Direito Internacional

Devagar com o Hamas

Devagar com o Hamas

 

 

Francisco César Pinheiro Rodrigues*

 

 

Anatole France, um grande escritor francês, Prêmio Nobel de Literatura de 1921, entusiasta leitor de dicionários — ele dizia que, no fundo, tudo está lá… — disse algo que, se fosse seguido, transformaria escritores essencialmente medíocres — pela pobreza genética — em grandes vultos da literatura. Ele dizia: “Acaricie repetidamente a frase e ela acabará sorrindo para você”.

 

Referia-se, claro, ao bom resultado do burilamento da frase escrita. Isso porque nada nasce perfeito, tudo comporta um retoque para melhor. E se isso ocorre na Literatura — a verdadeira, não aquela sob encomenda das empresas de propaganda e marketing, que sondam o mercado e depois dizem ao autor: “fabriquem exatamente esse tipo de produto que a carneirada consome!” — o mesmo ocorre na política. E o “retoque”, na política, é a paciência em ouvir, pensar e modificar projetos, quando necessário.

 

O que tem tudo isso a ver com o Hamas, que ganho a eleição na Palestina graças ao ressentimento da população contra Israel? É que a política tem uma moral toda própria, particular, muitas vezes incompatível com a moral individual. São entidades diferentes, mundos paralelos que deveriam, idealmente — ingenuamente?… —, coincidir em tudo, mas não sendo isso freqüentemente possível. Grandes estadistas, de bom caráter, muitas vezes tiveram que transigir com certas práticas ou tendências que não eram do seu agrado “como pessoa física”. Em assuntos de dinheiro, continuaram honestos, mas em termos de honestidade intelectual…Bem, já não eram os mesmos. Ou transigiam, ou não conquistavam/perdiam o poder. Agiam, na política, de uma modo bem mais tolerante do que o o faziam na vida particular. Suas esposas, donas de casa, por vezes estranhavam “uma certa “elasticidade’ na moral do meu marido, depois que ele entrou na política”.

 

Dizer sempre a verdade é uma norma linda e recomendável nas relações familiares. “Jogo aberto” em tudo, por exemplo, na relação marido-mulher. Assim mesmo, convenhamos, com restrições. Nenhum marido, mesmo santinho e heróico, vai dizer à esposa que despediu a linda secretária porque se apaixonou por ela e não agüentava mais a tentação de transformar a relação trabalhista em outra categoria de relação. O simples confessar que se apaixonou por outra será encarado como um insulto sentimental. E nenhuma esposa terá a coragem de dizer ao marido que se apaixonou por um colega de serviço, mas nunca se tornará infiel. Ele não acreditará. O casamento praticamente acabou, porque a verdade foi dita.

 

Na política, nenhum dirigente reconhecerá, de público, que o partido contrário está fazendo as coisas certas, as únicas possíveis nas circunstâncias. Será massacrado por seus correligionários. É preciso, a todo custo, achar apenas falhas no adversário.

 

O Hamas venceu as eleições porque representava o rancor — em parte justificado — dos palestinos, que foram progressivamente expulsos de suas terras, sem qualquer indenização, pelos judeus. Estes, por sua vez, sofreram séculos de perseguição e queriam um lar próprio. Morar na casa dos outros é sempre uma inquietação, principalmente quanto o dono da casa tem acessos periódicos de loucura homicida contra hóspedes usando solidéu e cachinhos, até mesmo os “gaseificando”.

 

Instalado no poder, o Hamas não poderia, sem causar frustração a quem o elegeu, dar uma súbita “guinada”, acenando com paz duradoura em relação à Israel. Com o tempo, entretanto, e melhor conhecendo as duras realidades do que significa “governar’, provavelmente concluirá — “burilando” sua justificação —, que é melhor engolir um sapo do que morrer sufocado por ele e seus poderosos aliados.

 

E é sufoco o que pretendem os EUA e a União Européia, cortando o auxílio financeiro mensal sem o qual a Autoridade Palestina não conseguirá pagar seu funcionalismo e os gastos necessários ao serviço público. Esse esmagamento financeiro, acentuando a miséria, só acentuará o ódio. Mais sensato seria que EUA e UE continuassem a auxiliar os palestinos, embora insistindo sempre na necessidade dos palestinos reconhecerem o Estado de Israel porque agora já não há alternativa. E se os americanos desviassem parte do dinheiro — agora usado em guerras —, na reconstrução de uma Palestina empobrecida, é bem provável que a quantidade de pedras atiradas pelos jovens diminuísse progressivamente. Estariam na escola, ou no serviço, e sem risco de levar bala.

 

“É com mel, não com vinagre, que se atrai moscas”, diz um velho provérbio. E não só moscas, mas as úteis abelhas. É preciso dar ao Hamas um tempo razoável, “decente’ — o “sorriso” mencionado por Anatole France — para que possa “burilar” sua política em relação a Israel, afastando a acusação de que mentiu para seu eleitorado. E esse burilamento ficará bem mais fácil de ser assimilado se os aliados de Israel mostrarem boa-vontade com o novo governo.

 

Alguns, anos atrás, fins de 2003 ou início de 2004, escrevi um artigo sobre o governo mundial — sou a favor de uma federação mundial, a meu ver artigo de primeira necessidade — em que perguntava por que Israel e EUA não pensavam em indenizar cada colono judeu, na área conflituosa, com cem mil dólares por lote. Facilitaria a desocupação. Muito mais barato que os gastos bélicos gerados pelo conflito. Se a idéia não passou (!?) pela cabeça dos que decidem — Sharon, alguns anos depois andou falando em trezentos mil dólares, não sei se para valer — é o caso de se indagar por que ninguém, até agora, pensou em indenizar os palestinos expulsos. Afinal, não são responsáveis pelas diversas diásporas dos judeus, nem sub-raças que possam sem enxotadas sem mais aquela.

 

Judeus e palestinos são igualmente vítimas. Os judeus, vítimas de séculos de perseguição. Os palestinos, vítimas de um “retorno” judio descontrolado. Faltou planificação quantitativa nesse retorno. Mais uma justificativa para uma federação mundial, que poderia ter evitado isso, subtraindo uma fatia da soberania de cada país. A soberania é sempre invocada com emoção e tremores de voz, transpirando patriotismo. Mas é cega, unilateral, e insensível ao que se passa com o vizinho. Ninguém é bom juiz em causa própria.

 

Sei, sei, “o dinheiro não compra tudo”, mas, como dizia um sensato ex-campeão de boxe, Joe Louis, “acalma meus nervos”. E é de nervos mais calmos que aquela região precisa. Não esquecer que o 11 de setembro de 2001 é, a meu ver, conseqüência direta ou indireta da sensação de injustiça que permanece no coração do mundo árabe. Esse ressentimento alimentou um cérebro algo doentio, Bin Laden. Estivessem os palestinos felizes — ou medianamente felizes, igual aos judeus —, Bin Laden não convenceria seus adeptos a matar-se pilotando aviões.

 

 

* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
RODRIGUES, Francisco César Pinheiro. Devagar com o Hamas. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-internacional/devagarhamas/ Acesso em: 24 abr. 2024