Direito Penal

A desmistificação do caráter da pena: A ineficácia do Direito Penal como fator de contenção da criminalidade

A desmistificação do caráter da pena: A ineficácia do Direito Penal como fator de contenção da criminalidade[1]

1-INTRODUÇÃO:

A questão da violência e criminalidade assume posição destacada entre os temas em discussão na sociedade, seja no âmbito acadêmico das ciências sociais, seja no temário para discursos políticos e conversações populares.

Existe um consenso quanto à necessidade de conter-se a “escalada” da criminalidade e indicam-se os mais variados caminhos para a consecução desse objetivo. A tendência natural é a eleição do Direito Penal com seu aparato repressivo-punitivo como via se não única, preponderante, no chamado “combate” à violência. No entanto, conforme se procurará demonstrar no decorrer do presente trabalho, o Direito Penal fracassa extraordinariamente neste mister e mais enfaticamente ainda na suposta função recuperadora ou ressocializadora, enfocando especialmente as penas privativas de liberdade como expressão, por excelência, da repressão jurídico-penal .

Neste sentido um enfoque histórico das origens da pena privativa de liberdade, vem a demonstrar que ela nem sempre existiu com esse caráter, sendo inicialmente tão somente um meio de reter o condenado até a execução da pena imposta. Essas penas eram muito mais graves e violentas, atingindo a própria integridade corporal e a vida [2]. Portanto, verifica-se que do terror nasceu a necessidade de procurar justificativas para a pena. Estas justificativas rumaram para um caminho natural de dar à pena uma finalidade de evitar a prática de crimes e, ainda buscando uma face ainda mais humanitária, veio o mito da recuperação do criminoso, da pena como tratamento ou terapia.

Ocorre que o Direito Penal ao longo dos tempos tem demonstrado a inverdade destes enunciados e na atualidade desvela sua crise, após ser usado para os mais diversos fins sob o manto de sua função protetora da sociedade.[3]

Na realidade, o Direito penal jamais cumpriu a sua tão decantada função de conter a prática de crimes. Isso porque, embora o crime seja sempre resultado de uma construção legal, na sua gênese e posteriormente no seu cometimento a despeito da ameaça de punição, há inquestionáveis elementos extrajurídicos que vão desde variáveis políticas, sociais, econômicas, etc., até situações fáticas imprevisíveis e incontroláveis, como sói acontecer nos chamados crimes passionais. Pode-se dizer, parodiando o dito popular que “cada sociedade tem os criminosos que merece”.

O Direito Penal é neste quadro apenas um dos agentes, funcionando como um imprescindível parâmetro de condutas, um indicador de princípios, assemelhado à concepção Kantiana que vê a pena como um “símbolo de reprovação”.[4]

Assim sendo, não se deve confundir o caráter salutar e funcional do controle da conduta humana com o excesso de fiscalização e monitoramento, invadindo liberdades que não prejudicam a harmonia social.

Dentre os extremos com que convivemos nos dias atuais, ora tendendo à teorização de um chamado “abolicionismo” penal, ora a uma exacerbação do acervo punitivo, com um direito penal “simbólico”, considerado a panacéia para todos os males, procurar-se-á uma visão equilibrada da questão, na qual os horizontes sejam abertos a outros campos de solução de conflitos, reservando ao Direito Penal uma área específica onde funcione como “ultima ratio” . Vale dizer, pretende-se expor a realidade do caráter da pena, revelando sua derrocada no sentido pedagógico, mas conservando sua utilidade/funcionalidade dentro de certos limites.

2- BREVE HISTÓRICO:

Na antigüidade foi desconhecida a privação da liberdade como sanção penal. O encarceramento sempre existiu, mas seus objetivos eram apenas como custódia dos réus para futura aplicação de penas que variavam nesse período basicamente entre a pena de morte, as penas corporais e as infamantes.

Durante a idade média a pena privativa de liberdade também não aparece, permanecendo apenas sua finalidade custodial para aplicação das mais terríveis torturas e mutilações. A pena de prisão apenas surge timidamente para punições de pequena monta, vislumbrando-se no Direito Canônico a origem da pena celular como elemento reformador do infrator. Aliás as denominações “cela”, “penitenciário” e “penitenciária” são oriundas do Direito Canônico.

Somente na idade moderna, na segunda metade do século XVII é que iniciou-se um movimento de grande importância para o desenvolvimento das penas privativas de liberdade na Europa, com a criação  de prisões organizadas para correção dos apenados.

Cabe, porém a observação de que a evolução da pena não se deu de maneira homogênea e uniforme, entrecortando-se períodos históricos e regimes penais. A divisão com destaque a períodos da história tem meramente função didática e organizacional.

Tal evolução não foi diferente no Brasil. Há relatos de um Direito Penal Indígena com informações bastante imprecisas, mas também apontando para a preponderância das penas corporais e a privação da liberdade apenas como custódia.[5] Já no período colonial, sob a égide das Ordenações Afonsinas, Manoelinas e posteriormente Filipinas, imperava um regime de terror com penas corporais, de morte e infamantes.

Somente durante o Império é que surgiu a preocupação com a dignidade da pessoa humana, à luz da Constituição de 1824. Aí então destaca-se a pena de prisão não só como fonte de proteção e castigo, mas também como meio de correção do infrator. Havia ainda , porém, penas de morte, degredo, banimento, etc.

Com o código de 1890, no período republicano é que a pena privativa de liberdade em suas diversas modalidades, vem a monopolizar o cenário punitivo brasileiro.

Em 1940 foi promulgado o novo Código Penal, onde a reclusão e a detenção são as penas privativas de liberdade previstas, reservada a prisão simples para as contravenções penais, complementando o elenco das medidas principais, a pena de multa.

A prisão exsurge como o “centro de gravidade dos esquemas político-criminais”, até a atualidade, quando inicia-se uma ligeira alteração, tendendo-se ao destaque das penas pecuniárias e restritivas de direitos. O ECA ( Lei  8069/90 ) prevê a prestação de serviços à comunidade como “medida sócio-educativa”autônoma ( art. 117 ) e ainda mais contundente é a novel Lei 9099/95 que privilegia claramente as penas alternativas com caráter descarcerizador e  até despenalizador, apontando para um futuro de reformulações gerais dos conceitos e idéias no campo do Direito Penal.

Saliente-se porém que passa-se por um momento paradoxal neste sentido, pois que a legislação ao mesmo tempo que tende às reformulações supra mencionadas, mantém uma postura em outros diplomas legais que dá amplo prestígio à exasperação da privação da liberdade (v.g. Leis 8072.90,  9034/95,9455/97, 9503/97 ( CTB) e 96l3/98).

3- PENA DE PRISÃO: INCOMPATIBILIDADE ENTRE OBJETIVOS E NATUREZA

A pena de prisão surge concomitantemente a uma volta de olhos à figura do criminoso e não somente ao fato do crime. Com isso nasce até mesmo no leigo um conceito de tríplice finalidade da pena, pois “ao menos no plano racional, o preso é colocado na penitenciária para ser punido, intimidado e, principalmente, reformado”.[6]

Talvez cause espécie a menção na atualidade de “punição retributiva” como um dos objetivos da pena. Entretanto, há que se desvelar o fato de que essa característica jamais deixou de estar presente em qualquer tipo de punição por mais que se pretenda encobrir sua existência ou sublimar a apenação legal com pseudo-finalidades, muitas vezes inatingíveis.

Com uma visão realista , poderemos demonstrar a funcionalidade e necessidade do Direito Penal e especificamente da pena de prisão, mas ao mesmo tempo indicaremos que eles devem ser analisados e aplicados tendo em conta suas verdadeiras e exeqüíveis funções, de modo a não permitir que construções irreais possam autorizar abusos ou, a extremada impressão da absoluta inutilidade de sua existência. Certamente, neste campo, a abordagem da realidade crua poderá causar impacto, mas este é o único caminho fértil, não obstante árido como já prevenia Maquiavel: “Todavia, como é meu intento escrever coisa útil para os que se interessarem, pareceu-me mais conveniente procurar a verdade pelo efeito das coisas, do que pelo que delas se possa imaginar.”[7]

Desde o seu nascedouro a prisão é contraditória com e mesmo entre seus objetivos. O fim sublime da regeneração do criminoso está sempre vinculado à estigmatização, ao deslocamento da vida social normal, sempre vedando reações e raciocínios de um homem livre.

A retribuição também é ilusória porquanto jamais se conseguirá o equilíbrio entre o mal causado e o infligido, nem mesmo apelando para a chamada Lei de Talião. No entanto, como já exposto , a retribuição continua arraigada pela natureza humana à idéia de pena, prevalecendo no cidadão comum a concepção de que o detento não pode ter uma vida melhor ou igual em conforto ou comodidade que a daqueles libertos em sua mesma condição social.[8]

Essa avidez de retribuição, pela sua natureza, impossibilita a recuperação nas palavras de Bernard Shaw[9]: “Para punir um homem retributivamente é preciso injuriá-lo. Para reformá-lo é preciso melhorá-lo. E os homens não são melhoráveis através de injúrias.”

Ao mesmo tempo em que se pretende demonstrar ao preso que sua liberdade é a paga pelo mal perpetrado, pretende-se obter sua adaptação à vida carcerária, objetivando sua readaptação à vida livre. Logicamente é paradoxal esta posição e pouco provável que aquele adaptado à vida prisional esteja realmente reformulado e recuperado para a liberdade. Na verdade a reação natural, inerente ao instinto de preservação é que o detento, especialmente de longa pena, a partir do encarceramento inicial, tenha por objetivo principal a evasão e não a regeneração.[10]

As convivências carcerária e livre são conceitos antinômicos . “Ajustar alguém a controles institucionais fornece mínima segurança de que tal ajustamento permanecerá existindo, depois que os controles forem removidos”[11], mesmo porque o mundo da prisão é completamente diverso e até em certos pontos antagônico, daquele existente extramuros. No dizer de Thompson, “parece, pois, que treinar homens para a vida livre, submetendo-os a condições de cativeiro, afigura-se absurdo como alguém se preparar para uma corrida, ficando na cama por semanas.”[12]

Zaffaroni[13] se refere à cadeia como uma “máquina de deteriorar”. Afirma que “a prisão ou cadeia é uma instituição que se comporta como uma verdadeira máquina deteriorante: gera uma patologia cuja principal característica é a regressão, (…). O preso ou prisioneiro é levado a condições de vida que nada têm a ver com as de um adulto: é privado de tudo que um adulto faz ou deve fazer usualmente em condições e limitações que um adulto desconhece.” E continua: “Por outro lado, o preso é ferido na sua auto-estima de todas as formas imagináveis, pela perda da privacidade, revistas degradantes, etc. A isso some-se as condições deficientes de quase todas as prisões ( superlotação, alimentação ruim, falta de higiene ).”

Essa nefasta conjuntura leva ao fenômeno denominado “prisionização” ou “prisionalização”, que mergulha a pessoa numa verdadeira “cultura carcerária”.

Em interessante trabalho, Carlos Alberto Marchi de Queiroz[14] se refere à tendência carcerária em imitar, desvirtuando, dando uma feição peculiar , a conformação social regular, mencionando inclusive a existência de um “Tribunal da Morte” na Casa de Detenção de São Paulo, presidido na época por um detento alcunhado “Formigão”.

Na esteira do estudioso português Boaventura de Souza Santos [15], podemos detectar um ordenamento jurídico informal a despeito das normas oficiais, sejam as derivadas das leis, sejam as regulamentares afetas diretamente aos presidiários em seu dia a dia.[16]

Dostoiévski[17], cuja experiência pessoal constitui, pela riqueza da sensibilidade do autor, verdadeiro trabalho de campo, fala sobre a notória diferenciação  entre as relações sociais do mundo da prisão e do mundo livre: “Tive ocasião de reparar que, entre os presos, não havia amizades; não falo da amizade geral; esta existia e forte; falo da amizade particular; que podia unir dois presos. Esta, quase não existia entre nós e isto é digno de nota, pois não acontece o mesmo em liberdade.” ( grifo nosso ) .

O egresso é, na verdade, adaptado ao cárcere, pois todo o esforço reformador é baldado pela tentativa de recuperar pessoas de temperamentos diversos por meio de uma “disciplina uniforme”[18], fato este já previsto por Beccaria[19]: É por uma falsa idéia de utilidade que se procura submeter uma multidão de seres sensíveis à singularidade simétrica que pode receber uma matéria bruta e inanimada.”

Mas, não é só da análise criminológica que se poderá concluir o que até agora tem sido demonstrado. A psicologia e a sociologia têm nos brindado com numerosas demonstrações do equívoco (proposital ou não) da teoria da reforma por intermédio da segregação.

Neste sentido destacamos a ilustração de Maria Lúcia Vieira Violante[20] que em trabalho de campo com os menores infratores então recolhidos à Febem, aborda a difícil encruzilhada em que se encontra o infrator, entre as opções de manter-se no estereótipo do “menor infrator”, obedecendo suas regras intrínsecas e extrínsecas, para uma boa reputação e convivência na unidade , ou adaptar-se aos modelos que a sociedade pretende impor-lhe por meio da educação e orientação ali oferecidas. A reeducação neste quadro conflitivo afigura-se obra utópica, de modo que julgamos oportuna sua menção, embora não tenhamos a pretensão de tratar aprofundadamente a questão do menor, porque vale salientar que se a reforma do menor se mostra tão trabalhosa, imagine-se o que dizer de um detento de faixa etária superior e possivelmente já mais recrudescido no crime.

Toda essa problemática é constatável até em maior grau no criminoso maior em cativeiro. Marginalizado pela sociedade, certamente não estará sozinho à margem e se sentirá aceito no grupo de iguais onde é enclausurado, afigurando-se-lhe  difícil optar pelo abandono dessa cultura que o aceitou a despeito da recusa social, para integrar-se no modelo que a sociedade lhe impõe.

A autora supra menciona revela o caso de um menor apelidado “Pilantra” que sofria represálias dos demais por demonstrar-se adaptado aos padrões dos orientadores, de modo que era tido como informante. Isso é também verificável analogamente nas prisões de maiores, onde determinados detentos de bom comportamento são utilizados nos trabalhos internos, sob denominação vulgar de “presos faxina”, servindo não raras vezes como delatores e sentindo a mesma repulsa que a descrita quanto ao menor acima na Febem. Sem mencionar a contradição e hipocrisia reinantes nesses detentos, pois se procura, em tese, infundir-lhes regeneração moral e ao mesmo tempo se lhes fomenta a vileza da delação. Podemos notar neles mais claramente o duro conflito entre a adaptação ao cárcere e sua adaptação aos padrões impostos pela sociedade, onde grupos distintos pressionam cruelmente ambos os lados, ficando o detento entre a cruz e a espada. Não raras vezes, pudemos observar o repúdio desses presos perante a comunidade prisional e seu traumático retorno ao seu seio quando eventualmente destituídos de suas regalias por alguma falta disciplinar. Saliente-se que ordinariamente esse tipo de preso é mantido separado dos demais em celas normalmente denominadas pelos encarcerados em seu vocabulário peculiar de “seguro”.

Eis que a sociedade se esquece que o homem, esteja ele em qualquer situação, requer dignidade e a busca pelo caminho mais rápido ao seu alcance. Se é oprimido pelo sistema, certamente procurará e encontrará sua dignidade, seu “status” em alguma subcultura. “De fato, onde há poder, há resistência, como diz Foucault, e sempre que se impõem mundos, se criam submundos, fala Goffman.”[21]

Vale salientar que além do dilema exposto, demonstra-se a pseudocientificidade  das avaliações sociais, psicológicas e psiquiátricas a que são submetidos os reclusos e a precariedade das “oportunidades” que lhes são apresentadas, pois que tudo estará sempre envolto em uma situação contraditória, artificial e hipócrita. Nesse diapasão encontramos elucidativo artigo da lavra de Alvino Augusto de Sá[22], onde delineia as limitações dos exames criminológicos  e a necessidade de levar em consideração no bojo dos mesmos as “conseqüências negativas da experiência carcerária”.

Finalmente, chegamos à prisionalização como resultado de todo esse contexto, definida como “a forma como a cultura carcerária é absorvida pelos internos”[23], finda por ser ela um processo criminológico diametralmente oposto ao que se pretende alcançar com a ressocialização .

Também os efeitos psicológicos da prisão são dignos de nota, uma vez que são abundantes as “psicoses carcerárias” e o efeito negativo no auto conceito do recluso. Além disso, o “problema sexual nas prisões” não deixa oculto que é impossível pensar em recuperação em um ambiente que “deforma e desnatura um dos instintos fundamentais do homem”[24].

Encerramos esta etapa com a segurança de que o fim ressocializador da pena não é assentado na meditação sobre a realidade da natureza humana e deve ser rechaçado por quem quer que tenha em mente procurar a verdade e a real necessidade do Sistema Penal. Cabem aqui as palavras de Beccaria[25]: “A moral política não pode proporcionar à sociedade nenhuma vantagem durável, se não for fundada sobre sentimentos indeléveis do coração do homem.” E em outra passagem[26]: “Não é só nas belas artes que é preciso seguir fielmente a natureza: as instituições políticas, ao menos aquelas que têm um caráter de sabedoria e elementos de duração, se fundam na natureza; e a verdadeira política não é outra coisa senão a arte de dirigir para o mesmo fim de utilidade os sentimentos imutáveis do homem.”

4- O USO PERVERSO DO SISTEMA PENAL

No dizer de Tobias Barreto[27], “o conceito de pena não é um conceito jurídico, mas político”. Sua caracterização, como ademais a de todo o Sistema Penal, é a de um “fato de poder”[28], sendo altamente previsível a deturpação de sua aplicabilidade e finalidades com o conseqüente desvio de sua ação para objetivos outros que não a defesa dos valores sociais imprescindíveis.

Neste quadro, afigura-se claro que a “marginalidade”, como produto necessário ou inerente ao Capitalismo, é criada pelo próprio sistema como um descarte estrutural, revelando a artificialidade dos discursos de ressocialização, pois na verdade ao sistema não interessa primordialmente a reabilitação dos infratores e sim a sua exclusão como uma espécie de “lixo ou sobra industrial que não sabe onde depositar”, para usar de uma metáfora aproximada. Verifica-se uma relação entre os processos econômicos que o mercado de trabalho apresenta e a organização penitenciária adotada, partindo-se não para uma reforma moral do apenado, mas para uma frustrada tentativa de moldá-lo de acordo com o modelo ideal subserviente à sociedade capitalista.

Mas, não somente no campo econômico se vê a utilização pervertida do Direito Penal. Na área política sua utilização é bastante presente e até bem mais explícita, visando impor regimes, ideologias e combater seus adversários, transformando-os em alvo de repressão penal. Ao analisar a “situação crítica do penalismo latino-americano”[29], Zaffaroni aborda os motivos do descrédito do “discurso jurídico-penal” na América Latina. Indica a “perversão”, o “desvio” das finalidades do Direito Penal do combate ao crime com vistas ao “bem comum”, para um velado controle político voltado para a manutenção de regimes autoritários. Tal situação somente faz gerar efeitos funestos, tendo como principal conseqüência a aversão do povo à Justiça Penal.

Finalmente, cabe mencionar neste tópico a indevida atuação dos sentimentos religiosos na concepção ressocializadora da pena. Este é outro fator que leva a uma postura hipócrita e uma acomodação com referência ao tema, pois que ninguém se importa em pensar sobre a pena se ela visa um benefício ao criminoso em última instância. Salutar o pensamento de Augusto Thompson[30]: “Desconfio que, passados outros séculos, se continuará a atribuir o malogro da reeducação penitenciária a essa mesma causa[31], pois se lhe falta base racional, ela serve para resolver um conflito latente entre o inconsciente coletivo e a ideologia filosófico-religiosa conscientemente esposada: aquele precisando dar vazão a impulsos agressivos, decorrentes de sentimentos de culpa e frustração, esta impondo o princípio de que devemos amar ao próximo como a nós mesmos. Assim, enquanto os primeiros são descarregados através da submissão de um grupo de homens à tortura e às privações cruéis da prisão, alivia-se o descumprimento do último, pela consideração de que aqueles  indivíduos estão na cadeia para o seu próprio benefício, a fim de serem melhorados e salvos; e se isso ainda não foi conseguido, o foi por uma série de circunstâncias meramente eventuais e acidentais que, em breve, serão removidas, à força do trabalho entusiástico que se desenvolve com vistas a tal desiderato.”

Observe-se que nem sempre os fins virtuosos produzem bons frutos, especialmente quando se fundam em maquiar a realidade e fomentar um continuísmo acrítico. Claro que não é missão fácil e livre de atritos com setores influentes, deslindar como Maquiavel “a realidade de fato existente, mas que as pessoas não suportam enxergar”[32]: “E ainda não lhe importe incorrer na fama de ter certos defeitos, defeitos estes sem os quais dificilmente poderia salvar o governo, pois que se se considerar bem tudo, encontrar-se-ão coisas que parecem virtudes e que, se fossem praticadas lhe acarretariam a ruína e outras que poderão parecer vícios e que, sendo seguidas, trazem a segurança e o bem estar do governante.”[33]

CONCLUSÕES E PROPOSTAS

DA IRRECUPERABILIDADE, NA REALIDADE ATUAL:

No momento, não temos escolha senão admitir a irrecuperabilidade do criminoso por obra dos meios que a ciência criminal nos oferece. Hoje, uma profilaxia do crime, constitui-se numa utopia.

Não se pretenda aqui atribuir esse fracasso à falta de recursos materiais para consecução dos fins ressocializadores , pois que esta é uma justificativa inconsistente e causadora de um comodismo improdutivo, como já mencionado linhas volvidas na lição de Augusto Thompson, o qual inclusive em sua obra aponta como exemplo o sistema sueco, abundante em recursos os mais modernos, e mesmo assim apresentando taxas de reincidência na casa dos 70%.[34]

Vamos ainda mais longe, afirmando que não há tratamento, seja por meio do isolamento, seja pela manutenção da convivência social em certos limites, que apresente algum resultado convincente. Mesmo o Sistema Progressivo não demonstra resultados palpáveis, embora possa seduzir no campo meramente lógico-teórico. [35]

Essa situação, longe de determinar a inércia do pesquisador, como se a solução para uma pergunta sem resposta fosse não formulá-la, deve fazer nascer o estudo aprofundado do problema criminal. E este estudo não se pode limitar ao mero espaço das ciências jurídicas, devendo mesclar-se com diversas áreas numa visão multi e interdisciplinar (psicologia, psiquiatria, sociologia, assistência social, economia, política, educação, relações humanas, medicina, pedagogia, etc.).

Em arremate cumpre anotar que mesmo que num ponto futuro se obtenham meios adequados para prevenção do crime e tratamento do infrator, deverão pautar-se sempre por princípios éticos que respeitem a liberdade de consciência e a diversidade. A questão não é nova e em face do desenvolvimento acelerado da engenharia genética[36] torna-se premente e atualíssima. A vitória sobre determinados óbices práticos à reforma do homem, como mencionado por João Bosco da Encarnação[37] pode enlevar os desavisados e conduzir a abusos e concepções abomináveis à semelhança ( agravada pela sutileza ) da teoria da raça pura, que até hoje constitui página vergonhosa da história mundial.

Concluímos que nos moldes atuais qualquer reforma só pode advir de decisão pessoal do próprio recluso, adicionada esta a uma insólita resolução extraordinariamente indelével e hermética aos fatores criminógenos do meio prisional.

DA IMPRESCINDIBILIDADE DO DIREITO PENAL E DA PENA DE PRISÃO:

A conclusão da inutilidade ou reprovabilidade intrínseca do Direito Penal, seria fruto de uma análise com tons maniqueístas, desprezando o caráter funcional e utilitário da pena enquanto instrumento de normalização social. Vemos o problema, não no Direito Penal ou na pena, mas especificamente na idéia que se tem desses objetos e no seu mau uso motivado por interesses outros que não a busca do bem comum. É preciso ter em conta que “o problema gravíssimo da criminalidade não se resolve através do Direito Penal. O crime é fenômeno que deriva de problemas estruturais da sociedade.”[38]

Assim sendo, a atuação em termos de educação, saneamento, assistência social, criação de empregos, etc., revela-se muito mais produtiva na prevenção do crime do que qualquer medida de repressão penal. Já dizia Beccaria[39]: “É melhor prevenir os crimes do que ter de puni-los (…).” E ainda destacando a educação como principal atividade preventiva: “(…) o meio mais seguro, mas ao mesmo tempo mais difícil de tornar os homens menos inclinados a praticar o mal, é aperfeiçoar a educação.”[40]

O Direito Penal não pode, portanto, ser visto como fator de contenção do crime, mas na verdade deve funcionar como um indicador de princípios que norteia o agir humano, demonstrando o repúdio social a determinadas condutas incriminadas. “Kant considerava que o réu deve ser castigado pela única razão de haver delinqüido, sem nenhuma consideração sobre a utilidade da pena para ele ou para os demais integrantes da sociedade.”[41]

Concordamos com o aspecto de uma lógica de princípios contido nessa posição. No entanto, não vemos o Direito Penal sob tamanha esterilidade prática. Durkhein e Foucault[42] apresentam concepções condizentes com nossas conclusões quanto ao Direito Penal, considerando-o um arcabouço de princípios imprescindíveis à manutenção da sociedade. Portanto, não só indica princípios, repudia condutas indesejáveis e deletérias, como assume uma posição “sistêmica”, sendo fator de funcionalidade da vida em sociedade.

Esta é a base do chamado “discurso relegitimante sistêmico”[43], onde o caráter da pena é “meramente utilitário ou instrumental dentro do sistema”.

Essa guinada no entendimento do caráter da pena, segundo concluímos, produzirá uma modificação na atuação dos agentes, especialmente da máquina judiciária, pois que a atuação desta está diretamente ligada ao tipo de teoria que se tem a respeito da pena. A título de exemplo, podemos mencionar que um juiz poderia condenar a uma pena de reclusão um indivíduo que comete pequenos furtos, sob o argumento lógico de que estaria obrando para sua reforma moral. Entretanto, tal pena adquiriria contornos de crueldade e desproporção se fosse analisada sob a ótica da segregação necessária.

Visível, porém, que tudo implica numa mudança radical da visão atual do Sistema Penal e sua construção deve partir do núcleo de formação dos operadores do direito, ou seja, das universidades, dos bancos acadêmicos.

Despidos da venda negra do discurso reformador, podemos reduzir o campo penal à repressão das condutas graves, deixando as demais a cargo de outras áreas do direito (Civil, Administrativa, etc.). Isto, além de reforçar a confiança popular na Justiça Penal, pois que teria maiores condições de abranger os conflitos a si indicados, não deixando a maioria sem resposta como hoje ocorre, teria o efeito de tornar mais efetiva e certa a punição, o que inibiria a esperança do infrator em não ser descoberto, satisfazendo um dos sábios enunciados de Beccaria[44]: “Não é o rigor do suplício que previne os crimes com mais segurança, mas a certeza do castigo,(…).”

É dessa segurança na punição do criminoso que precisamos, sendo ela impossível de descartar numa visão realista da humanidade sem desprezar até mesmo o caráter retributivo da pena, embora irracional, mas inerente à natureza do homem.  Podemos sempre nos valer do pragmatismo de Maquiavel[45] para quem “tanto aquele que recusa o uso da força como quem nela se sustenta cegamente são incapazes de enfrentar as contradições da sociedade.”

Não obstante os inúmeros defeitos e inconveniências atribuídos à pena de prisão, como dissemos antes, a problemática se deve à deturpação de suas funções com estabelecimentos de objetivos irrealizáveis. Ela em si é na realidade uma alternativa imprescindível e a única resposta punitiva viável descoberta até o momento para a segregação e contenção de indivíduos que atentem contra bens jurídicos de relevo. Acrescente-se ainda que o Direito Penal e a prisão têm o condão de sacralizar a punição das condutas, evitando a banalizacão de sua autoria como poderia ocorrer com outros modelos de solução de conflitos.

Malgrado isso, toda a utilidade e necessidade do Direito Penal pode diluir-se em pó a perpetuar-se uma falsa idéia de suas funções, empregando-se-o  com impropriedade para ir contra todo tipo de violência. Advirta-se na esteira de Alberto Silva Franco[46], que “o pampenalismo, isto é, a utilização do Direito Penal como uma espécie de ‘panacéia para todos os males’, quando não traduz uma bastardização deste instrumento de controle social, pode representar uma completa desmoralização decorrente de sua inoperância e ineficácia.”



[1] O presente artigo é um resumo da monografia de mesmo título elaborada pelo autor na conclusão do Curso de pós-graduação “lato sensu”, Direito Penal, um enfoque criminológico, promovido pela Faculdade Salesiana de Direito de Lorena/SP.

[2] Michel FOUCAULT. Vigiar e Punir. p. 25.

[3] Eugêneo Raúl ZAFFARONI. Em busca das penas perdidas.

[4] João Bosco da ENCARNAÇÃO. Que é isto, o Direito?.  p.95.

[5] René Ariel DOTTI. Bases e alternativas para o sistema de penas. p.14.

[6] Augusto THOMPSON, A questão penitenciária. p.5.

[7] Niccoló MACHIAVELLI. O Príncipe. p.90.

[8] Cezar Roberto BITENCOURT. Falência da Pena de Prisão. p.55/56.

[9] Augusto THOMPSON. A questão Penitenciária. p.5.

[10] Carlos Alberto Marchi de QUEIROZ. O Direito de Fugir. p.110.

[11] Augusto THOMPSON. A Questão Penitenciária. p.12.

[12] Ibid. p.12/13.

[13] Eugêneo Raúl ZAFFARONI. Em busca das penas perdidas. p.135.

[14] Carlos Alberto Marchi de QUEIROZ. O Direito de Fugir. p. 100.

[15] Boaventura de Souza SANTOS. Uma cartografia simbólica das representações sociais. Revista Brasileira de Ciências Criminais, 13:253/277.

[16] Explícito neste sentido é também o trabalho do mencionado Carlos Alberto Marchi de Queiroz que traz o que chama de “Um manual de sobrevivência na prisão”, reduzindo a uma espécie de código, artigo por artigo, normas para uma boa convivência no presídio.

[17] Fiodor M. DOSTOIÉVSKI. Memórias da Casa dos Mortos. p.135 e 260.

[18] Julio Pires PORTO-CARRERO. Adaptado ao Cárcere, Apud Roberto LYRA, João Marcello de ARAUJO JR.. Criminologia. p.138/139.

[19] Cesare BECCARIA. Dos Delitos e das Penas. p.118.

[20] Maria Lúcia Vieira VIOLANTE. O Dilema do Decente Malandro.

[21] Maria Lucia Vieira VIOLANTE. O dilema do decente malandro. p.161.

[22] Alvino Augusto de SÁ. A recuperação dos sentenciados e a questão do exame criminológico versus parecer das comissões técnicas de classificação. Revista Brasileira de Ciências Criminais, p.203/217.

[23] Cezar Roberto BITENCOURT. Falência da Pena de Prisão. p.170/175.

[24] Ibid. p.175/183.

[25] Cesare BECCARIA. Dos Delitos e das Penas. p.24.

[26] Ibid. p.77.

[27] Apud Eugêneo Raúl ZAFFARONI. Em busca das penas perdidas. p.203.

[28] Ibid. p.201/204.

[29] Eugêneo Raúl ZAFFARONI. Em busca das penas perdidas. p.11/45.

[30] Augusto THOMPSON. A Questão Penitenciária. p.16.

[31] O autor aborda a “inconsistência de atribuir o fracasso da prisão regeneradora à deficiência dos recursos materiais.”

[32] Maria Lucia de Arruda ARANHA. Maquiavel, a lógica da força. p.82.

[33] Niccolò MACHIAVELLI. O Príncipe. p.91.

[34] Augusto THOMPSON. A Questão Penitenciária. p.109.

[35] Thompson também aborda o tema sob o epígrafe “O tratamento em comunidade”, concluindo por sua ineficácia e vislumbrando na verdade uma camuflagem ideológica para economia de custos, mascarada em benevolência e tolerância.

[36] Antonio BERISTAIN. Bioética Y Nuevos “Deberes” – Derechos Humanos. Revista Brasileira de Ciências Criminais. 13:21/31.

[37] “Por óbvio, não há justiça forçada. O que se consegue, no máximo, é diminuir a injustiça para com a vítima da ação egoísta, mas não tornar o egoísta à força, um altruísta.” In Que é isto, o Direito?, p. 26.

[38] Carlos Alberto Marchi de QUEIROZ. O Direito de Fugir.  p. 25.

[39] Cesare BECCARIA. Dos Delitos e das Penas. p. 125.

[40] Ibid. p. 132.

[41] Cezar Roberto BITENCOURT. Falência da Pena de Prisão. p.106.

[42] Flávia Inês SCHILLING. Sobre homens e crimes: construindo um diálogo tenso entre Marx, Durkhein e Foucault. Revista Brasileira de Ciências Criminais. 13:284/285.

[43] Eugêneo Raúl ZAFFARONI. Em busca das penas perdidas. p. 85/88.

[44] Cesare BECCARIA. Dos Delitos e das Penas. p. 80.

[45] Maria Lucia de Arruda ARANHA. Maquiavel, a lógica da força. p. 48.

[46] Alberto Silva FRANCO. Crimes Hediondos. p. 36/37.

Como citar e referenciar este artigo:
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. A desmistificação do caráter da pena: A ineficácia do Direito Penal como fator de contenção da criminalidade. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2016. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direitopenal-artigos/a-desmistificacao-do-carater-da-pena-a-ineficacia-do-direito-penal-como-fator-de-contencao-da-criminalidade/ Acesso em: 28 mar. 2024