Direito Penal

Tráfico de pessoas e livramento condicional

A Lei 13.344/16, por seu artigo 12, deu nova redação ao artigo 83, inciso V, CP para incluir o crime de “Tráfico de Pessoas” dentre aqueles que exigem maior lapso temporal para concessão de livramento condicional, juntamente com os crimes hediondos, a prática de tortura, o tráfico de drogas e o terrorismo.

Assim sendo, o crime agora previsto no artigo 149 – A, CP, também por força da Lei 13.344/16, passa a ter o mesmo tratamento dado aos crimes hediondos e equiparados para fins de livramento condicional.

Diversamente do que ocorre com as demais infrações penais, não servirá ao condenado por Tráfico de Pessoas cumprir mais de um terço da pena, se não reincidente em crime doloso, ou mais da metade se reincidente em crime doloso, para obter o benefício. O praticante de Tráfico de Pessoas terá de cumprir mais de dois terços e, obviamente, satisfazer os demais requisitos do artigo 83, CP para fazer jus ao livramento condicional.

Nas palavra de CuelloCalón, o livramento condicional  se constitui em

“um período de transição entre a prisão e a vida em liberdade, período intermediário, absolutamente imprescindível para que o condenado se habitue às condições da vida externa, aumente sua capacidade de resistência aos atrativos e convites perigosos e se reincorpore de maneira estável e definitiva na comunidade” (tradução livre).  [1]

Importa salientar que há quem afirme não ser o livramento condicional um “direito público subjetivo do condenado”, mas uma “medida penal de natureza restritiva de liberdade, de cunho repressivo e preventivo”, não constituindo, portanto, um “benefício”. [2]

Entende-se que esse posicionamento é absolutamente equivocado. Satisfeitos os requisitos legais, o detento fará jus ao livramento que, sem dúvida alguma, é um benefício, pois enseja grande abrandamento no cumprimento da reprimenda inicial. Além disso, havendo a presença de todos os requisitos legais e sendo então o livramento exigível pelo indivíduo em face do Estado, trata-se de um “direito público subjetivo”. Pensar de outra maneira, seria conceder ao Estado – Juiz um “poder” puro e não o poder possível em um Estado Democrático de Direito, que se configura sempre em um “poder – dever”.

Neste passo, há que acompanhar as lições de Mirabete e Fabbrini, os quais explicam que “o livramento condicional é um direito do sentenciado; preenchidos os seus pressupostos deve ser concedido pelo juiz”. [3]

Assim também de Delmanto: [4]

“Livramento condicional é a antecipação provisória da liberdade, concedida, sob certas condições, ao condenado que está cumprindo pena privativa de liberdade. Como há condições impostas, ‘é uma forma de sofrimento da pena de reclusão ou detenção em meio livre’. (…), o livramento condicional não é favor, mas direito subjetivo do sentenciado, desde que preenchidos os requisitos que a lei fixa para a concessão”. [5]

Fato é que, a partir da Lei 13.344/16, o condenado por Tráfico de Pessoas, recebe o tratamento reservado ao chamado “livramento condicional extraordinário”, que é o previsto no artigo 83, V, CP, com maior exigência de lapso temporal para obtenção, ao reverso dos chamados “livramento condicional ordinário (artigo 83, I, CP) e especial (artigo 83, II, CP). [6]

Conforme leciona sucintamente Greco, o procedimento para o pedido do benefício é o seguinte:

“O pedido de livramento condicional deverá ser dirigido ao juiz da execução, que, depois de ouvidos o Ministério Público e o Conselho Penitenciário, deverá concedê-lo, se presentes os requisitos do art. 83, incisos e parágrafo único, do Código Penal, pois trata-se de direito subjetivo do condenado e não uma faculdade do julgador, como induz a redação contida no caput do art. 83 do estatuto repressivo”. [7]

Observe-se ainda que não bastará àquele que cometa Tráfico de Pessoas cumprir mais de dois terços da pena e satisfazer os demais requisitos do artigo 83, CP. No próprio inciso V do mesmo dispositivo, exige-se ainda que não seja o indivíduo “reincidente específico em crimes dessa natureza”. Isso não quer dizer que o sujeito não poderá ser reincidente. Ele o poderá, mas não poderá ser reincidente em crime da mesma natureza. Poderá, então, por exemplo, obter o livramento condicional extraordinário um indivíduo que tenha condenação anterior transitada em julgado por homicídio simples, estelionato, roubo etc.

Há, porém, uma discussão na doutrina quanto a qual interpretação mais correta a ser dada à expressão “reincidente específico em crimes dessa natureza”. Na lição de Gonçalves:

“Existem duas orientações a respeito do significado da reincidência específica. Uma corrente, denominada restritiva,entende que ela só está presente quando o agente, após  condenado por um determinado delito hediondo ou equiparado comete novamente a mesma espécie de crime. Ex.: condenado em definitivo por tráfico, é novamente condenado pelo comércio de entorpecente. A outra corrente, chamada ampliativa, diz que há reincidência específica quando o agente, após ser condenado por um dos crimes tratados na lei, comete outro crime hediondo ou equiparado, qualquer que seja ele. Ex.: uma pessoa condenada por latrocínio comete tráfico de entorpecentes. Esta é a orientação correta porque a lei veda o livramento quando o sujeito é  reincidente específico em crime dessa natureza, ou seja, quando, após condenado por qualquer crime hediondo ou assemelhado, pratica qualquer outro desses delitos”. [8]

Por seu turno, Greco apresenta pensamento intermédio. Para o autor a “reincidência específica” se dará quando o indivíduo tiver uma condenação não necessariamente pelo “mesmo” crime hediondo ou equiparado, mas por um crime que tutele o mesmo bem jurídico. Então, por exemplo, se o indivíduo comete um estupro e depois um estupro de vulnerável, não faz jus ao benefício. Também não o faz se comete um latrocínio e depois uma extorsão qualificada pela morte. No entanto, se comete um estupro e depois uma extorsão mediante sequestro, isso não impediria o livramento, pois os bens jurídicos divergem (dignidade sexual x patrimônio). [9]

Contudo, a corrente que tem prevalecido é a ampliativa, com o que se concorda, tendo em vista a redação dada ao dispositivo.

Considerando o exposto, também quanto ao crime de Tráfico de Pessoas, não se poderá conceder o livramento condicional a todo aquele que conte com condenação transitada em julgado anterior, seja pelo próprio crime de Tráfico de Pessoas, seja por qualquer outro crime hediondo ou equiparado. Considerando a redação do artigo 83, V, CP, que impede o benefício em caso de “reincidência em crimes da mesma natureza”, entende-se que seriam os crimes ali elencados e não necessariamente o mesmo crime em ambas as ocasiões. Há que notar que o crime de Tráfico de Pessoas não foi incluído no elenco dos crimes hediondos e nem equiparado a estes pela Lei 13.344/16. Ocorreu apenas sua inclusão na regra mais exigente para o livramento condicional. Essa alteração parcial, não incluindo o Tráfico de Pessoas na Lei dos Crimes Hediondos impede a conclusão de que todo o tratamento da Lei 8072/90 seja aplicado ao Tráfico de Pessoas. Ademais, esse tratamento mais gravoso quanto ao livramento condicional não pode retroagir a casos anteriores, pois que se trata de “novatio legis in pejus”.

Essa opção do legislador de não considerar o Tráfico de Pessoas como crime hediondo ou ao menos equiparado, revela a total falta de critério para a eleição desses ilícitos que merecem, segundo a Constituição Federal (artigo 5º., XLIII), um tratamento penal, processual penal e de execução penal mais gravoso. Não há muito sentido em incluir o Tráfico de Pessoas no inciso V do artigo 83, CP, ao lado dos crimes hediondos e não considerá-lo hediondo. Menos sentido ainda há em considerar hedionda a adulteração de um cosmético (artigo 1º., VII – B da Lei 8072/90 c/c artigo 273, § 1º. A, CP) e não considerar hediondo o Tráfico de Pessoas. Mas, procurar coerência na legislação penal brasileira e, especialmente, na Lei 8072/90, é uma missão deveras ingrata. Atualmente, há que criar um novo princípio para o Direito Criminal Brasileiro, diferenciado da proporcionalidade e da razoabilidade. Seria o “Princípio da Sanidade” (mental) a orientar o nosso legislador e também nossos Tribunais.

Além disso, há que ressaltar que há previsão do Tráfico de Pessoas Privilegiado, à semelhança do que ocorre com o Tráfico de Drogas (vide artigo 33, § 4º., da Lei 11.343/06 e artigo 149 – A, § 2º., CP). É estabelecida uma redução de pena de um a dois terços se o agente é tecnicamente primário e não integra organização criminosa. Novamente a proporcionalidade é violada. Isso porque aquele que comercia “coisas” (drogas ilícitas) recebe o benefício incidindo sobre uma pena de reclusão, de 5 a 15 anos, enquanto aquele que comercia “pessoas”, recebe o benefício que incide sobre uma pena bem menor de reclusão, de 4 a 8 anos e multa.

Ademais, havendo o Tráfico de Pessoas Privilegiado, similarmente ao queacontece com o Tráfico de Drogas e ante a decisão do Pleno do STF no HC 118.533, afirmando que o Tráfico de Drogas Privilegiado não é crime hediondo, cabe concluir, em um raciocínio minimamente lógico e coerente, que o alcance da norma do artigo 83, V, CP, deve ser adstrito somente ao Tráfico de Pessoas não privilegiado. O Tráfico de Pessoas Privilegiado, nos mesmos moldes do Tráfico de Drogas Privilegiado não pode receber o tratamento do regime extraordinário para obtenção do livramento condicional. Haveria, nesse caso, nova violação ao Princípio da Proporcionalidade na aplicação da lei em concreto. Essa conclusão é inafastável, vez que se no Tráfico de Drogas, que em sua forma não privilegiada, é equiparado a hediondo, a hediondez é rechaçada pelo reconhecimento do privilégio e, naturalmente, não se aplica o regime mais rigoroso do artigo 83, V, CP. Com mais correção, no Tráfico de Pessoas, que na orígem já não é hediondo ou equiparado, torna-se inaplicável à forma privilegiada um tratamento semelhante àquele reservado aos crimes hediondos e equiparados. Dessa forma, o Tráfico de Pessoas privilegiado, fica atrelado aos regimes ordinário e especial do livramento condicional, bastando, respectivamente, o cumprimento de mais de um terço da pena para não reincidentes em crimes dolosos e o cumprimento de mais da metade da pena para reincidentes em crimes dolosos, sem aplicação do regime extraordinário em que se exige a satisfação de mais de dois terços da reprimenda.

REFERÊNCIAS

CUELLO CALÓN, E. La Moderna Penologia. Barcelona: Bosch, 1958.

DELMANTO, Celso, “et al.” Código Penal Comentado. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

GONÇALVES, Vitor Eduardo Rios. Crimes Hediondos, Tóxicos, Terrorismo, Tortura. São Paulo: Saraiva, 2001.

GRECO, Rogério. Leis Penais Especiais Comentadas – Crimes Hediondos e Tortura. Niterói: Impetus, 2016. 

JESUS, Damásio. Direito Penal. Volume 1. 36ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume I. 31ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

REALE JÚNIOR, Miguel, “et al.”. Penas e Medidas de Segurança no novo Código. Rio de Janeiro: Forense, 1985.

Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia, mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.



[1] CUELLO CALÓN, E. La Moderna Penologia. Barcelona: Bosch, 1958, p. 537.

[2] JESUS, Damásio. Direito Penal. Volume 1. 36ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 673.

[3] MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume I. 31ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 326.

[4] DELMANTO, Celso, “et al.” Código Penal Comentado. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 342.

[5] REALE JÚNIOR, Miguel, “et al.”. Penas e Medidas de Segurança no novo Código. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 226.

[6] DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 590. No livramento ordinário, se trata do condenado não reincidente em crime doloso, que precisa cumprir mais de um terço da pena para sua obtenção. Já no especial trata-se do condenado reincidente em crime doloso, que precisa cumprir mais da metade da pena.

[7] GRECO, Rogério. Leis Penais Especiais Comentadas – Crimes Hediondos e Tortura. Niterói: Impetus, 2016, p. 129.  Note-se que se trata de mais um autor a reconhecer o caráter de direito público subjetivo do condenado ao livramento condicional. Esse é o posicionamento hoje dominante na doutrina e na jurisprudência, em consonância com as regras e princípios que conformam um Estado Constitucional de Direito.

[8] GONÇALVES, Vitor Eduardo Rios. Crimes Hediondos, Tóxicos, Terrorismo, Tortura. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 17 – 18.

[9] GRECO, Rogério. Op. Cit., p. 136.

Como citar e referenciar este artigo:
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Tráfico de pessoas e livramento condicional. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2017. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/trafico-de-pessoas-e-livramento-condicional/ Acesso em: 28 mar. 2024