestas condições, não traria qualquer utilidade – mesmo porque o processo não pode por si mesmo constituir punição, tratando-se de mero instrumento para a obtenção da tutela jurisdicional -, injustificável restaria a sua instauração.

 

               Estes os fundamentos utilizados pelo extinto Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo para evitar a instauração de processo inútil:

 

Prescrição antecipada. Reconhecimento. Possibilidade: É possível o reconhecimento da chamada “prescrição antecipada” nos casos em que a pena eventualmente aplicada implicaria, necessariamente, em reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva estatal, pois não se concebe, na atual concepção da instrumentalidade do processo, que se movimente a máquina judiciária por apego ao formalismo, quando se sabe de antemão que a persecução penal irá desaguar em decreto de prescrição (TACRIM-SP – AC 1302843 / 1 – rel. Poças Leitão – j. 04.6.2002, m.v.).

 

               Logo, ausente, diante das circunstâncias que envolveram o fato em tese ilícito e as condições do imputado, possibilidade de provimento útil, impõe-se a rejeição da denúncia ou queixa por ausência de interesse processual, nos termos do art. 396, parágrafo único, inciso II, segunda parte, do Código de Processo Penal.

 

2.3. Possibilidade Jurídica do Pedido

 

               Por possibilidade jurídica do pedido compreende-se a previsão ou não vedação, pelo ordenamento jurídico, da postulação dirigida ao Poder Judiciário.

 

               No processo penal o exemplo claro de impossibilidade jurídica trata-se da denúncia ou queixa fundadas em fato manifestamente atípico, ou seja, que não guarde subsunção a qualquer tipo penal em vigor, e que não configure, por isso, sequer em tese, a prática de um delito.

 

               Neste caso não se trata de um exame prévio do mérito ou da plausibilidade da ação penal – reservado à apreciação da existência de justa causa -, mas apenas da própria descrição da conduta imputada, de sua adequação ao tipo legal de crime, bem como da aplicabilidade da norma penal ao caso concreto.

 

               Assim, a denúncia ou queixa que atribua ao denunciado a prática de um crime de furto, mas que descreva a subtração, pelo denunciado, de coisa própria, que não estava em poder legítimo de terceiro, por estar fundada em fato atípico, merece ser rejeitada por ausência de possibilidade jurídica; de igual forma, a imputação fundada em legislação revogada – por exemplo, o crime de adultério -, ou que não se encontrava em vigor quando da prática da conduta, se afigura impossível de tutela penal.

 

              Também a inicial acusatória que impute ao denunciado ou querelado fato que, embora caracterize um ilícito-típico, esteja atingido por causa de exclusão da punibilidade, não merece recebimento, pois extinta a punibilidade, impossível a prolação de uma decisão condenatória.

 

               Caracterizada a impossibilidade jurídica, deverá a inicial acusatória ser rejeitada, por ausência de uma das condições da ação.

 

2.4. Condições específicas do processo penal – ou de procedibilidade

 

               Ao lado das condições gerais da ação, o processo penal exige, para a instauração da ação penal, determinadas condições específicas, também denominadas de procedibilidade.

 

               Assim, por exemplo, nos crimes de ação de iniciativa pública condicionada, indispensável será o oferecimento de representação pelo ofendido, nos termos do art. 39, do Código de Processo Penal[13], ou a requisição do Ministro da Justiça, em se tratando de crime contra a honra praticado contra o Presidente da República, contra chefe de governo estrangeiro, conforme art. 145, parágrafo único, do Código Penal; no crime de induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento (art. 236,do CP), constitui condição específica da ação penal – queixa – o trânsito em julgado da sentença que, por motivo de erro ou impedimento, anule o casamento.

 

               Ausente condição específica de procedibilidade exigida pela lei, de rigor será a rejeição da denúncia ou queixa.

 

 

3. Pressupostos Processuais

 

 

               Pressupostos processuais são aqueles que possibilitam a constituição e desenvolvimento válidos do processo.

 

               Cintra, Grinover e Dinamarco ensinam que os pressupostos processuais indicam a regularidade da relação jurídica processual perante o direito: “sem os pressupostos ela pode nascer, mas será inválida (é válida, porém, a manifestação do juiz que, nesse processo viciado, declara a inexistência dos pressupostos)”. Acrescentam os citados autores, ainda, que constituem pressupostos processuais a regularidade da demanda formulada; a capacidade de quem a formula; a investidura do destinatário da demanda, ou seja, a qualidade de juiz, o que pode ser sintetizado na seguinte fórmula: “uma correta propositura de ação, feita perante uma autoridade jurisdicional, por uma entidade capaz de ser parte em juízo”[14].

 

               O primeiro pressuposto processual, portanto, refere-se à capacidade para ser parte.

 

               Assim, não podem oferecer denúncia aquele que não integre o Ministério Público ou queixa o ente desprovido da condição de pessoa – natural, jurídica ou judiciária.

 

               Nestas circunstâncias, incabível, por exemplo, a denúncia oferecida apenas por “estagiário”, ou a queixa apresentada por pessoa falecida ou por sociedade de fato.

 

               À capacidade para ser parte acrescenta-se a capacidade postulatória, isto é, de estar em juízo regularmente representado.

 

               Logo, para o recebimento de queixa-crime, não basta o seu oferecimento pelo ofendido, devendo estar firmada por advogado, com os poderes específicos para tal mister, observados os requisitos do art. 44, do Código de Processo Penal.[15]

 

               Ausentes os pressupostos relativos à partes, a denúncia ou a queixa deverão ser rejeitadas, de acordo com a nova redação do art. 396, parágrafo único, primeira parte, do Código de Processo Penal.

 

               Além dos pressupostos relativos às partes, a inicial acusatória deve ser oferecida a quem tem jurisdição, poder para decidir a causa, isto é, a juiz regularmente investido no cargo. Assim, absolutamente nula a ação penal recebida por juiz afastado de suas funções ou aposentado.

 

               Tratando-se de juízo incompetente, todavia, somente são passíveis de anulação os atos decisórios, devendo o processo, ao ser declarada a nulidade, ser remetido ao juiz competente, conforme previsão do art. 567, do Código de Processo Penal.              

 

 

4. Justa Causa

 

 

A instauração de um processo penal contra a pessoa representa, sem dúvida, uma limitação ao estado de liberdade – ou ao menos uma possibilidade orientada neste sentido -, de forma que constitui um constrangimento. Para que tal constrangimento, entretanto, não padeça de ilegalidade e seja passível de correção, inclusive por habeas corpus, indispensável é a existência de justa causa para a ação penal.

 

Embora equívoco o conceito de justa causa, tanto na doutrina, como na jurisprudência, entendemos que, por não se encontrar subsumido aos demais requisitos de ordem processual exigidos pelo legislador para o recebimento da inicial acusatória – aptidão formal da denúncia ou queixa, condições da ação e pressupostos processuais -, na medida em que a lei não traz expressões desnecessárias ou repetitivas, somente pode ser interpretado sob o prisma material, isto é, como plausibilidade da pretensão inicial condenatória, um fumus boni iuris ou suporte mínimo de provas apto a atribuir ao denunciado ou ao querelado o fato criminoso descrito.

 

O recebimento da inicial, portanto, pressupõe um mínimo de provas, ainda que indiciárias, que demonstrem a sua eventual viabilidade. Como assinala Fernando da Costa Tourinho Filho, “não basta simples ‘denúncia’, ou simples ‘queixa’, narrando o fato criminoso e dizendo quem foi o seu autor. É preciso haja elementos de convicção, suporte probatório à acusação, a fim de que o pedido cristalizado na peça acusatória possa ser digno de apreciação” (Processo Penal: São Paulo. Saraiva, 2001, vol. 1, p. 489).

 

Neste sentido, apenas a título de ilustração, colacionamos os seguintes julgados:

 

QUEIXA-CRIME – Inicial que não vem suficientemente instruída com documentos que sustentem a versão do querelante – Rejeição – Necessidade: A queixa-crime deve ser rejeitada quando não vem suficientemente instruída com documentos que sustentem a versão do querelante, chancelando suas condições de viabilidade e demonstrando a presença do fumus boni iuris. (TACRIM-SP – RSE  n. 1.299.229/0 – São Paulo – 5ª Câmara – Relator: Pereira da Silva – j. 24.4.2002 – v.u.).

 

FALSIFICAÇÃO DE PRODUTO DESTINADO A FINS TERAPÊUTICOS OU MEDICINAIS – Entrega a consumo – Cosméticos e produtos de higiene sem o devido registro exigido pelo órgão de vigilância sanitária – Para que tal crime, disposto no artigo 273 do Código Penal, se caracterizasse, a ação do apelante deveria apresentar efetivo perigo ou risco de dano à saúde pública, exigindo, ademais, o dolo genérico – Além do que, não foi realizada perícia que constatasse a eventual potencialidade de dano dos produtos – Falta de justa causa da ação penal – Reconhecimento – Recurso provido para absolver o apelante da imputação contida na denúncia, com fundamento no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal. (Apelação Criminal n. 933.194-3/3 – São Paulo – 11ª Câmara do 6º Grupo Criminal – Relator: Aben-Athar – 20.02.08 – V.U. – Voto nº 6.726)

 

“O trancamento da ação penal por meio do habeas corpus se situa no campo da excepcionalidade (HC 901.320?MG, Primeira Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU de 25?05?2007), sendo medida que somente deve ser adotada quando houver comprovação, de plano, da atipicidade da conduta, da incidência de causa de extinção da punibilidade ou da ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito (HC 87.324?SP, Primeira Turma, Relª. Minª. Cármen Lúcia, DJU de 18?05?2007). Ainda, a liquidez dos fatos constitui requisito inafastável na apreciação da justa causa (HC 91.634?GO, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 05?10?2007), pois o exame de provas é inadmissível no espectro processual do habeas corpus, ação constitucional que pressupõe para seu manejo uma ilegalidade ou abuso de poder tão flagrante que pode ser demonstrada de plano (RHC 88.139?MG, Primeira Turma, Rel. Min. Carlos Britto, DJU de 17?11?2006). Na hipótese, não há, com os dados existentes até aqui, o mínimo de elementos que autorizam o prosseguimento da ação penal.

Não tendo o paciente atribuído efetivamente prática criminosa a outrem cuja inocência era de seu conhecimento, restou atípica sua conduta, sendo imperioso o trancamento da ação penal relativa à prática do delito de denunciação caluniosa.

Ordem concedida. (STJ – HC n. 71.476-SP – 5ª Turma – Rel. Min. Felix Fischer – j. 07.02.2008, v.u.)

 

               A justa causa agora expressamente exigida para a instauração da ação penal, portanto, é caracterizada como a liquidez dos fatos constantes da peça acusatória, que deve estar respaldada por acervo probatório razoável, seja consistente em inquérito policial, seja por peças de informação e documentos. Ausente tal requisito, por absoluta falta de elementos que vinculem o imputado ao fato típico, impõe-se, desde logo, a sua rejeição, nos termos do inciso III, do art. 396, parágrafo único, do Código de Processo Penal.

 

 

 

* Antonio Carlos Santoro Filho, Juiz de Direito em São Paulo, Autor dos Livros Fundamentos de Direito Penal (Malheiros Editores, 2003) e Teoria da Imputação Objetiva (Malheiros Editores, 2007)



[1] Dispõe o art. 129, inciso I, da Constituição Federal: “São funções institucionais do Ministério Pùblico: I – Promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”.

[2] Dispõe o art. 257, inciso I, do Código de Processo Penal, em sua nova redação: “Ao Ministério Público cabe: promover, privativamente, a ação penal pública, na forma estabelecida neste Código”.

[3] Dispõe o art. 100, caput, do Código Penal: “A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido”.

[4] Dispõe o art. 29, do Código de Processo Penal: “Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério Público aditar a queixa [no prazo de 03 dias, conforme previsão do § 2º, do art. 46, do CPP], repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal”.

[5] CPP, art. 30.

[6] CPP, art. 33.

[7] “A irresponsabilidade penal do adolescente”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 18, p. 91.

[8] Direito Penal – Parte Geral, vol. I, t. II, pp. 163-164.

[9] Código de Processo Civil Comentado, 9ª ed., p. 436. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

[10] Teoria Geral do Processo, 19ª ed., p. 259. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

[11] Comentários ao Código de Processo Penal, pp. 109 e 113. Barueri: Manole, 2005.

[12] Ob.cit., p. 259.

[13] Dispõe o art. 39, caput, do CPP: “O direito de representação poderá ser exercido, pessoalmente ou por procurador com poderes especiais, mediante declaração, escrita ou oral, feita ao juiz, ao órgão do Ministério Público, ou à autoridade policial”.

[14] Teoria Geral do Processo, p. 289.

[15] Dispõe o art. 44, do CPP: “A queixa poderá ser oferecida por procurador com poderes especiais, devendo constar do instrumento do mandato o nome do querelante [em verdade querelado] e a menção do fato criminoso [e não apenas da disposição penal], salvo quando tais esclarecimentos dependerem de diligências que devem ser previamente requeridas no juízo criminal”. Se na procuração constar apenas a cláusula para o foro em geral – ad juditia -, a representação processual regular dependerá de suprimento da omissão, salvo se o querelante firmar, também, a inicial, hipótese na qual se presume que tenha conferido poderes para todos os seus termos.

Como citar e referenciar este artigo:
FILHO, Antonio Carlos Santoro. Dos Requisitos da Acusação no Processo Penal. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/dos-requisitos-da-acusacao-no-processo-penal/ Acesso em: 29 mar. 2024