Direito do Consumidor

A inversão do ônus da prova, em matéria de Consumidor: técnica de julgamento ou matéria de instrução? E qual o momento processual adequado para que se verifique a modalidade prevista no artigo 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor?

 

 

O ônus da prova deve ser entendido não como uma obrigação de provar, mas sim, uma necessidade de provar, havendo diferença entre ônus e obrigação no direito processual.

 

Portanto, a parte que tem o ônus de provar deve fazê-lo sob pena de ver sua pretensão negada por insuficiência de provas.

 

Conseqüentemente, após a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), surgiram divergências na doutrina e jurisprudência acerca do momento processual mais adequado para aplicação do quanto disposto no art. 6º, VIII se na sentença, ou antes da sentença (na ocasião do despacho saneador).

 

O legislador se omite quanto ao momento processual mais adequado para o magistrado decidir a respeito da inversão, o que causou divergências na doutrina e jurisprudência.

 

Há duas correntes nas quais juristas de renome se posicionam que o momento correto é antes da sentença, e outros, de que o momento adequado seria na sentença.

 

Para Nelson Nery Junior, o ônus da prova é regra de juízo devendo ser reconhecido na sentença, afirmando que a sentença é o melhor momento para a inversão. Sustenta este jurista que “a parte que teve contra si invertido o ônus da prova (…) não poderá alegar cerceamento de defesa porque, desde o início da demanda de consumo, já sabia quais eram as regras do jogo e que, havendo non liquet quanto à prova, poderia ter contra ela invertido o ônus da prova.”[1]

 

Compartilha de tal pensamento, João Batista Lopes, que assim ensina:

 

“…é orientação assente na doutrina que o ônus da prova constitui regra de julgamento e, como tal, se reveste de relevância apenas no momento da sentença, quando não houver prova do fato ou for ela insuficiente” e que “… somente após o encerramento da instrução é que se deverá cogitar da aplicação da regra da inversão do ônus da prova. Nem poderá o fornecedor alegar surpresa, já que o benefício da inversão está previsto expressamente no texto legal”.[2]

 

A segunda corrente entende em sentido contrário, alegando que por se tratar de matéria referente a prova, as partes devem ter ciência prévia de a quem incumbirá o ônus probandi e o deferimento da inversão deverá ocorrer entre a propositura da ação e o despacho saneador, sob pena de prejuízo para a defesa do réu, em nítido cerceamento de defesa.

 

O eminente processualista Carlos Roberto Barbosa Moreira [3]:

“As normas de repartição do ônus probatório consubstanciam, também, regras de comportamento dirigidas aos litigantes. Se lhe foi transferido um ônus – que para ele não existiria antes da adoção da medida – obviamente deve o órgão jurisdicional assegurar a efetiva oportunidade de dele se desincumbir”.

 

Neste sentido, Desembargador Luis Antônio Rizzatto Nunes[4] em trecho digano de nota, afirma que o momento adequado para a decisão sobre a quem cabe o ônus é o despacho saneador, verbis:

“o momento processual mais adequado para a decisão sobre a inversão do ônus da prova é o situado entre o pedido inicial e o saneador.”

 

A jurisprudência igualmente se divide, conforme os julgados dos insignes relatores Ministros Sávio de Figueiredo, Nancy Andrighi e Humberto Gomes de Barros.

 

No sentido de que a inversão se trata de regra de julgamento e pode ser analisada no momento da sentença, seguem os entendimentos dos Ministros Sávio de Figueiredo e Nancy Andrighi, abaixo colacionados:

“… IV- Não há vício em acolher-se a Inversão do ônus da prova por ocasião da decisão, quando já produzida a prova.” ( STJ – Ac. RESP 203225/MG, Quarta Turma, Rel. Min. Sávio de Figueiredo Teixeira, DJ 05.08.2002

 

“(…) Conforme posicionamento dominante da doutrina e da jurisprudência, a inversão do ônus da prova, prevista no inc. VIII, do art. 6.º do CDC é regra de julgamento (…)” (REsp 422.778/CASTRO FILHO, Relatora para acórdão a Ministra NANCY ANDRIGHI)

 

Em sentido contrário, de que a inversão constitui regra de procedimento e não de julgamento, entende o Ministro Humberto Gomes de Barros, que, no precedente acima, ressalvou a discordância do seu entendimento, cujo excerto diz o seguinte:

 

“Conclui, sem dúvidas, que a inversão do encargo probatório é regra de procedimento. É que sua prática envolve requisitos (verossimilhança da alegação ou hipossuficiência do consumidor) que devem ser ponderados em cada caso concreto. Tenho convicção que o processo não pode ser armadilha para as partes e causar-lhes surpresas inesperadas. Ora, a inversão do ônus da prova é exceção à regra prevista no Art. 333 do CPC, segundo a qual ao autor incumbe a prova do fato constitutivo do respectivo direito e ao réu cabe a prova referente à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Logo, se o caso se enquadra na previsão do Art. 6º, VIII, do CDC, é preciso que o Juiz declare a inversão clara e previamente ao início da instrução. Do contrário, cria-se insegurança as partes, compelindo-se uma das partes a, eventualmente, produzir prova contra si próprio por ter receio de sofrer prejuízo decorrente duma inversão de ônus no momento da sentença. A meu ver, a tese de que a inversão do ônus da prova é regra de julgamento não é compatível com o devido processo legal. A adoção dessa tese permite que o processo corra sob clima de insegurança jurídica, colocando ao menos uma das partes em dúvida sobre seus encargos processuais.”

 

Finaliza o Ministro Humberto, concordando com a maioria:

 

“Rendo-me, entretanto, à orientação adotada pela maioria, para preservar a

higidez de nossa jurisprudência”.

 

 

Concluindo, a nosso ver, com respeito às doutas opiniões em contrário, entendemos que a inversão do ônus da prova em matéria de Direito do Consumidor deve ser entendida como matéria de instrução (ou procedimento) e não matéria de julgamento e o momento mais adequado para sobre a inversão do ônus da prova é justamente no despacho saneador ou decisão saneadora, momento em que o magistrado constatará se estão presentes os requisitos, após verificar, segundo as regras de experiência, que as alegações do autor são verossímeis ou que o consumidor é hipossuficiente.

 

O momento do saneador é adequado igualmente para a inversão do ônus da prova por ser o momento da fixação dos pontos controvertidos e anterior à instrução do processo, o que evita prejuízos à ampla defesa do réu (fornecedor/empresário).

 

No que diz respeito ainda à ampla defesa, entendemos que o fornecedor tem o direito de ser previamente informado do ônus que lhe foi carreado no momento da inversão, para que possa se defesa plenamente e produzindo todas as provas que pretender, podendo, inclusive, se insurgir contra a decisão interlocutória que aplica a inversão do ônus da prova através do recurso de agravo.

 

A inversão no saneador beneficia também o autor poderá o qual poderá evitar ser surpreendido ao final do processo com a não inversão do ônus da prova e havendo preclusão do seu direito de produção de prova, mormente diante de um Judiciário com acúmulo de serviço, onde determinadas decisões cruciais do processo passam despercebidas. 

 

 

* Rodrigo César Faquim: Advogado inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil – Seção de São Paulo, sob o n. 182.960, Subseção de Tupã/SP; Graduado na Faculdade de Direito da Alta Paulista (1999); Pós-graduando em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina, Instituto LFG e IBDP (2008/2009). Pós-graduando em Direito do Consumidor pela Universidade Anhanguera-UNIDERP e Instituto LFG (2009/2010).



[1] Nery e Nery. Nelson Junior e Rosa Maria de Andrade.CPC comentado, São Paulo, 6ª ed, p. 696, ed. RT, 2002.

[2] Batista Lopes, João. A prova no Direito Processual Civil, 2ª ed, p. 51, Ed. RT, São Paulo, 2002.

[3] Barbosa Moreira, Carlos Roberto. Notas sobre a inversão do ônus da prova em benefício do consumidor, In Revista de Direito do Consumidor, nº 22 abril-junho, 1997. Ed.RT.

[4] AgI 179.184-1/4, 5ª Câm. Civ., Rel. Des. Marco César, j. 19.09.1992, in NUNES, Luiz Antonio Rizzato. O Código de Defesa do Consumidor e sua interpretação jurisprudencial. 2ª ed., ver. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2000.

 

Como citar e referenciar este artigo:
FAQUIM, Rodrigo César. A inversão do ônus da prova, em matéria de Consumidor: técnica de julgamento ou matéria de instrução? E qual o momento processual adequado para que se verifique a modalidade prevista no artigo 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor?. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-do-consumidor/a-inversao-do-onus-da-prova-em-materia-de-consumidor-tecnica-de-julgamento-ou-materia-de-instrucao-e-qual-o-momento-processual-adequado-para-que-se-verifique-a-modalidade-prevista-no-artigo-6o-viii-do/ Acesso em: 19 abr. 2024