Direito Penal

“É só minha opinião”: uma análise acerca do discurso de ódio e da influência das redes sociais e da contemporaneidade na liberdade de expressão

fig Caio Queiroz

Caio Queiroz da Silva

RESUMO

Este trabalho, que tem cunho avaliativo na disciplina de Criminologia, consiste na análise acerca dos Crimes de ódio, bem como o papel das redes sociais e da liberdade de expressão no âmago de tal questão. Para tanto, foi realizado pesquisas em sites e livros em buscas de referências bibliográficas para dispor melhor sobre o assunto.

Palavras-chave: Crimes de ódio, Redes sociais, Liberdade de Expressão

ABSTRACT

This work, which has an evaluative character in the discipline of Criminology, consists of the analysis about hate crimes, as well as the role of social networks and freedom of expression at the heart of this issue. To do so, we conducted research on sites and books in search of bibliographic references to better dispose on the subject.

Keywords: Hate Crimes, Social Networks, Freedom of Expression

1. INTRODUÇÃO

Com a disseminação das tecnologias e a globalização, talvez o principal avanço para a humanidade seja a sedimentação das mídias sociais. Claro que isso traz uma série de aspectos positivos, como uma maior integração entre as sociedades e um maior conhecimento de todos sobre questões vitais como justiça. Contudo o acesso e a partilha de informações fomentaram uma enxurrada de ódio e a justificativa da liberdade de expressão passa ser um álibi para atos muitas vezes desumanos. Crimes dessa natureza se tornaram cada vez mais frequentes e absurdos como o caso Charlie Hebdo mostram apenas uma parcela do quão chocante são os crimes de ódio, que afetam mulheres, negros, deficientes e outras inúmeras minorias sociais que se tornam alvos das mais cruéis barbáries. Assim, a tecnologia e o sistema de informações se tornam co-autores e propagadores de um sentimento reacionário que cada vez mais se mostra presente na sociedade.

2. CRIMES DE ÓDIO

A delimitação acerca do que compõe o conceito de crime de ódio e seu desdobramento no que implica ao ordenamento jurídico brasileiro carece, de antemão, da conceituação do que é crime, que possui significados variados nas diversas culturas presentes em todo o globo terrestre.

Neste diapasão, entende Durkheim (2010, p. 42) que: ““Crime é todo ato que, num grau qualquer, determina contra seu autor essa reação característica a que chamamos de pena”, onde para o autor, a reação conhecida como pena é gerada a partir da reação coletiva da sociedade, independentemente da época ou características da sociedade, por meio da lesão da ordem moral e do ordenamento jurídico.

O decreto lei n. 2.848, de 1940, reconhecido como Lei de introdução do código penal brasileiro, em seu art 1º, traz uma definição acerca do que é crime:

“Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente”.

O código penal brasileiro não traz expresso o conceito de crime, diante disto, Mirabete (2006, p.42) entende que o legislador deixou a cargo dos doutrinadores o definirem e conceituarem.

Para Tappan (1960, p.10, tradução nossa)[1]: “Crime é um ato ou omissão intencional em violação do direito penal (estatutário e jurisprudencial), cometido sem defesa ou justificativa, e sancionado pelo Estado como crime ou contravenção”. Dando um caráter objetivo e operacional do que seria o ato do crime e conceituação de criminoso, que seria aquela que comete ato ou omissão que viola o direito penal e tem para si, a aplicação de uma pena.

Em sua tese, Sara Alexandra de Carvalho e Almeida, entende que a noção de crime de ódio, ou “Hates Crimes” surgiu nos EUA, no ano de 1980, referindo-se a conduta como sendo a conduta proibida por lei. Onde o agressor era reconhecido por um determinado comportamento voltado às suas vítimas, que detinham características em comum, e suas ações eram motivadas por seu preconceito geral.

A Constituição Federal de 88 é enfática ao colocar o caráter de igualdade a todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, e traz, em seu escopo, uma série de princípios e garantias que buscam resguardar este caráter protecionista adotado, traçando como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a erradicação da pobreza e da marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.

A grande problemática acerca do protecionismo da norma constitucional e infraconstitucional é a falta de conceituação dos crimes de ódio, que apenas são enquadrados em institutos específicos, tais como o art. 140 do Código penal que conceitua o crime de injúria racial e o art. 121, § 2º, VI que conceitua o Feminicídio. Por isso há o impedimento da universalização do caráter protecionista, cabendo, unicamente, à doutrina a conceituação de crimes de ódio.

Neste viés, surgiu o projeto de Lei N.º 7.582, DE 2014, proposto pela deputada federal Maria do Rosário, que busca preencher a lacuna existente, trazendo em seu Art 1º:

“Toda pessoa, independentemente de classe e origem social, condição de migrante, refugiado ou deslocado interno, orientação sexual, identidade e expressão de gênero, idade, religião, situação de rua e deficiência goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.”

            Já nos artigos 3º e 4º, traz a conceituação do que se define como crimes de ódio e crimes de intolerância, versando:

“Art. 3º Constitui crime de ódio a ofensa a vida, a integridade corporal, ou a saúde de outrem motivada por preconceito ou discriminação em razão de classe e origem social, condição de migrante, refugiado ou deslocado interno, orientação sexual, identidade e expressão de gênero, idade, religião, situação de rua e deficiência.”

“Art. 4º Constituem crimes de intolerância, quando não configuram crime mais grave, aqueles praticados por preconceito ou discriminação em razão de classe e origem social, condição de migrante, refugiado ou deslocado interno, orientação sexual, identidade e expressão de gênero, idade, religião, situação de rua e deficiência.”

Cabe salientar, que os crimes de ódio necessitam de uma maior observação do seu caráter danoso, visto que, além do dano causado à(s) própria(s) vítima(s), há, ainda, de se atentar ao impacto negativo e danos psicológicos sobre os segmentos sociais atingidos pelos reflexos do crime, bem como a incitação ao medo ou ira de grupos sociais, gerando uma grande instabilidade social.

3. OS CRIMES DE ÓDIO VS LIBERDADE DE EXPRESSÃO

3.1 Liberdade de expressão como direito fundamental

Liberdade de expressão é uma característica da natureza racional do indivíduo e é o direito de qualquer um manifestar, livremente, opiniões, ideias e pensamentos pessoais sem medo de retaliação ou censura por parte do governo ou de outros membros da sociedade. É um conceito fundamental nas democracias modernas nas quais a censura não tem respaldo moral.

É resguardada como direito fundamental no ordenamento jurídico pátrio, sendo enquadrada no art. 5º, em seus incisos IV e IX, da Constituição Federal:

IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

X – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

É importante destacar que a liberdade de expressão está fincada, subjetivamente, no inciso II, do art. 5º, da CF/88:

II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

Inciso, este, que assegura a valoração de liberdade no ordenamento jurídico brasileiro.  

Bem como, num plano internacional, segundo o artigo XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos:

”Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão.”

A noção de liberdade de expressão advém da Grécia Antiga, em se tratando de Atenas, onde todos aqueles que residiam em uma demos (município, divisão territorial), resguardadas as características da época, podiam, livremente, expor suas ideias em uma ágora. O direito à voz era garantido a todos os cidadãos (homens livres). Por outro lado, a existência da escravidão era o que permitia o homem livre de participar da política, uma vez que o trabalho braçal era feito pelos escravos, deixando o seu dono disponível para as atividades cívicas. 

3.2 Liberdade de expressão como direitos humanos

Para Flavia Piovesan, importante jusfilósofa brasileira focada em Direitos Humanos, a liberdade de expressão é tão importante quanto ao acesso à saude, à educação e ao trabalho[2].

Flavia faz esta assertiva baseando-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos, os quais enfatizam que os blue rights (direitos de primeira geração) são tão importantes quanto os red rights (direitos de segunda geração). Logo, todas as gerações de direitos humanos estão em pé de igualdade, sendo nenhum maior ou mais importante que o outro.

Destacar a liberdade de expressão como direito humano, insere nela uma característica universal, a qual deverá ser exercida por qualquer ser humano, sem exceção.

É mister destacar o que Natalia Paes Leme Machado[3] aduz acerca do tema: “O universalismo alcança a raiz dos direitos humanos, por meio da Declaração Universal de 1948. Ela é o fruto de uma lenta conquista realizada mediante três frases sucessivas: as aportações dos filósofos, a recepção dessas aportações nos textos positivos nacionais e o translado da proteção ao plano internacional. Dessa forma, vai de um direito pensado a um direito realizado².

Assim como o artigo 19 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) também assegura a liberdade de expressão para qualquer pessoa:

1. ninguém poderá ser molestado por suas opiniões.

2. Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha.

3. O exercício do direito previsto no parágrafo 2 do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Consequentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para:

a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;

b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas.

Também não esquecendo da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, mais conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica de 1992, que garante no Artigo 13 que “Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha.”

3.3 A liberdade de expressão como discurso de ódio

A liberdade de expressão, compreendida como categoria de “direito-mãe” assim como propõe Jónatas Machado, é gênero a partir do qual subsistem inúmeras outras espécies de liberdades, tais como liberdade de imprensa, liberdade religiosa, que para além da proteção do objeto da expressão (do conteúdo), protege também os meios responsáveis pela difusão da expressão, sendo assim, em virtude da velocidade na propagação de ideias, a internet tem sido uma das plataformas que mais contribui com a realização desse direito no cenário atual.[4]

Diante disso, seja nos meios físicos ou virtuais, os cidadãos encontram-se livres para expor pensamentos, opiniões sobre diversas temáticas. Todavia, embora considerado direito fundamental primordial à manutenção do Estado Democrático de Direito, por vezes configura-se como instrumento que põe riscos ao mesmo a partir do momento em que se apresenta como discurso de ódio.[5]

O discurso de ódio (hate speech) diz respeito a uma variável da liberdade de pensamento cuja exteriorização corresponde à reprodução de ideias que inferiorizam, humilham e desqualificam grupos ou indivíduos em razão de suas características específicas lhe inserirem em determinados agrupamentos sociais que não correspondem aos ideais daquele que profere o discurso. Na visão de Howard Becker, seria o insider reagindo e manifestando seu posicionamento em relação aos outsiders, num contexto que objetiva silenciar e excluir os “desviantes”.[6]

Conforme alguns autores, como, por exemplo, Simon Lee (1990 apud DE FREITAS; DE CASTRO; 2011), atribui-se à Voltaire a culpa pela defesa do discurso de ódio como demonstração legítima da liberdade de pensamento enquanto essencial à democracia, de modo que caberia aos ofendidos suportar a ofensa em defesa daquela. A tolerância seria indicada como solução para lidar com tal situação[7], porém, julga-se inviável tolerar um discurso que além de demonstrar-se excludente, desrespeita os direitos alheios, como a dignidade da pessoa humana, e afeta a própria liberdade de expressão (DE FREITAS; DE CASTRO, 2011). Sendo assim, não se tolera o intolerável.

Por isso, considerada a partir dos moldes liberais: 

[…] a Liberdade de Expressão tenderá a admitir o discurso do ódio como manifestação legitima, ainda que com prejuízo dos ofendidos. Por outro lado, quando se trata do esgotamento do paradigma liberal e da afirmação do Estado Social, observa-se o reconhecimento, pelo Estado, das assimetrias sociais e o compromisso que se estabeleceu (pelo menos ao nível da retórica) com a justiça redistributiva, necessária à pacificação social. (DE FREITAS; DE CASTRO, 2011).

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal posicionou-se quanto a esta temática e assim aduz:

As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o “direito à incitação ao racismo”, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. (HC 82.424, Rel. p/ o ac. Min. Presidente Maurício Corrêa, julgamento em 17-9-2003, Plenário, DJ de 19-3-2004, grifo nosso).

Portanto, no ordenamento jurídico brasileiro o uso dessa garantia constitucional não é ilimitado, por isso mesmo importa lembrar que, assim como outros direitos fundamentais, não possui caráter absoluto, desse modo, condiciona-se à observância das diretrizes impostas pela CF/88, levando-se em consideração os critérios da proporcionalidade e da razoabilidade.

3.4 Je suis Charlie Hebdo?

Conhecido por ser um jornal satírico, o Charlie Hebdo, jornal francês, no dia 7 de janeiro de 2015, em Paris, foi atacado pelos irmãos Saïd e Chérif Kouachi, portando fuzis Kalashnikov, e gritando “Allah al akbar” (“Deus é grande”), ao que tudo indica, como forma de protesto às sátiras que vinham sendo realizadas pelo referido jornal a respeito do mundo islâmico e foram encaradas como insulto pelos muçulmanos. O atentado resultou na morte de 17 pessoas dentre as quais encontrava-se parte da equipe do Charlie Hebdo.

Para fins de maior conhecimento, apresenta-se quadro cronológico quanto às polêmicas do Charlie Hebdo, além de imagem ilustrativa. 

Quadro 1. 

Setembro 2005

Jornal dinamarquês Jyllands-Posten publica caricaturas do profeta Maomé consideradas ofensivas. Ação provoca atos de violência contra embaixadas da Dinamarca

Fevereiro 2006

Charlie Hebdo reproduz caricaturas do jornal dinamarquês em protesto. Os 140 mil exemplares com as caricaturas se esgotam rapidamente, e o semanário providencia tiragens extras de 400 mil exemplares. Presidente Jacques Chirac critica publicação, dizendo que ela é uma “provocação que pode perigosamente exacerbar as paixões”. Polícia é mobilizada para proteger sede da redação.

Março 2007

Tribunal parisiense determina arquivamento de processo que poderia ser aberto por iniciativa de entidades muçulmanas contra o Charlie Hebdo.

Fevereiro 2008

Polícia dinamarquesa anuncia prisão de três pessoas que planejavam assassinar cartunista dinamarquês responsável por caricaturas de Maomé no Jyllands-Posten. Jornal diz que alvo do ataque seria Kurt Westergaard, então com 73 anos.

Novembro 2011

Sede do Charlie Hebdo é alvo de bomba incendiária depois que semanário nomeia Maomé “editor-chefe” de uma edição. Diretor da publicação é mantido sob proteção policial.

Setembro 2012

Charlie Hebdo volta publicar caricaturas do profeta. Na capa, desenho mostra judeu ortodoxo carregando um muçulmano numa cadeira de rodas. Ambos dizem ao leitor: “Não ria!”. Governo francês fecha escolas, representações diplomáticas e centros culturais em uma sexta-feira – dia tradicional de protestos em países islâmicos – em 20 países, para evitar ataques.

Janeiro 2013

Site do Charlie Hebdo fica fora do ar por algumas horas após ser atacado por hackers. No mesmo dia, publicação havia lançado uma história em quadrinhos sobre Maomé.

Janeiro 2015

Sede do Charlie Hebdo, no centro de Paris, atacada, sendo alvo de ataque terrorista.

Fonte: Folha de S. Paulo apud DE MORAES; SANTOS, 2018.

fig Caio Queiroz

Figura 1. Tradução: “o Corão é uma merda”, “ele não para balas”. Fonte: Pragmatismo Político.

Face ao polêmico debate instaurado no Brasil e no mundo a respeito dos limites à liberdade de expressão levantado por este caso, traze-o a luz a fim de que se discuta, não a legitimidade ou validade do ataque, mas se, com base no direito brasileiro, a exteriorização do pensamento do jornal configura discurso de ódio ou não. Após o ataque, autoridades, líderes mundiais, personalidades da mídia, bem como pessoas comuns posicionaram-se contra aquele em defesa da liberdade de expressão. As redes sociais ficaram repletas de apoiadores do jornal, no Facebook a sociedade demonstrava seu apoio usando o lema “Je suis Charlie Hebdo”, que em tradução literal significa “eu sou Charlie Hebdo”. Todavia, questiona-se: o que há detrás dessa afirmativa?

A liberdade de expressão apresenta tratamento diverso em várias partes do mundo. Geralmente países liberais, exemplo gratia, Estados Unidos, tratam-na como direito a ser respeitado ainda que se comporte como discurso odioso. Compartilhando desse posicionamento, a França, outrossim, protege o discurso de ódio, visto que reflete fala relativa ao direito à liberdade de expressão. Por outro lado, como já demonstrado, no contexto brasileiro, a “livre” expressão obedece a alguns limites, diante disso, incitar o ódio a determinado grupo social por força de suas especificidades não está abarcado pela utilização dessa prerrogativa. Destaca-se, porém, que, em regra, no Brasil veda-se o controle prévio desse direito, conforme dispõe o art. 220, parágrafo 2º, da Carta Magna, sendo assim, os limites não devem gerar censura, se for o caso, far-se-á controle posterior, exigindo-se a respectiva responsabilização.

Frente isso, expõe-se o seguinte julgado do STF:

Noutros termos, primeiramente, assegura-se o gozo dos “sobredireitos” de personalidade em que se traduz a “livre” e “plena” manifestação do pensamento, da criação e da informação. Somente depois é que se passa a cobrar do titular de tais situações jurídicas ativas um eventual desrespeito a direitos constitucionais alheios, ainda que também densificadores da personalidade humana. Determinação constitucional de momentânea paralisia à inviolabilidade de certas categorias de direitos subjetivos fundamentais, porquanto a cabeça do art. 220 da Constituição veda qualquer cerceio ou restrição à concreta manifestação do pensamento (vedado o anonimato), bem assim todo cerceio ou restrição que tenha por objeto a criação, a expressão e a informação, seja qual for a forma, o processo, ou o veículo de comunicação social. Com o que a Lei Fundamental do Brasil veicula o mais democrático e civilizado regime da livre e plena circulação das ideias e opiniões, assim como das notícias e informações, mas sem deixar de prescrever o direito de resposta e todo um regime de responsabilidades civis, penais e administrativas. Direito de resposta e responsabilidades que, mesmo atuando a posteriori, infletem sobre as causas para inibir abusos no desfrute da plenitude de liberdade de imprensa. (ADPF 130, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 30-4-2009, Plenário, DJE de 6-11-2009).

No mais, conforme declara o STJ:

Nessas situações, cumpre ao Poder Judiciário agir com austeridade, assegurando o amplo direito de resposta e intensificando as indenizações caso a conduta se reitere, conferindo ao julgado caráter didático, inclusive com vistas a desmotivar comportamentos futuros de igual jaez. (REsp 1388994 / SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 29/11/2013).

Convém salientar que, segundo o Jornal Sul21: “[…] Charlie Hebdo facilitou o crescimento de uma forma politizada de sentimento anti-islâmico que tem uma inquietante semelhança com o politizado antissemitismo que emergiu no movimento de massas da França nos anos 1890.” (SUL21, 2015). Ou seja, incentivou a exclusão dos islâmicos. Nessa perspectiva, opina-se, conforme já mencionado HC 82.424 de relatoria do Min. Maurício Corrêa, como transcendente à mera liberdade de expressão, constituindo-se em prática discriminatória[8]. Ademais, reputa-se hipócrita a utilização da máxima “Je suis Charlie Hebdo”, devido ao fato dos adeptos desta considerarem liberdade de pensamento apenas aquilo que os convém como insiders, enquanto que, ao sofrerem os mesmos ataques, julgam odiosos e desprezíveis os discursos, agindo inclusive de maneira semelhante.

À exemplo disso, em situações contrárias, nas quais supostamente as liberdades cerceadas referiam-se às dos ditos países defensores da liberdade de expressão, comportamento diametralmente oposto é visualizado. Em julho de 2007, 11 iraquianos foram mortos pelo exército estadunidense, dentre eles estavam jornalistas da Reuters, agência de notícias britânica, que cobriam a guerra do Iraque. A agência exigiu uma investigação acerca do ocorrido e a obtenção do material audiovisual recorrendo à Lei de Liberdade de Imprensa. Mas como resposta, as forças armadas americanas afirmaram que as ações dos soldados estavam respaldadas pelo ordenamento americano sobre como, quando e onde a força deve ser utilizada. Dessa forma, afirma-se que ao opor-nos ao Hebdo não se aprova o ataque, em contrapartida, indica-se oposição ao jornal e também a qualquer tipo de ataque que contra ela ou qualquer outra pessoa, física ou jurídica, tenha sido ou venha a ser feito.

4. A INFLUÊNCIA DAS MÍDIAS E O USO DAS TECNOLOGIAS PARA A DISSEMINAÇÃO DOS CRIMES DE ÓDIO.

Os grandes meios de difusão de informação, dentre os quais, os jornais, as emissoras de rádio, de televisão e, hoje, também a internet, representam um importante marco social, pois desde o seu surgimento, tais mídias têm transformado a percepção dos indivíduos quanto ao que acontece à sua volta.

Uma mesma informação pode ser abordada de diferentes maneiras por cada veículo de difusão, resultando em interpretações diversas construídas a partir de recortes do acontecimento retratado. Isso não significa necessariamente a ausência de compromisso com a veracidade, mas a escolha do que é ou não relevante sobre determinado assunto, bem como a forma de abordagem dos fatos, são trabalhadas com o intuito de despertar o interesse do público-alvo ao qual se direciona.

Nesse sentido, é notória a influência dos meios de comunicação de massa sobre a opinião que os indivíduos vem a formar sobre o que é veiculado; assim, é de se observar que, especialmente no cenário de um mundo globalizado, e, considerando as implicações do limite entre a liberdade de expressão e a ofensa a outrem, tem ganhado destaque a discussão quanto aos crimes de ódio.

Apesar do potencial dos veículos de informação para a exploração do pluralismo de ideias e do debate crítico, a dinâmica desses meios, em especial das redes sociais, esbarra diretamente na repercussão das notícias falsas e no uso do espaço virtual como ambiente de estímulo à intolerância, seja ela política, religiosa, de gênero ou racial; dessa forma, com o advento da internet, a sociedade deixa de ser somente a receptora das informações e notícias reproduzidas pela mídia e passa a atuar também na produção de conteúdo. É o que se depreende do seguinte trecho:

A individualização da produção, assim como a intensa interação com a gama de informações veiculadas no ciberespaço, implica sensíveis alterações no modelo tradicional de comunicação, como a perda da exclusividade na produção e veiculação de informação pela indústria cultural, na convergência dos meios de comunicação e no advento da cultura participativa em uma sociedade em rede (COGO, 2005, p. 13 apud. BARDINI, p.58).

Percebe-se, portanto que o espaço virtual promoveu uma ruptura com os meios tradicionais de comunicação e se tornou um ambiente fértil para a propagação de preconceitos, pois há a liberdade para expressar as opiniões com a sensação de anonimato e de impunidade.

Por promover o estabelecimento de relações em rede, a internet possibilita ainda a rápida estruturação de grupos sociais formados a partir da identificação com determinados padrões comportamentais e essa interação se utiliza de símbolos, dentre os quais está a manifestação de ódio, ora compreendida na perspectiva da prática de crimes de ódio (LEBRUN, 2008, p.9 apud. STEIN, 2018, p. 47).

A estruturação de grupos sociais através da internet, todavia, dificilmente resulta em um diálogo real, por conta da fluidez das relações. Ainda assim, tais grupos se fortalecem utilizando formas alternativas de atuação em conjunto, pois, segundo assevera Maffesoli (1998, p.20), conforme citado por Stein (2018, p. 37) “o uso de máscaras tornam maleáveis os deslocamentos nos contextos diversos,
‘sobretudo numa variedade de cenas e de situações que só valem porque representadas em conjunto’”.

Em outros termos, o coletivo tem uma grande influência sobre as ações individuais e prevalece sobre estas. Isso pode ser percebido através de um recorte extremamente atual envolvendo o cenário político dos Estados Unidos e do Brasil, pois, em ambos os países, foram eleitos candidatos à presidência cujo discurso, muitas vezes carregado de preconceito e ataques velados a minorias sociais, foi fortalecido por grupos sociais com atuação na internet.

Sobre esse aspecto,

(…) cabe ressaltar que o momento de crise da modernidade, por
conta da multiplicidade de papéis sociais, gera, de forma potencializada, a intolerância manifestada de formas variadas no ciberespaço. A reação contrária ao multiculturalismo e aos valores democráticos, utiliza as redes sociais digitais como meio de propagação da intolerância no Brasil, principalmente em relação à política (WAGNER, 1994 apud. BARDINI, p.40).

E mais, a propagação dos discursos e crimes de ódio não está restrita as redes sociais, mas também, os grandes sites e jornais de notícia já há alguns anos vem exibindo dentre suas publicações os casos de ataques motivados pela intolerância, como homicídios cometidos por grupos neonazistas, ataques violentos a homossexuais, dentre outros. Tais publicações, apesar do apelo para demonstrar a conotação negativa dos atos e a punição como resultado prático aos atos de intolerância, podem servir também como exemplos passíveis de reprodução por outros indivíduos que compactuam com o ódio motivador dos crimes.

Por outra via, com a facilidade para criação de ‘blogs’ e com os patrocínios direcionados à fomentação estratégica de determinadas notícias, difícil é apurar a veracidade dos fatos absorvidos diariamente através das mídias, sendo possível fomentar toda a sorte de agressões veladas, disfarçadas de matéria jornalística.

5. CONCLUSÃO

Durante este estudo, pode-se perceber a globalização e o mundo contemporâneo intensificaram a percepção geral a cerca dos crimes de ódio. A opinião própria nunca possui tanto valor e isso traz à tona preconceito, discriminação, violência e morte em um grau jamais visto e os impactos são visíveis em todas as esferas sociais e o fato do Ordenamento Jurídico do Brasil, não especificar o que é crime de ódio abre brechas para que a impunidade seja celebrada por aqueles que o comentem.

Casos como do Charlie Hebdo são extremos, num mundo onde gays, negros e mulheres são mortos apenas por existirem e viverem como são. E como exposto no trabalho, a mídia e as redes sociais são ferramentas impulsionadoras de tais atos. A velocidade com que as notícias de violência e preconceito são veiculadas é diretamente proporcional ao mal que elas causam. Assim, as redes sociais e os meios de comunicação tornaram-se verdadeiros palcos para a propagação de preconceitos, pois nesses espaços, há liberdade para expressar posicionamentos e opiniões com certa sensação de anonimato e impunidade, ora vedados pela Constituição Federal.

REFERÊNCIAS

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[1] “Crime is an intentional act or omission in violation of criminal law (statutory and case law), committed without defense or justification, and sanctioned by the state as a felony or misdemeanor”.

[2] PIOVESAN, Flavia. DIREITOS HUMANOS: DESAFIOS E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS. Revista do Tribunal Superior do Trabalho.

[3]Mestre em Direito das Relações Internacionais no Centro Universitário de Brasília–UniCEUB. Bolsista Capes no programa mestrado-sanduíche. Pesquisadora do grupo de Pesquisa Internacionalização dos Direitos.

[4] SARLET; MARINONI e MITIDIERO, 2017.

[5] SARLET; MARINONI e MITIDIERO, 2017.

[6] BECKER, 1928.

[7] ESCAMÉZ, 2005, p. 11 apud DE FREITAS; DE CASTRO, 2017.

[8] MACKINNON, Catherine. Only words. Cambridge: Harvard University Press, 1991, p. 99-100 apud DE OLIVEIRA, 2013.

Como citar e referenciar este artigo:
SILVA, Caio Queiroz da. “É só minha opinião”: uma análise acerca do discurso de ódio e da influência das redes sociais e da contemporaneidade na liberdade de expressão. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2019. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/e-so-minha-opiniao-uma-analise-acerca-do-discurso-de-odio-e-da-influencia-das-redes-sociais-e-da-contemporaneidade-na-liberdade-de-expressao/ Acesso em: 28 mar. 2024