O Exame de Ordem em Portugal
Fernando Machado da Silva Lima*
10.05.2004
De acordo com o art. 209 da Constituição Federal Brasileira, o ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: I – cumprimento das normas gerais da educação nacional; e II – autorização e avaliação de qualidade pelo poder público. Apesar disso, cada vez mais se fortalecem as corporações profissionais, que passam a exercer a competência constitucionalmente atribuída ao poder público, através dos exames de ordem (OAB) e dos exames de suficiência (corretores de imóveis, administradores, medicina veterinária, contadores, etc). A Ordem dos Advogados publica um “ranking” destinado a avaliar os cursos de Direito, e continua insistindo para que a sua avaliação tenha caráter conclusivo, para impedir a abertura de novos cursos, ou para fechar os que ela considerar deficitários.
Em Portugal, a situação ainda não chegou a tanto. De acordo com o professor Vital Moreira, constitucionalista de Coimbra, que gentilmente respondeu, por e.mail, aos meus questionamentos, “ultimamente a Ordem tem vindo a reivindicar uma alteração do seu estatuto legal, conferindo-lhe o poder para avaliar e credenciar os cursos de Direito (o que desencadeou a resistência das faculdades), e para estabelecer um exame obrigatório de acesso ao estágio (o que depara com a oposição dos potenciais candidatos).”
O professor Vital não concorda, absolutamente, com essas pretensões. Diz ele que não cabe às ordens profissionais avaliar os cursos universitários, e que a Ordem dos Advogados só deve poder controlar o conhecimento daquilo que ela deve ensinar, ou seja, as boas práticas e a deontologia profissional, e não aquilo que as universidades ensinam, porque o diploma oficial deve atestar um conhecimento suficiente de Direito. Na opinião do professor Vital, o exame de ordem somente poderia ser considerado constitucionalmente lícito “se não conferisse qualquer tipo de poder discricionário à Ordem, na seleção dos candidatos, de modo a garantir a objetividade, igualdade e transparência dos procedimentos, e se fosse provado que tal requisito é necessário (não basta provar que é vantajoso) para o bom exercício da profissão.”
Há muito que o professor Vital defende essas idéias, conforme pode ser constatado pela leitura de seus artigos: “O Império das Corporações Profissionais”, na página: http://www.fcsh.unl.pt/docentes/cceia/ordens-profis.doc, e “Mais Democracia e Transparência nas Ordens Profissionais”, na página: http://www.arquitectura2003.com.pt/files/congresso/pdf/docvitalmoreira.pdf.
No Brasil, o Dr. Horácio Wanderley Rodrigues publicou “O Direito Educacional e a Autonomia das Instituições de Ensino Superior”, em: http://www.aprendervirtual.com/ver_noticia.php?codigo=27. Diz ele que:
“(a) a OAB não possui competência legal para definir qualquer condição para o exercício do direito de ensinar e qualquer restrição à liberdade de ensinar das Instituições de Ensino Superior;
(b) a própria exigência de que a OAB seja ouvida, presente no artigo 54 do Estatuto da OAB, é de constitucionalidade e legalidade discutível, tendo em vista que nem a Constituição Federal e nem as normas gerais da educação nacional se referem a essa espécie de manifestação como condição para o exercício da liberdade de ensinar. Ao lado disso, essa exigência fere o princípio da isonomia, tendo em vista que os cursos de Direito formam bacharéis e não advogados; a exigência, para ser isonômica, teria de incluir os órgãos representativos das demais profissões e carreiras jurídicas, em especial a magistratura e o ministério público;
(c) a exigência de necessidade social, entendida a partir da relação entre população e número de vagas, não preenche critérios qualitativos – os únicos constitucionalmente previstos -, bem como não está inserida nas normas gerais da educação brasileira, constituindo-se em condição inexigível;
(d) não há nenhuma norma no ordenamento jurídico brasileiro – nem mesmo no Estatuto da OAB – que exija a manifestação da OAB para o aumento de vagas dos Cursos de Direito. Entretanto, continua ela exigindo a sua manifestação, tendo inclusive obtido decisão judicial favorável nesse sentido, decisão essa sem nenhuma motivação sólida no campo do Direito Educacional, a demonstrar o total desconhecimento dessa área do Direito, no âmbito do Poder Judiciário.”
Felizmente, não estou mais sozinho. Pode ser que agora me ouçam, e desistam dessas exigências juridicamente descabidas, que depõem contra a imagem de nossa Corporação. Se não, como diria Vital Moreira, “Quando o Estado é fraco e os governos débeis, triunfam os poderes fáticos e os grupos de interesse corporativos. Sempre sob invocação da autonomia da “sociedade civil”, bem entendido. Invocação despropositada neste caso, visto que se trata de entes com estatuto público e com poderes públicos delegados. Como disse uma vez um autor clássico, as corporações são o meio pelo qual a sociedade civil ambiciona transformar-se em Estado. Mais precisamente, elas são o meio pelo qual os interesses de grupo se sobrepõem ao interesse público geral, que só os órgãos do Estado podem representar e promover”.
A que ponto chegou, nos últimos 500 anos, a autonomia universitária, limitada aos interesses e às decisões das corporações profissionais! Quando os Reis de Castela receberam de Cristóvão Colombo o projeto da viagem à Índia, pela rota do Ocidente, submeteram-no à aprovação da Universidade de Salamanca.
* Professor de Direito Constitucional. Site: www.profpito.cjb.net
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