Direito Penal

Desapropriação ou não do cadáver

1. Considerações iniciais

Não obstante a Lei nº 3.365/41 mencionar o termo “todos os bens” de forma genérica, este acepção merece ser retocada, dada a complexidade que possui a palavra bem.

A princípio, não restam dúvidas de que bens ou propriedades são todas as coisas que integram o patrimônio de alguém, bem como as que o homem pode se apropriar.

É de se registrar que na maioria das vezes a desapropriação versa sobre bens imóveis, atraindo para este segmento a maior fatia de estudos doutrinários sobre o tema. Contudo, o instituto da desapropriação não se cinge tipicamente à natureza imobiliária, não encontrando na legislação pertinente qualquer restrição que justifique esta tendência.

Foi a partir da interpretação doutrinária, contudo, que nasceu a controvérsia sobre a possibilidade ou não de desapropriar bens móveis. Questionavam alguns doutrinadores que, ante a viabilidade de desapropriar bens móveis – bem mais comuns de serem encontrados no corpo do patrimônio das pessoas que os imóveis – injustificado seria desapropriar estes últimos, eis que estas consignam uma restrição à propriedade privada.

Hoje em dia não mais pairam dúvidas acerca da desapropriação dos bens móveis, sobretudo quando raros e a sua incorporação é de grande valia para o patrimônio público, justificando-se a necessidade ou a utilidade pública. Como exemplo, obras de arte e moedas raras poderão ser desapropriadas para integrarem o patrimônio de determinado museu público, passando a atender à cultura de toda à população e não mais apenas à do proprietário particular. Supriu-se o interesse do particular em prol do interesse da coletividade, já que todos têm direito à cultura.

A esse respeito, oportuno elencar que tantos os bens móveis quanto os imóveis, corpóreos e incorpóreos, fungíveis e infungíveis, materiais e imateriais podem ser desapropriados, desde que atendam a uma satisfação humana.

Entretanto, deve-se observar que nem todas as coisas materiais interessam necessariamente ao mundo jurídico, por não terem o condão econômico e não serem objeto de apropriação exclusiva pelo homem, como, por exemplo, o ar que se respira, a luz e o calor solar, que são bens que a todos alcançam.  

Por outro lado, deve-se ter em mente que nem todo bem que integra o rol de satisfações humanas, como a saúde, a família, os amigos etc., guarda uma conotação jurídica, fugindo à esfera daqueles bens os quais podem recair uma declaração de utilidade ou de necessidade pública. Com efeito, os bens mencionados na lei de desapropriação são aqueles que possuem um valor econômico e que integram o patrimônio de uma pessoa física ou jurídica, não abarcando esta assertiva qualquer outro sentido atribuído à palavra.

O bem a que se refere a lei de desapropriação, conforme se constata, deve ser mensurável economicamente, podendo ser adquirido e incorporado ao patrimônio do homem. A esse respeito, observa-se que há vários bens essenciais à existência humana que não são passíveis de se mensurar economicamente, tampouco de se adquirir através de dinheiro. Estes não se incluem no rol de bens que podem integrar o patrimônio das pessoas.

Há bens cujos valores não alcançam a esfera pecuniária, dadas as suas relevâncias. Não se atribui valor monetário à vida, à honra, à liberdade, entre outros bens. Estes não se encontram à venda, nem podem ser alienados. Possuem valor inestimável que não se suscita na esfera econômica. Insurge-se um liame entre o bem suscetível de ser expropriado e o seu equivalente valor monetário.

Conclusivo, pois, que a expressão “todos dos bens”, concernente ao art. 2º da Lei nº 3.365/41, possui contornos bem definidos, desconsiderando-se a sua abrangência e generalização e agregando-a a um inseparável sentido pecuniário. Da mesma forma, para efeito de desapropriação, são considerados tão-somente os bens que integram o patrimônio de uma pessoa, natural ou jurídica, leia-se bens econômicos. Não se lhes configurando o caráter econômico ou pecuniário, ou ainda, não se lhes aplicando à espécie a presunção da validade em dinheiro, estes bens não serão objeto de decreto expropriatório.

O espaço aéreo e o subsolo, bem como os bens de domínio dos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios podem ser expropriados. Da mesma forma, as ações, cotas e direitos representativos do capital de instituições e empresas, havendo a devida autorização governamental, também poderão sê-los.[1]

2. Cadáver

Questão mais polêmica é a que recai sobre a desapropriação ou não do cadáver, posto que este “bem” envolve valores que vão além do quesito econômico, sobretudo no que concerne aos sentimentos dos familiares e à dignidade humana.

Só se atribui valor econômico àquilo que é passível de se avaliar financeiramente. Por isso, valor econômico está atrelado a coisas materiais, a coisas que podem ser economicamente avaliadas. Atribuir valor econômico a pessoas, vivas ou mortas, se nos parece perpassar os limites da dignidade e igualar o homem a coisas e objetos, desassociando-lhe do caráter humano.

Parte da doutrina tem se filiado no sentido dessa possibilidade, no uso de argumentos, diversos.[2]

Contudo, registre-se que esta posição não encontra amparo na maioria doutrinada. Em pensamento contrário, encontra-se Seabra Fagundes,[3] com o seguinte pensamento:

“É a sua inestimabilidade, que o excluindo da órbita dos valoreseconômicos para situá-lo no plano dos valores puramente morais, lhe tira toda a possibilidade de avaliação em dinheiro e, conseqüentemente, de indenização a troco da apropriação pelo Estado. De futuro, outra poderá ser a posição do problema, mas, hoje em dia, é sem dúvida essa”. 

Da mesma forma, em posição consistente, José Carlos de Moraes Salles se firma pela total impossibilidade de expropriar o cadáver.[4]

Cumpre registrar que, independente do âmbito religioso, eis que a religião é faculdade de cada um, mas sobretudo pelo âmbito moral não se nos parece concebível arbitrar valor econômico ao cadáver de um ente querido, que outrora fazia parte de nossa convivência. A estima, o amor, o respeito e a admiração que tínhamos por alguém em vida são sentimentos que não podem ser revertidos, após a sua morte, para a esfera econômica. Inconcebível tratar um ente querido como uma mercadoria, a qual se sujeita a um valor econômico, a um “valor de mercado”, sendo até mesmo esta idéia, sob o ponto de vista de ordem moral, repudiável.

O Código Penal brasileiro dispõe sobre a proteção legal do cadáver, disciplinando o crime de vilipêndio a cadáver, que será imputado àquele que o vilipendiar.

Quando se tratar de cadáver de indigente, insurge-se outra questão, pois não se teria a quem ressarcir com a devida indenização, em caso de desapropriação, por não haver ninguém responsável por este suposto bem. Desta feita, não poderia desapropriar cadáver de indigente, pois esta não se consumaria, por carência do pressuposto de indenização.

Na hipótese em que o cadáver é destinado à universidade para pesquisa, haverá o caso de uma liberalidade do diretor do IML, que deu a autorização ao seu destino, se configurando esta conduta em ato administrativo típico (permissão ou autorização) deste diretor. Este ato será apenas uma mera destinação atribuída pelo diretor do IML.

Ao se integrar ao patrimônio de objetos de estudo da universidade, ele se descaracteriza como mero cadáver, passando a ter a natureza de um bem científico e possuindo, a partir de então, proprietário, o que já pressupõe uma valoração, e com esta natureza já será passível de desapropriação.

Desta forma, após ser encaminhado a uma universidade, para fins científicos, passará a integrar o patrimônio desta instituição, receberá uma valoração econômica e poderá ser desapropriado. O seu proprietário, que será a instituição científica, será o credor da indenização que corresponder à sua indenização. Ressalte-se que a saída do cadáver do IML para a instituição científica não poderá ser caracterizada como desapropriação, já que até então ele não possuía valoração econômica.

Conclusivo, pois, que o cadáver poderá ser desapropriado quando estiver incorporado ao patrimônio de uma instituição científica, que o adquiriu tão somente para fins científico.

 

José Maria Pinheiro Madeira

Procurador do Legislativo (apos.) – Mestre em Direito do Estado – Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais

Soraia Rocha Brizola

Bacharel em Direito – Psicóloga



[1] Este também tem sido o entendimento de nossos Tribunais, senão vejamos:

Desapropriacao. – avaliacao. – criterio. Metodo comparativo. – laudos do perito e do assistente tecnico do autor. Superioridade do primeiro. – honorarios de advogado. – criterio para sua fixacao. Inaplicabilidade do cpc-20. – reducao. – honorarios de assistente tecnico. Criterio para sua fixacao. – honorarios de perito. Criterio para sua fixacao. – imovel. Area destinada a implantacao do polo petroquimico. – indenizacao. – criterio para sua fixacao. – juros compensatorios. – criterio para sua fixacao. Inaplicabilidade da sumula-tfr-74. – fluencia. – taxa. – juros de mora. Fluencia. Ementa: desapropriação. Ações de desapropriacoes para instalacao do iii polo petroquimico. Valor da indenizacao. Honorarios de advogado. Juros de mora. Honorarios do perito e seus assistentes. (apelação cível nº 585045701, terceira câmara cível, tribunal de justiça do RS, Rel: Luiz Melíbio Uiracaba Machado).

1-       Indenizacao. 2- legitimacao passiva. Uniao federal. 3- correcao monetaria. Deposito bancario. 4- desapropriação. Ações.

Ementa: ação indenizatória. Conversão de depósitos bancários em ações do antigo banco sul brasileiro. Lesão patrimonial decorrente de não-correção dos valores depositados pelos correntistas. Ilegitimidade passiva do banco santander. Questão já pacificada no âmbito da justiça federal. É da união federal a legitimidade passiva nas ações que visam à reposição da correção monetária suprimida quando da desapropriação das ações do antigo banco sul brasileiro. Apelo Improvido. (Apelação Cível Nº 70004978201, Vigésima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Conrado de Souza Júnior)

[2]– “Embora a hipótese não seja usual, podem ocorrer, de fato, situações excepcionalíssimas que reclamem a desapropriação do cadáver, como, por exemplo, para pesquisa científica e proteção da sociedade.” CARVALHO FILHO, JOSÉ DOS SANTOS . Manual de Direito Administrativo. 14 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, p. 653

[3] Op. Cit., p. 60.

[4]São suas as palavras que se seguem, se coadunando com a maioria dos juristas:

“O respeito devido aos mortos é fato que se verifica em todos os povos e em todos os tempos. Atribuir valor pecuniário ao cadáver é, ao nosso ver, reduzir o ser humano, depois de morto, à condição de simples coisa, situação incompatível com os princípios da moral cristã, os quais prevalecem nas sociedades do mundo ocidental a que pertencemos. Por essas razões, repetimos, o cadáver se nos afigura insuscetível de apreciação econômica, sendo, portanto, inexpropriável”.

Como citar e referenciar este artigo:
MADEIRA, José Maria Pinheiro; BRIZOLA, Soraia Rocha. Desapropriação ou não do cadáver. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2019. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/desapropriacao-ou-nao-do-cadaver/ Acesso em: 18 abr. 2024