Direito Internacional

A impossível justiça em causa própria

A impossível justiça em causa própria

 

Francisco César Pinheiro Rodrigues*

 

 

Agora, um subtítulo menos genérico: a “Noite dos Cristais”. Comparação com os ataques recentes no Líbano.

 

Árabes e judeus deveriam ler “Kristallnacht: Prelude to Disaster”, agora em versão portuguesa, edição Ediouro. Os primeiros, para entender melhor o sofrimento dos israelistas ao tempo dos nazistas e a legítima necessidade de um “lar” protegido; os segundos para que, assustados com algumas frases árabes descabeladas — “.., varrer Israel do mapa…” —, não assumam o risco de fazer, com os palestinos, aquilo que os nazistas fizeram com eles.

 

Peço licença para retornar a algo que tenho frisado, cansativamente: enquanto não for criada uma justiça internacional efetiva — a que existe hoje é uma entidade de fachada, obedece-a quem quer — o mundo continuará caminhado em terreno minado. Até mesmo não figurativamente, porque ainda há milhões de minas terrestres aguardando a oportunidade de arrancar pernas e vidas de inocentes. Exércitos em fuga, em certas regiões, tinham, ou têm, por norma, deixar “uma lembrança” letal a poucos centímetros da superfície. E o mais grave é que as minas dão preferência a pernas civis, desconhecedoras do perigo. Os combatentes pelo menos tinham ciência do perigo naquela área.

 

Mesmo os Estados mais subdesenvolvidos culturalmente sabem que, instalado um conflito de interesses entre duas pessoas, é perda de tempo exigir que elas entrem num acordo, saindo ambas satisfeitas. Isso ocorre raramente. O usual é uma autoridade “de fora” ser chamada para resolver o conflito, em uma ou mais instâncias, após o que a “coisa julgada” obrigará o “perdedor” — presumivelmente aquele que “não tinha razão” — a acatar a decisão, agrade ou não. A não ser assim, as partes litigantes recorrem à força, uma negação da justiça. A força é útil, sim, mas só após a certeza — aquela possível nos assuntos humanos — fornecida pela justiça. Elementar, não? Imagine-se locadores e locatários esmurrando-se sobre relações de locação; parentes de assassinados ou agredidos baleando parentes de assassinos, e vice versa. E por aí vai.

 

No entanto, é essa a “técnica” — em forma primitiva ou sofisticada — de solução de conflitos na área internacional.

 

O exemplo hoje mais gritante desse primitivismo comportamental está no conflito entre Israel e os palestinos. Não se consegue um acordo. Está mais do que na hora da comunidade internacional impor uma solução — a mais justa, humanamente possível —, delimitando fronteiras e concedendo, se for o caso, compensações econômicas com base na eqüidade. Simplesmente imitando a velha e tradicional técnica de fazer justiça, que dispensa e até mesmo proíbe a participação das partes litigantes na redação da sentença. A redação da sentença é ato do juiz. Se houver erro, a parte pode recorrer, pelo menos uma vez.

 

Diz o jornal de ontem, 18 de novembro, que Israel rejeitou o plano de paz anunciado por europeus, Itália, França e Espanha. Trata-se pouco mais de um cessar-fogo e envio de tropas internacionais à Faixa de Gaza. Os palestinos aceitaram a proposta, mas Israel não a “levou a sério” porque, segundo a imprensa, “não foi consultado previamente sobre ele” (jornal “O Estado de S.Paulo”). Fundamento, “data vênia”, ridículo e suspeito, porque os terceiros que propõem o acordo não precisam consultar antes os destinatários da proposta de paz. Cabe, aos que litigam, examinar a proposta e aceitá-la ou não. Discordando em alguma coisa, cabe à parte propor tal ou qual modificação em seus termos. Pode até rejeitar inteiramente a proposta, mas dizendo o “porque”. Negar-se a examinar os termos do acordo, alegando que não foi consultado antes, causa má-impressão quanto à sinceridade no desejo de paz.

 

Lendo o livro “A Noite de Cristal”, de Martin Gilbert, edições Ediouro, com o subtítulo de “A primeira explosão do ódio nazista contra os judeus”, ficamos sabendo, em detalhe, com dezenas de depoimentos, o que foi o pesadelo injusto que desabou sobre a cabeça dos judeus que ainda permaneciam — vão otimismo… — na Alemanha em 1938.

 

O autor nos relata que em 18 de outubro daquele ano Hitler expulsou da Alemanha mais de doze mil judeus poloneses que viviam legalmente na Alemanha. Tinham que deixar suas casas numa única noite e só podiam levar consigo uma mala por pessoa. Tudo o que haviam adquirido em vários anos de trabalho foi apreendido como botim, tanto pelas autoridades nazistas quanto por vizinhos. Um saque assistido com indiferença pelos policiais.

 

Os doze mil expulsos foram embarcados à força em trens direcionados à Polônia, mas esta só aceitou receber quatro mil. Os judeus restantes foram forçados a ficar na fronteira. Diz o autor que pelo menos sete mil deles ficaram nos “frios pisos de pedra da estação… e nos estábulos das proximidades”, esperando que o governo polonês concordasse em recebê-los” (pág. 19).

 

Um casal expulso, que morava em Hanover há mais de vinte anos, tinha um filho de 17 anos, Herschel Grynszpan, que morava em Paris. Esse casal tinha também uma filha, Berta, que conseguiu enviar ao irmão um cartão postal descrevendo a expulsão e dizendo: “Não temos um vintém. Poderia nos mandar alguma coisa…?”

 

O irmão, Herschel recebeu a mensagem no dia 3 de novembro e no dia seguinte leu, no jornal iídiche de Paris o relato da expulsão, reportando vários casos de loucura e suicídio entre os expulsos. Revoltado, na manhã do dia 6 de novembro comprou uma pistola, carregou-a e na segunda-feita foi à embaixada alemã. Seu plano era matar o embaixador alemão. Alegando que tinha um “documento importante” para entregar, “foi mandado à sala do terceiro secretário, Ernest von Rath”. Indagado pelo secretário que documento era esse, Herschel sacou a pistola e gritou: “Você é um boche nojento e aqui, em nome de 12 mil judeus perseguidos, está o meu documento”. Desferiu cinco tiros, dois acertando o diplomata, mas não o mataram, pelo que depreendi.

 

Esse ato de revolta e desespero do jovem judeu foi aquilo que desejavam os nazistas. Goebbels, inundado de felicidade, deve ter se beliscado para se conscientizar de que não estava sonhando. Uma tentativa providencial, “bendita” — em termo de mídia tendenciosa — de assassinato contra um pacífico diplomata alemão que, trabalhando em Paris, nada tinha a ver, pessoalmente, com a expulsão dos doze mil judeus. Aí os nazistas puseram-se em busca de um ou outro caso isolado de desespero cometidos por judeus e deram a tais achados ampla difusão. Com isso a população alemã foi estimulada para depredar lojas e outros estabelecimentos. Como as depredações e saques começavam com a quebra de vidros surgiu a famosa frase, de triste memória, “Noite de Cristal”. A partir desse acontecimento tornou-se mais fácil, aos nazistas, acelerar e ampliar o programa de extermínio dos judeus, o “Holocausto”.

 

Por que digo tudo isso? Digo para provar que não se pode esperar que grupos humanos inimigos, com ódios consolidados, carregados de ressentimentos — até pessoais, com parentes assassinados —, concordem em tudo. As partes ficam espiritualmente cegas, perdem o sentido de proporção. O sentimento de justiça vai, como se diz, ”para o espaço”. A conhecida “sede de justiça” tem uma estranha característica: só tortura a garganta de quem sofreu a injustiça, não a goela de quem a cometeu.

 

Mais uma prova disso está na conduta recente do governo de Israel, atacando o Líbano, matando mais mil libaneses. Buscavam eliminar agentes do Hezbollah, porque estes, essencialmente, seqüestraram um — apenas um! — soldado israelense. Basta esse paralelo com o ataque do jovem Herschel a um — apenas um! — diplomata alemão para provar que o ser humano, seja de que raça for, é incapaz de ver a justiça com a necessária proporção e abrangência. E no conflito palestino, em especial, suas longas raízes explicam, em grande parte, tragédias ocorridas em solos e “torres gêmeas’ distantes.

 

Que a persistente inércia ou estupidez humana em torno do modo de resolver conflitos internacionais seja sanada com um choque de compreensão, antes que seu fruto degenerado, o terrorismo, assuma novas proporções.

 

(20-11-06)

 

 * Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo. Website do autor: http://www.franciscopinheirorodrigues.com.br

 

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Como citar e referenciar este artigo:
RODRIGUES, Francisco César Pinheiro. A impossível justiça em causa própria. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-internacional/a-impossivel-justica-em-causa-propria/ Acesso em: 28 mar. 2024