Direito do Consumidor

A Vulnerabilidade do Consumidor Apenas no Mercado de Consumo?

A Vulnerabilidade do Consumidor Apenas no Mercado de Consumo?

 

 

Marcus Vinicius Fernandes Andrade da Silva*

 

 

Sumário: I. Introdução; II.  O Sentido das Normas Jurídicas; III. A Ordem Econômica; IV. Tentando definir uma “Ordem Econômica”; V. Consumidor e o Ciclo Econômico; VI. A Mudança no Meio de Produção; VII. Efeito da Lei 8.078/90 no Mercado Brasileiro; VIII. Identificando a qualificação da norma da Lei 8.078/90; IX. Vulnerabilidade; X. Tipos de Vulnerabilidade; XI. Semelhanças entre  o Protecionismo do CDC e da CLT; XII. Do Campo Científico ao Social; XIII. Algumas Conclusões; Referencias.

 

Palavras Chaves: Vulnerabilidade; Mercado de Consumo; Ordem Econômica; Código de Defesa do Consumidor.

 

I Introdução

 

                        O método a ser utilizado parte do mais amplo ao específico, ou seja, será abordada a relação social que se torna jurídica lato sensu até a relação de consumo, objeto deste estudo. Dentro desta relação de consumo no atual cenário econômico, será questionado o sentido e significado do legislador presumir a vulnerabilidade no mercado de consumo como um princípio da Política Nacional de Consumo.

 

                        O presente estudo inicia-se com uma análise das normas jurídicas e sociais. Sendo impossível não comentar o sistema jurídico fechado de Hans Kelsen. Além disso, revemos a teoria de Miguel Reale sobre o fato, valor e a norma. Tentando sempre decifrar a vontade do legislador ao ciar uma norma e efeito que essa traria.

 

                        No capítulo seguinte é estudada a ordem econômica, sua imprecisão diante o “ser” e o “dever ser” em face da ordem jurídica. Questiona-se também a intenção dos economistas intervirem no sistema jurídico, ou seja, a eterna tentativa de transformar tudo em uma máquina ou fórmula matemática.  A teoria de Adam Smith fora tentada ser decifrada, talvez perfeita como teoria, mas questionável na prática. 

 

                        Segue-se então a estudar a ordem econômica em específico, sua natureza, seus efeitos e suas inter-relações. Na ocasião adentra-se na questão das normas de ordem pública e conseqüente Políticas Públicas, como talvez um modo de intervenção do Estado em certos campos.  Será visto o modelo doutrinário Francês justificando a necessidade da intervenção decorrente da fragilidade de determinado grupo social.

 

                         Alia-se então o consumidor na economia, através do ‘Ciclo Econômico’. É estudado como o ato de consumo isolado repercute em toda ordem econômica e os movimentos de mercado. Tenta-se definir a figura do consumidor através de duas concepções, dentre estas quais as vantagens nessa definição no atual cenário econômico-mercadológico e defesa daquele.

 

                        Mais uma vez será necessário ver a mudança no meio de produção. A manufatura perde lugar para a produção em série impulsionado pela indústria armamentista do período entre guerras. Reflete assim toda a evolução do capitalismo como sistema e conseqüente surgimento de práticas comerciais e marketing. Outro fator também relevante é a concorrência no mercado e suas faces positivas e negativas para o consumidor.

 

                        Enfim será analisado o efeito no mercado brasileiro da implantação de um novo regramento, a Lei 8.078/90 conhecido como Código de Proteção e Defesa do Consumidor. A repercussão trazida como grande evolução normativa e o efeito sobre os fornecedores que até hoje repercuti.

 

                        Visto o efeito da lei 8.078/90 no mercado brasileiro, passa-se a analisar as características dessa lei. A qualificação da norma através de seu artigo 1º e artigo 4º, seus princípios e sua regras, além dos graus de interpretação que essas ocasionam.

 

                        A “Vulnerabilidade” ou “Submissão Estrutural” são estudadas em capítulo específico. É questionado o porquê dessa ser vista como um presunção absoluta para alguns, bem como ela é vista de forma na relação jurídica de consumo lato sensu e na stricto sensu, ou seja, o entendimento dessa como efeito pedagógico-normativo e seu efeito prático, no casuísmo. Em seguida seguindo um modelo padrão analisam-se alguns tipos de vulnerabilidades.

 

                         Par ilustrar melhor o diferencial da norma quando atinge determinado grupo ou classe, foi feito uma comparação do protecionismo presente na CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas e o protecionismo empregado ao consumidor no CDC – Código de Defesa do Consumidor. É estudado dentro dessas matérias, hoje autônomas, suas repercussões no campo material e no campo instrumental, afim de tentar justificar o protecionismo dessas legislações e seus respectivos atores.

 

                         Antes de chegar a algumas conclusões, essas totalmente questionáveis afim de serem facilmente derrubadas sob mínimos argumentos, tenta-se enxergar uma praticidade da previsão legal do princípio da vulnerabilidade do consumidor dentro do mercado de consumo. Sob o título ‘Do Campo Científico ao Social’ tenta-se averiguar como a vulnerabilidade será prática à sociedade, ou seja, que meios tal princípio servirá para o consumidor exercer sua cidadania. Seja via administrativa ou judicialmente. É questionado o que justificaria mais o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, a vulnerabilidade ampla do consumidor? Ou o que mais justificaria  a Lei 8.078/90 que regula todas as relações de consumo, uma busca na harmonia e equilíbrio das relações?

 

O presente trabalho monográfico é apresentado pelo método científico de “Monografia de Compilação”, isto é, serão expostos pensamentos de vários autores que escreveram sobre o tema abordado. Logicamente, a opinião pessoal também será exposta, bem como a refutação de algumas outras idéias. Releva-se lembrar que há muito pouco escrito sobre o tema proposto, o que se tem em algumas obras muito é repetida nas outras através de citações, ao mesmo tempo que fora um pouco trabalhoso a busca de material, e tentar suprir inúmeras dúvidas surgidas com o estudo do tema, foi bastante satisfatória a pesquisa, não que irá esgotar o tema, nem responder todas as dúvidas advindas, pelo contrário, talvez gerar mais dúvidas ansiosas por respostas.

 

 

II  O Sentido das Normas Jurídicas

 

                         Os Direitos em si, como tenta decifrar desde os primeiros anos do curso de graduação, surge da convivência dos indivíduos em sociedade. Já por sociedade podemos entender como num mínimo a relação entre duas pessoas. Utilizando-se do exemplo[1] da Professora Suzana, o que seria do Robson Crusué sem Sexta-feira que obedeceria as regras e as imposições daquele?

 

                        Para a ciência jurídica o direito regulará estas relações intersubjetivas impondo direitos, deveres, pretensões, obrigações, ações, dentre outros. Tudo com objetivo sempre de, mediante situação real e específica, aplicar o melhor direito. Uma harmonia de relacionamento, fundando-se sempre numa definição de igualdade atualmente muito pregada que é ‘tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente’[2].

 

                        A intenção de cada sistema jurídico é tentar prever cada situação de fato. Então no caso de um confronto de interesses entre indivíduos, ter-se-ia uma norma em específico no ordenamento jurídico, a qual solucionaria tal conflito.

 

                        A idéia seria perfeita e aceitável para Kelsen[3] e sua Teoria Pura do Direito, ou seja, seu tão sonhado e pregado Sistema Fechado, a qual o sistema jurídico em funcionamento jamais sofreria influência de fatores externos, uma aplicação pura da norma sem levar em conta os demais fatores. Poderia inclusive, falar na subsunção defendida por Karl Engsh, ou seja, aplicação direita da norma (premissa maior) no fato (premissa menor).

 

                        Em dissertação de mestrado pela PUC-SP, sob o tema “Relações Jurídicas entre Fornecedores e Consumidores. Confronto ou Harmonização nas Decisões Jurídicas Brasileiras – Vulnerabilidade do Consumidor” a discente Maura Gomes de Souza acrescenta que:

 

“O direito passa assumir uma feição que resulta em estruturas como as criadas por Kelsen. Ele entendia o direito como sistema fechado e pronto, trazendo uma visão sistêmica e intrínseca, na qual o direito é formado de normas postas, existentes, concretas e válidas. Kelsen pretende com isso ‘afastar as ingerências sociológicas, filosóficas e jusnaturalistas, dizendo que o direito é puro e independente, pensamento que hoje não condiz com a realidade jurídica, apesar de alguns juristas defendem este ponto de vista’[4][5].

 

                        Não se questiona o de grande valor científico das obras de Kelsen, aliás o vemos como um ícone na ciência jurídica, mas o sistema fechado não teria lugar no mundo real. Aos olhos de alguns estudiosos, em nosso direito pátrio através do Professor Miguel Reale, dever-se-ia valorar o fato para aplicação da norma.  Estaríamos então concordando com a famosa teoria  do Professor que o Direito possuiria um tripé,  o qual em suas bases teríamos o fato, o valor e a norma. Esta valoração terá grande influência neste trabalho, para adiante questionarmos a vulnerabilidade.

 

                        Logo, a norma jurídica procura prever determinada situação fática. Não impede, porém, que os fatos por ela previstas jamais se concretizem no mundo e, em decorrência, as conseqüências atribuídas não se realizem[6], ou seja,  seja em qualquer relação jurídica, entendemos que  o fato, em específico, tem a maior relevância na aplicação  da norma.  Os fatores e qualificações em qualquer relação das partes tem de ser verificados especificamente para cada caso, e não generalizar uma qualificação através de uma pré-compreensão. Interessante frisar o entendimento da Profa. Maura Gomes sobre o assunto:

 

“Sem os fatos caracterizados na norma incidente não ocorre o processo eficacial da efetivação da relação jurídica (…) Da norma geral não se passa imediatamente para a relação jurídica sem interposição de um fato (fato natural ou individual). Se o fato não ocorreu, a norma geral permanece em seu status proposicional, sintático, lógico, o direito-norma não se realiza, não é realidade sócio cultural”[7].

 

                        É árdua a tarefa daquele que irá julgar ter o mesmo conceito de igualdade ao aplicar determinada lei, daquele que fez a lei.  O Professor Eros Roberto Grau, faz pertinente colocação ao afirmar que para que o julgador possa controlar a observância do princípio da igualdade na criação da lei, ele toma como referência o mesmo critério que deveria ter sido utilizado pelo legislador: a proporcionalidade em seu sentido amplo. Na relação de consumo, há-se de verificar a proporcionalidade que possibilitará o alcance à justiça social e à justiça contratual[8].

 

                        Ademais, fora o aspecto daquele que elaborou a lei e manifestou através desta seus valores e conceitos, vinculado a situação da época. Aquele que irá aplicar a norma, seja administrativamente ou judicialmente, dificilmente deixará de lado seus conceitos, valores e suas pré-compreensões. Exemplo disto são os diversos entendimentos sobre casos idênticos.  O Professor Eros Grau salienta ainda que: “Não basta interpretar no sentido de ‘compreender’ mas, é necessário superar-se a própria imprecisão. Impõe-se a identificação dos sentidos que cada expressão e cada palavra adotam um determinado contexto”[9].

 

                        Em relação a vontade do legislador, Carlos Maximiliano afirma como uma vontade decrépita. Por achar pertinente, pede-se licença mais uma vez para expor nos ensinamentos do Professor Grau ao tratar da busca da intenção do legislador:

 

“… na verdade, considerar-se que a interpretação supõe a necessidade de buscar-se a vontade do legislador equivaleria a afirma-se que em todo gabinete onde se desenvolva o ofício jurídico, seria necessária  a colaboração de dois tipos profissionais não-jurídicos: um psicólogo, às vezes, um psicanalista, para discernir a vontade do legislador, e em outras hipóteses, algum exercício de catecismo haveria de ser praticado, dada a impossibilidade de descobrir essa vontade”[10].

 

 

III A Ordem Econômica

 

                        Tratar temas do sistema jurídico aliado aos critérios dos princípios da economia reflete uma tarefa de difícil ‘compactuação’. Entretanto, faz-se necessário tal envolvimento na busca de uma racionalidade comum.

 

                        O filósofo de direito, o catalão, Albert Calsamiglia discutiu o assunto em 1987. O enfoque de seu estudo fora aliar a “Eficiência e o Direito”.  A temática se desenvolve na eterna tentativa dos economistas quererem ditar regras e questionar os juristas e seus métodos para com o ‘Sistema Jurídico’, ou melhor, a operacionalização do Ordenamento Jurídico.

 

                        No nosso entender, esse fato se deve a eterna tentativa daqueles que estudam as ciências econômicas e exatas sempre desconsiderarem o fator humano e social.

 

                        Para a economia tudo deve funcionar como uma máquina, uma fórmula matemática, sem qualquer influência de fatores externos. Esta ‘lógica’ aplicada a economia e seus sistemas, pode até apresentar resultados satisfatórios em vossos campos. Mas, quando trata-se  de um sistema jurídico, isolar o fator humano é contrariar toda a ciência jurídica, a qual como uma ciência social tem como objeto central de estudo o homem e suas relações intersubjetivas e sociais. Destaca-se ainda mais essa visão antropocêntrica quando tratamos de Direitos Difusos e Coletivos, os quais englobam o Direito Consumerista.

 

                        O respeitável Adam Smith defendia a idéia, que não só para o mercado, mas também para uma sociedade, seu funcionamento se daria através de um mercado competitivo com indivíduos racionais e egoístas, buscando seus próprios interesses, produziriam sem ter consciência, guiados por uma “mão invisível” um benefício social maior ao meio.

 

                        Ou seja, tal teoria resultaria não só no aspecto econômico-mercadológico, mas também um benefício ao meio social, um sistema auto-regulável e equilibrado.

 

                        Tivemos a oportunidade de estudar à fundo um sistema jurídico, através de uma Constituição sob uma ‘concepção mecanicista’, ou seja, mais um tentativa de mecanizar o sistema jurídico. Logicamente não se chegou a conclusão diferente. (anexo 01)

 

                        A idéia defendida pelos economistas é que qualquer sistema deve ser eficiente, seja ele econômico, jurídico, ou social. Calsamigla apresenta o seguinte raciocínio, tomando como referência a obra de A. Scholter ( La economia del libre mercado. Barcelona, Ariel, 1987, p. 140):

 

“Outra assunción valorativa importante hace referencia a los criterios de evaluación de una sociedad determinada. Las leyes del mercado competitivo cuyo agentes son individuos egoistas y racionales producen eficiencia social. La eficiencia es el valor por excelencia de um sistema economico (A. Scholter). Sin embargo existe una relación inversa – trade off – entre princípios de equidade y de eficiencia. En la medida en que tratemos que la distribucion sea equitativa nos alejamos de la eficiência. Se produce por tanto una caída en picado de la riqueza social. La teoria económica se há ocupado en los últimos tiempos de este problema. Como tesis generalizada, el hecho de que exista una relación inversa entre equidad y eficiencia no quiere decir que toda la teoría económica esté a favor del principio de eficiencia ni que sea siempre deseable la solución eficiente. ”[11]

 

                        Compatibilizamos de tal entendimento de que a eficiência deve ser a medida de um sistema. Entretanto, não que sejam antagônicas, mas ao pensar em ‘equidade’ aliado a ‘eficiência’ destoa-se a realidade. Esta ‘eficiência’ sem embargo compõe o ideal de justiça, mas não é o único critério, tampouco um dos mais importantes.

 

                        Desconsiderar o fator humano e social foge da realidade, seja num sistema jurídico e até mesmo econômico. O Próprio Adam Smith ao tratar da ‘relação social’ pecou em ignorar totalmente os fatores exógenos ao mercado.

 

                        É como os economistas agem, e tendem a estudar a conduta social e humana, como analisam o mercado. Nisso atrevem-se a estudar a Ciência Jurídica sob esta mesma lógica. Como já afirmado a noção de eficiência faz parte do conceito de justiça. Ademais, ao tratarmos as normas dentro de um ordenamento jurídico, deverão estas apresentarem mesmo que mínimo um grau de eficiência.

 

 

IV tentando definir uma “Ordem Econômica”

 

                        Nessa temática, não contrariando os sentidos de ‘ordem jurídica’ e ‘ordem econômica’, haja vista o eterno impasse diante a definição do termo “ordem”. Tem-se uma inserida na outra, ou seja, a ordem econômica estaria inserida na ordem jurídica.

 

                        Para Max Weber, em sua obra Economia y Sociedad, a ordem jurídica manifestaria o “dever ser”, enquanto a ordem econômica o “ser”. Em nosso ordenamento, através da Constituição Federal de 1988 em seu art. 170, da seguinte maneira:

 

“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

 

V – defesa do consumidor .”

 

                        Manifesta mais uma vez a implementação das políticas públicas, resultado dos movimentos sociais entre as décadas de 60 e 70, programas e políticas específicas para que o Estado inicia-se não só na produção de normas, mas também  na efetivação daquilo que estaria previsto.

 

                        Nos textos constitucionais no período da crise do estado social, a implementação das políticas públicas eram sempre previstas, logo como ordenamento jurídico, através das previsões constitucionais o “dever ser” das políticas públicas estavam perfeitos.

 

                        O problema então centrava-se na efetivação destas políticas públicas, estas sempre dependera das conveniências políticas. Dessa maneira o Judiciário fica de mãos atadas esperando o resultado dos jogos de interesses entre o Legislativo e o Executivo. Não é mera coincidência  com os dias atuais, acresce ema pequena diferença, o Executivo hoje acumula de fato todas as funções dos poderes, quando trata de legislar então, a idéia ganha mais fundamento.

 

                        Um outro entrave para o exercício das Políticas Públicas é a questão orçamentária. As previsões e verbas do orçamento a serem aplicado nas políticas torna-se mais uma problemática para efetivação destas.

 

                        Citar-se-á o exemplo das políticas públicas voltadas para questões ambientais. Logo para que se exerça determinada obra em prol do meio ambiente, seja, preventivo ou reparatório, todo orçamento deve está previsto em suas dotações, seja através das Leis de Diretrizes Orçamentária, Plano Plurianual e Lei Orçamentária anual. (anexo 02)

 

                        Ainda sobre as políticas públicas, salienta-se frisar o posicionamento do Professor Eros Roberto Grau em sua clássica obra A Ordem Econômica na Constituição de 1988, quanto as normas de ordem pública e as normas de intervenção por indução, o Prof.  sob crivo do mestre Vicente Ráo, assim expõe:

 

“O que se tem como certo, de toda sorte – ainda que seja impossível indicar a priori, por via de definição ou conceito geral, como anota Vicente Ráo, todas as normas de ordem pública – é o fato de que traços bem definidos apartam as disposições de ordem pública das normas de intervenção por direção, permitido-nos iluminar a zona cinzenta nas bordas da linha que as separa, de modo a indicarmos as que em um outro grupo se inserem: (a) as normas de ordem pública estão voltadas à preservação das condições que asseguram sobre as quais repousa a estrutura orgânica da sociedade, ao passo que as normas de intervenção por direção instrumentam políticas públicas cuja dinamização envolve não meramente a preservação da paz social, mas a perseguição de determinados fins, nos mais variados setores da atividade  econômica; as normas de ordem pública não apenas são compatíveis com ela, mas se compõem no núcleo da ordem jurídica do liberalismo, enquanto que as normas de intervenção por direção  conduzem à transformação dessa ordem jurídica; (b) voltadas ao estabelecimento de um regime de segurança social, mediante a vedação de comportamentos que afetem o status quo prevalente na organização social, as normas de ordem pública incidem sobre a generalidade dos agentes, setores e atividades econômicas, de modo indistinto; já as normas de direção preenchem o conteúdo funcional de determinadas situações jurídicas, distinguindo-as de outras – estilo das disposições de ordem pública, ademais, não é amoldável às características destas últimas; (c) as normas de ordem pública compreendem uma ordem de exceção – são proibitivas, negativas, externas ao Direito Privado; as normas de intervenção por direção não expressam noção de exceção – compõem ordenação concorrente com a definida pelo Direito Privado, respeitando à regulação das obrigações, em geral, e dos contratos, de modo a, como anotam René David (Prefácio a Lê dirigisme économique et lês contracts, de Magdi Sobhi Khalil, LGDJ, Paris, 1967, p. VII) e René Savatier (Du Droit Civil au Droit Public, 2ª ed., LGDJ, Paris, 1950, p.65), configurá-los como verdadeiros instrumentos de política econômica, transformados menos em uma livre construção da vontade humana do que uma contribuição das atividades humanas, coordenadas pelo Estado, à arquitetura geral da economia nacional; (d) não se superpõem ordem pública e Direito Público, de um lado, e ordem privada e Direito Privado, de outro, nem o confronto de que se cuida, quando cogitamos da ordem pública, se esgota na oposição entre dois termos, ordem pública e ordem privada. ”[12]

 

                        Adentrando-se premissamente na questão dos consumidores, tidos como vulneráveis, elo mais fraco da relação de consumo. O Direito Francês já definia que tipo de norma de ordem pública defenderia os interesses desses. Resume-se a uma diferenciação que os franceses fazem entre a “ordem pública econômica de direção” e a “ordem pública econômica de proteção ”.

 

                        Sustenta os doutrinadores franceses que caberiam as normas de ordem pública econômica de direção organizar a economia nacional.

 

                        Restando a ordem pública econômica de proteção, o papel justo de proteger determinado elo mais fraco, o qual necessitaria realmente de uma proteção. Conclui-se que este espelharia o perfil do Código de Proteção e Defesa do Consumidor brasileiro.

 

                        Confirmando esse posicionamento, pedir-se-ia licença para apresentar as considerações feita pelo Professor Jacques Ghestin, em sua obra Traité de Droit Civil – Le Obligations – Le contract,(LGDJ, Paris, 1980, p. 90-91):

 

“Ce qui justifie cet effort de qualification, malgré sa difficulté, c´est la necessite d´y avoir recours afin d´essayer de systématiser le regime des regles qui constituent l´ordre public économique. Les regles que se rattachent à la protection de certaines catégories de personnes ne peuvent, en effet, être soumises au même regime que celles de l´ordre public de direction. Tout d´abord, si une regle impérative vise à proteger l´une dês parties contre l´autre, il semble difficile d´ouvrir à cette derniere lá action em annulation. On a vu également que l´ordre public de protection constituait um minimum auquel lês contracts pouvaient toujours déroger à la condition que ce soit em faveur de la partie protégée. Un  tel príncipe est évidemment inappicable à l´ordre public de direction, qui vise à imposer une politique économique et sociale. Enfin il est logique de permettre à la obtenus, une fois du moins que as protection n´est plus nécessaire. Une telle renonciation ne se conçoit guere pour l´ordre public de direction.”[13]

 

                        Reitera-se então que o legislador optou pela expressão “ordem econômica”, para institucionalizar esta. Busca-se com isso permitir que o estado intervenha na economia, o que antes, tinha-se como um “ser” passaria a categoria do “dever ser”, acarretando com isso todas as implicações e garantias de uma norma constitucional. Acresce o Prof. Grau que: “De uma banda, a nova  ordem econômica, além de não exaurir no nível constitucional – deixe-se isso bem vincado – , da antiga se distingue na medida em que, ao contrário do que ocorre em relação a esta, compreende não apenas, fundamentalmente, normas de ordem pública, mas também, e em profusão enorme, normas que instrumentam a intervenção do Estado na Economia – normas de intervenção. De outra, a nova ordem econômica, no quanto se contém no nível constitucional, seu novo caráter retira precisamente da circunstância de estar integrada em Constituição diretiva ou dirigente[14].

 

                        Considerando o objeto do nosso estudo, definira-se o caráter da norma do artigo 4º, I da Lei 8.078/90. Entende-se, como fora tentado sustentar, em consonância com os mestres Newton De Lucca, Eros Grau e Antônio Herman Benjamin, que:

 

“esta norma do art. 4º, realmente não cabe nem no modelo de norma de conduta, nem no modelo de norma de organização. Porque, na verdade, ela é uma norma objetivo. Ela define o fim a ser alcançado. Essas normas que definem fim – e que eu acho não são programáticas, são normas de eficácia total, completa, absoluta, inquestionável, indiscutível – começam a surgir modernamente .”[15]

 

 

V Consumidor e o Ciclo Econômico

 

                        Sob o ponto de vista econômico o ato de consumir espelha um fenômeno de destruição técnica dos bens e serviços, seja totalmente ou parcialmente. Devendo este que consumou o ato ser destinatário final do bem ou do serviço, num primeiro momento de forma genérica pode intitular este de consumidor.

 

                        Uma outra face de um sistema de consumo, refletiria nas lições de Bourgoignie, seria por este sistema no centro  de um ciclo econômico global, o qual faria parte do ciclo:  produção-distribuição-troca-consumo[16].

 

                        Logo, concluiríamos sem embargo, que o ‘consumo’ faz parte como instrumento dos atos e movimentos da economia e do mercado.

 

                        A idéia de consumo não pode limitar-se tão somente na idéia do ato de consumir, ou seja, aquele que apenas aparece no ato final do ciclo econômico. Longe muito da idéia já comentada de Adam Smith que entendia através de sua intitulada “economia do bem estar” em um mercado competitivo em que o ser individual racional, egoísta visando apenas seus interesses ocasionaria um sistema não só econômico, mas também social totalmente eficiente.

 

                        Faz-se necessário ampliar o contexto, entendendo que o ato de consumir está totalmente atrelado ao funcionamento do mercado, por conseguinte a economia, ou seja, o sistema de consumo, como afirmado, faz parte da estrutura de funcionamento da sistemática economia de mercado.

 

                        Retornando ao Ciclo Econômico, a idéia que o fornecedor produtor, ao determinar sua estratégia de produção fixa-se na figura do consumidor como aquele que tem liberdade para escolher independente de qualquer efeito, não reflete o objetivo empresarial. Bourgoignie atenta ainda que:

 

“A escolha do empresário em fabricar tal bem, e não outro, não resulta tanto da consciência ou do conhecimento que ele tem do estado das necessidades do consumidor, mas da possibilidade maior ou menor de rentabilizar um dos fatores de produção, do capital, fator privilegiado entre outros, o que lhe assegura a acumulação”[17].

 

                        O que não é nenhuma novidade concluir que é o mercado que irá conduzir as demandas, impondo e controlando os desejos e necessidades do consumidor. Logo, falar em liberdade de escolha do consumidor fica muito bonito estampado no texto normativo. A criação de normas de comportamento e normas sociais fica a cargo do mercado com enfoque em suas condições de produção.

 

                        Para o professor Nobert Reich em um processo de circulação e de intercâmbios de mercadorias organizado de tal forma o consumo, constitui, de certo modo, o último elo de um sistema de produção e circulação baseado na divisão de trabalho[18].

 

                        O Consumo sem dúvida é um dos elementos do complexo sistema de mercado. Para enxergar uma realidade óbvia, qualquer desregulagem no sistema de mercado repercutirá no elemento final do sistema, ou seja, o consumo.

 

                        O nosso ordenamento através do CDC adotou praticamente o sentido econômico para definir a figura do consumidor, em verdade é o sentido mais amplo. Geraldo Brito Filomeno, defende a idéia que:

 

“O conceito de consumidor adotado pelo código foi exclusivamente de caráter econômico, ou seja, levando-se em consideração tão somente o personagem que no mercado de consumo adquire os bens ou então contrata a prestação de serviços como destinatário final, pressupondo-se que assim age com vistas ao atendimento de uma necessidade própria e não para o desenvolvimento de uma outra atividade negocial”[19].

 

                        Dentre inúmeras definições e opiniões, há se ressaltar a definição de consumidor mediante duas concepções. Uma concepção objetiva de consumo e uma concepção subjetiva. Não diminuindo a relevância da questão da teoria dos finalistas e maximalistas, devemos concordar com o Professor Vitor Morais de Andrade que a discussão no presente cenário há de dar lugar a questionamentos mais urgentes e de maior relevância.

 

                        Esta divisão entre as duas concepções fora estudada de forma aprofundada pelo Professor belga Thierry Bourgoignie.  Concepções  estas já estudada também pela doutrina brasileira pelo Professor Fábio Ulhoa e o Professor Newton De Lucca.

 

                        Sem objetivo de grandes aprofundamentos, deve-se entender pela Concepção Objetiva da relação de consumo, aquela que se funda totalmente no ato de consumo e não no sujeito que pratica o ato. A concepção parte de um pressuposto com vistas em todo o processo econômico-mercadológico, concentrando-se na última fase do processo que é o consumo. A concepção fora criticada por ignorar totalmente o agente que o pratica o ato do ciclo produtivo.

 

                        A crítica neste tipo de concepção, além da já mencionada, traz um argumento de que qualquer um que consumisse no mercado, seja insumo, bens de capital ou de investimentos para vossas empresas, estariam abrangidas pelo Direito das Relações de Consumo. Isto implicaria num desvirtuamento parcial da Política das Relações de Consumo, a qual busca inserir no sistema econômico o real consumidor.

 

                        O Professor Fábio Ulhoa entende que este tipo de concepção é que é utilizada pelo texto normativo do CDC. O argumento do professor é que o CDC ao definir a figura do consumidor preocupa-se em todo apenas com a destinação final, o que não daria margens a se preocupar com o sujeito que consome.

 

                        Quanto a Concepção Subjetiva de Consumo, esta estar centrada na pessoa que pratica o ato de consumo, a qual tem como princípio em nosso ordenamento um consumidor em sentido amplo vulnerável.

 

A concepção subjetiva vai de encontro à concepção objetiva, justamente por esta ignorar as influências e métodos que o mercado se utiliza para atingir o fim do ciclo econômico.

 

Apesar de opiniões contrárias, boa parte da doutrina entende que a concepção subjetiva é a que mais se encaixa ao conceito do CDC, não retirando o mérito do Prof. Fábio Ulhoa que apresentou entendimento altamente sustentável, em cima da ‘destinação final’. Além de que diferente de algumas legislações consumeristas, o CDC preferiu utilizar-se da definição de consumidor vinculada ao destinatário final.

 

Entendemos de acordo com o Professor Newton De Lucca, que apesar de ter sido construída uma definição subjetiva de consumidor, o problema ainda não está resolvido. Isto decorre do fato que dentro da concepção subjetiva existe a teoria finalista. O grau de heterogeneidade[20] ainda é grande.

 

VI A Mudança no Meio de Produção

 

                        Passada essa fase, com o fim das guerras, fica o legado da maneira de produção armamentista, ou seja, a produção em grande escala, em série deixa de ocupar os galpões militares e tomam todo o método arcaico e da manufaturaria. Estava-se diante a Revolução Industrial, fora a comentada indústria armamentista destacavam-se as máquinas movidas à vapor e a indústria têxtil, o que inevitavelmente influenciou todas as outras industrias. Unido a esta revolução inicia-se os movimentos sociais, em destaque o trabalhista, e o modelo econômico capitalista começa tomar forma.

 

                        A produção em massa surge, a impessoalidade aumenta e o grau de informação daquilo que se consumia diminuía. Refletia assim uma realidade que até hoje se enxerga, liberdade de contratar e autonomia da vontade totalmente inexistente.

 

“esta é a característica do que se convencionou chamar de relações de massa, por envolverem sujeitos que não se identificam individualmente, mas apenas p conjunto que fazem parte. A par do processo de massificação, características da sociedade contemporânea, surge a luta dos corpos sociais intermediários por demandas anteriormente inéditas ao mercado e ao próprio Estado. Estes corpos sociais acrescentam um dado igualmente novo ao cenário social e político: os agentes sociais deixa de ser o indivíduo, como nas concepções liberais clássicas, e passaram a entes coletivos, representativos de interesse  que muito superam o interesse isolado (José Eduardo Faria,  Direito e Economia na Democratização Brasileira) ”[21].

 

                        Manifesto era esse ideal capitalista, centrado na filosofia do iluminismo, visão liberal formou uma nova concepção entre os contratantes de produtos e serviços. Produção em série, contratos padrões, publicidade, marketing agressivo, dentre outros, faz surgir um ser alheio, fragilizado, alvo constante de inúmeras práticas.

 

                        Logo, surge no próprio corpo da norma a presunção iuris et de iure  de que exclusivamente dentro do mercado de consumo o consumidor é vulnerável, em outros termos como será visto em específico, apresenta certa submissão estrutural perante o fornecedor.

 

                        O comportamento do mercado altera-se conforme as variáveis da economia. O estado em primeiro momento fica alheio a esses movimentos. Um mercado ideal, com uma concorrência leal onde apresentaria autores: o consumidor e o fornecedor exercendo uma relação harmônica e equilibrada, desconfigura-se perante a realidade.

 

                        A concorrência entre fornecedores, a lealdade entre si, e como conseqüência para o consumidor provocaram uma necessária intervenção do Estado. O Promotor de Justiça Dr. Salles ressalta que: “… este ideal de liberdade de mercado foi progressivamente corroído por obstáculos técnicos e econômicos, que obstaram a livre concorrência e a mobilidade social necessária para  o funcionamento do sistema. O resultado foi um processo crescente de estratificação social e de formação de oligopólios e cartéis na economia”[22].

 

                        Dessa maneira deve-se ter uma visão de mercado como aquele que permita a seus atores a viabilidade de negociações e relação entre os indivíduos. Quando se fala em intervenção do estado, não é para que este fosse oposto ao mercado. Seu papel inicial é de disciplinador, regrar condutas entre fornecedor-consumidor e fornecedor-fornecedor.

 

                        Assim principia-se a intervenção do Estado no mercado, preservar a figura do consumidor, o qual não tem condições de brigar contra os fornecedores.

 

“A intervenção estatal em defesa do consumidor possibilita um acirramento da atividade concorrencial, uma vez que permite a formação da demanda de maneira mais qualitativa, aprofundando a dinâmica da concorrência e garantindo uma maior seletividade no mercado” [23]

 

VII Efeito da Lei 8.078/90 no Mercado Brasileiro

 

                        Apesar de grande parte dos fornecedores terem sido contra a implantação do CDC, sob argumento de que a legislação desregularia o mercado, e ainda, que o consumidor iria poder tudo, que ocorreriam abusos sob o manto de uma lei, o CDC na verdade apresentou o maior avanço legal daquela época e vem servindo ainda de modelo para vários países do mundo.

 

                        Houvera ainda no trâmite legislativo, logicamente sob forte influência do empresariado brasileiro, vários questionamentos. Um dos mais lembrados fora o questionamento por parte de um deputado, sobre o processo legislativo utilizado na ocasião, ou seja, o que era uma verdade, o trâmite para a codificação de uma lei seria o de lei complementar e não de simples lei ordinária como ocorrera no caso do CDC, como sabido o trâmite legislativo de uma lei complementar é muito mais rigoroso e criterioso do que uma lei ordinária.

 

                        Apesar de toda controvérsia, a verdade é que a lei 8.078/90 trouxera grandes avanços para o mercado brasileiro. Hoje em dia pode conclui, sem medo de erro, que o fornecedor pela definição do código, ao invés de contrariar a lei irá caminhar a lado desta, ou seja, além de ser bem visto pela massa de consumidores o fornecedor que segue as regras do CDC, o fornecedor ainda se utiliza do mesmo em suas defesas.

 

                        Isso se deve ao fato de que o códex apenas vem a regrar algo que é já respeitado e básico para qualquer empresa séria e correta, um respeito mínimo aos valores sociais do cidadão, sua dignidade, e em específico quando figura como consumidor.

 

                        Ademais, diferente do que se prega o CDC sempre busca não uma defesa exclusiva e a qualquer preço para o consumidor, mas sim uma harmonia na relação entre o consumidor e o fornecedor. Esta harmonia na relação se dá principalmente na busca do equilíbrio da relação.

 

                        Há de se registrar a lamentável imagem que vem se fazendo do CDC por parte de uma minoria. Consumidores orientados ou não utilizam-se da lei para auferir direitos indevidos, na maioria das vezes questões de responsabilidade civil sem o menor escrúpulo, lotam os tribunais e juizados. Isso reflete a famosa ‘Indústria do Dano Moral’, é inaceitável tal prática.

 

                        Tais condutas só trazem descréditos e fundamentos aos fornecedores. O objetivo da legislação jamais é criar dois pólos antagônicos, digladiando-se eternamente nas tribunas. O buscado é harmonizar os interesses como já dito e não gerar rendas sem um mínimo de fundamento sob uma pregação que o consumidor é vulnerável e pode tudo.

 

                        Logicamente que é notório a diferença entre os participantes da relação, no campo da suficiência. Megas empresas entram em campo, ou melhor, no mercado com todo seu aparato de marketing, técnicas e práticas comerciais, em busca da presa perdida no mercado que é o consumidor, uma mera peça nesse imenso tabuleiro que é o mercado.

 

                        Esse vulnerável consumidor aqui falado, não pode ser visto com o parâmetro de ‘homem médio’, deixemos essa teoria apenas para os civilistas, isolados nas relações a que lhe caibam. Entende-se que a grande massa de iletrados é quem deve ser considerada como parâmetro de consumidor, aliás, porque não é só o homem mediano que consome, pelo contrário, as técnicas persuasivas criadoras de necessidades atingem tanto a criança como idoso, tanto o analfabeto como os mais cultos, logo não há que se fazer médias, parâmetros, pois e menor grau é o que consome também. Para se ter uma idéia 43% da população brasileira são considerados analfabetos, dentre estes tem aqueles considerados totalmente que não sabem nem ler nem escrever e os analfabetos funcionais que sabem assinar o próprio nome, ou no máximo mediante uma frase ler palavras isoladas sem porém contextualizar o sentido[24].

 

                        Outro aspecto bastante relevante é trazido pelo Promotor de Justiça do Estado de São Paulo, Dr. Carlos Alberto Salles, o qual expõe:

 

“Na verdade, a raiz desses problemas está na brutal concentração de renda em que vive o país, produzindo um grande número de não-consumidores, pessoas que, devido à sua baixa renda, estão excluídas do mercado formal de consumo (…) Assim, não se trata de emprestar ao CDC um papel determinante na economia como um todo, mas de reconhecer sua influência sobre o padrão pelo qual estas se desenvolvem em uma dinâmica de mercado, afetando direto e indiretamente os mecanismos de oferta e demanda.”[25]

 

                        Bastante pertinente a lembrança desse fator social, feita pelo ilustre Promotor. Entretanto, sobre tais posicionamentos seria relevante considerar que ‘não-consumidores’ aqueles cidadãos de baixa renda, torna-se um pouco exagerado, salvo melhor juízo, de início pelo fato de ter sido ignorado por completo as equiparações de consumidor, além de que apesar de possuir baixa renda, não deixam de ser consumidores direto e a todo momento. Considerando ainda que estes tidos como consumidores de baixa-renda, representam um alvo em potencial de determinadas empresas, em destaque aquelas que concedem créditos e financiamentos, as quais dependem desses tipos de consumidores para faturarem no mercado. Não ousemos discordar do relevante aspecto levantado pelo Promotor, inclusive em destaque como fator mais social e menos econômico-mercadológico.

 

                        Cabe ainda um superficial comentário quanto a afirmação de que o CDC influenciaria o grau de oferta e demanda no mercado. Com a devida vênia, pode-se até ter um fundamento tal afirmação, mas em um grau muito menor do que se afirma, os ditadores do mercado são outros mais poderosos, a legislação consumerista acompanha de longe, e só age num fato isolado quando provocada. A influência maior no mercado cabe aos fornecedores e especuladores, os quais trabalham sobre a criação de eternas necessidades, ou seja, os fornecedores ditam os gostos e necessidades que os consumidores sentirão.

 

                        Longe é a intenção do CDC  pintar  a imagem de um quadro do fornecedor como este sendo um ‘mal’, ademais os fornecedores precisam dos consumidores e vice versa, o fornecedor é quem faz sua imagem perante o consumidor, lógico que muita das vezes essa imagem é impossível de ser identificada, mas essa seria a regra.

 

                        Retorna-se a questão nunca respondida, de que essa proteção buscada pelo CDC sob um prisma de justiça não seria tão lógica?

 

                        Compreende-se que as já comentadas Políticas Públicas, por uma manobra legislativa e de efetivação, já apresentava um grau de lucidez  na Constituição da República Federativa de 1988 e seus princípios mínimos de justiça.

 

                        Será que o meio ambiente não deveria ser preservado e aquele que cause um dano repará-lo? Não é óbvio que as crianças e adolescentes mesmo educados não possuem maturidade suficiente e necessitam de um tratamento diferenciado uma proteção integral? Por um critério  comezinho os idosos não deveriam ser respeitados e tratados de maneira preferencial?

 

                        Ora, torna-se mais do que lógico que as leis hoje específicas já apresentavam seu recado dado não só através do ordenamento jurídico, mas também pela ordem moral. A não seriedade e respeito as previsões constitucionais ocasionaram de normas específicas, que na verdade tornam-se manuais e tradutores do que é óbvio e buscado em um Estado Democrático de Direito.

 

                        Lógico que sem tem ciência da margem dada ao discurso e a interpretação perante os textos normativos, considerando ainda esses graus dado de forma proposital para não se enxergar o nítido.

 

                        Uma outra influência, que se torna repetitiva, mas necessária, é transformação da sociedade e cenário econômico. Antes se vivia em meio rural, arreigados de tradições e confianças recíprocas. Podia-se falar em alternativa de escolha, autonomia da vontade e saber com quem se relacionava.

 

                        O poder de barganha era essencial, para alguns como no mundo árabe, mais importante do que a mera compra e venda. O cliente/freguês, como chamado, negociava em pé-de-igualdade com o comerciante. Além de conhecer e confiar naquele onde se comprava, o risco na negociação era totalmente igualitário. A equiparação entre o consumidor e fornecedor era total, espelhava-se uma verdadeira boa-fé, salvo raras exceções. 

 

 

VIII Identificando a Qualificação da Lei 8.078/90

 

                        Apesar  do objeto desse estudo concentrar-se quase que totalmente no artigo 4º da Lei 8.078/90, far-se-a uma pequena análise do artigo primeiro da mesma lei. 

 

                        O inciso XXXII do artigo 5º da Constituição Federal estabelece que o Estado promoverá a defesa do consumidor. A Lei 8.078/90 representa um mandamento constitucional, nos dizeres do Prof. Benjamim, ‘o CDC possui raízes na Constituição Federal’. Além desse momento, a Carta Magna prever também em seu corpo essa defesa através do art. 170, V CF e art. 48 das Disposições Transitórias.

 

                        O movimento consumerista brasileiro teve um maior destaque através de um encontro nacional das entidades de defesa do consumidor em 1987, o encontro de nº 07, fora propositadamente realizado em Brasília. Resultou daí algumas propostas discutidas em sua sede, as quais foram protocoladas junta a Assembléia Nacional Constituinte analisada pela Comissão Afonso Arino.

 

“Art. 1° O presente código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5°, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias.”[26]

 

                        Logo, de acordo com o texto da norma, o CDC é uma norma de ordem pública e interesse social, o que nos dizeres do Dr. Filomeno: “… equivale a dizer que são interrogáveis por vontade dos interessados em determinada relação de consumo, embora se admita a livre disposição de alguns interesses de caráter patrimonial”[27]

 

                        Como já visto inicia-se um Estado da Políticas Públicas, o qual procura determinados fins específicos, no caso em tela seria uma Política Nacional das Relações de Consumo.

 

Não se pode confundir a idéia de “norma-objetivo” com as “normas programáticas”, esta procura tratar da eficácia da norma e aquela trata do conteúdo da norma.

 

                        Repetindo o enunciado normativo do artigo 4º do CDC reflete uma norma-objetivo, cabendo ao Estado de acordo com o cenário da realidade passar ser um implementador de políticas públicas, o qual teria objetivo de uma obrigação de resultado. Vejamos este texto normativo:

 

“Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;

II – ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor:

a) por iniciativa direta;

b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas;

c) pela presença do Estado no mercado de consumo;

d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho.

III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;

IV – educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo;

V – incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, assim como de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo;

VI – coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e utilização indevida de inventos e criações industriais das marcas e nomes comerciais e signos distintivos, que possam causar prejuízos aos consumidores;

VII – racionalização e melhoria dos serviços públicos;

VIII – estudo constante das modificações do mercado de consumo.”

 

                        Sem embargo, o legislador quis estabelecer uma Política Nacional das Relações de Consumo, como visto no caput do texto normativo. Ficam estabelecidos através dos incisos e alíneas os fins, ou seja, os objetivos a serem alcançados. A existência desta norma-objetivo, dentro do micro-sistema jurídico que é o CDC, o importante é que estas estejam normatizadas, isto é, os objetivos da Política Nacional de Consumo estejam dentro do sistema jurídico, com seus respectivos efeitos determinado seus fins econômicos e sociais, além de que estas normas-objetivos servirão de instrumento interpretativo para todo o CDC.

 

                        Além do que interessa para Política de Consumo, através de suas normas-objetivo, o CDC também contém as tradicionais normas de conduta e normas de organização. Devendo estas últimas serem interpretadas teleologicamente, ou seja, não de acordo com a interpretação daquele que interpreta livremente os instrumentos isolados. Desconsiderando a discussão entre a ‘jurisprudência’ e a ‘jurisciência’.

 

                        Em consonância como o Professor Eros Grau, e visando o que objetivaria a Política Nacional de Consumo, serão destacados os três principais princípios inseridos no artigo 4º CDC, entretanto delimitando a este estudo  a questão da vulnerabilidade, quais sejam:

 

o        Vulnerabilidade (inc. I);

o        Harmonia dos interesses dos participantes da relação (inc. III);

o        Coibição e repressão eficiente de todos os abusos (inc. VI).

 

Antes de adentrar-se nos princípios em si, de maneira superficial tentaremos esclarecer a eterna discussão entre regras, princípios e normas. Pois como dito por toda a doutrina e o texto normativo que a vulnerabilidade é um princípio, isto trará uma grande repercussão na conclusão deste trabalho.

 

Após tomar lição do Professor Eros Grau ao explicar os valores e hierarquia dos princípios, regras e normas. Pode se concluir que não há de se comparar o princípio e a norma. O princípio é uma espécie de norma. Poderia fazer uma subclassificação entre o princípio e a regra, ambos como norma jurídica.

 

Ciente de que o princípio é de dimensão aberta, abstrata admitindo exceção na sua aplicação. Já regra é de aplicação específica, não admitindo exceção, ou seja, ou é ou não é, tem aplicação imediata ou não tem. Fácil de entender se fizer uma analogia comas regras dos tipos penais.

 

A autonomia privada do século XIX sob efeito do liberalismo exacerbado ampliava cada vez mais o controle da economia pelo mercado. O Estado de maneira alguma poderia intervir nas relações entre os contratantes. A idéia que o contrato fazia lei entre as partes e o Estado sem poder intervir nas relações refletiam em abusos de diversas maneiras.

 

Com o fim da primeira guerra mundial e conseqüente recuperação dos países participantes, o modelo burguês não mais se adaptava a realidade. Assim, o Estado com intuito de uma maior estabilidade e uma paz social para reconstrução, inicia intervir nas relações através de um dirigismo contratual, o qual coincide no período entre as duas grandes guerras. O Professor Nelson Nery Jr. acrescenta que:

 

“É nesses períodos de grande comoção econômica, aliada às vicissitudes políticas e sociais, que surge o fenômeno do dirigismo contratual, como uma espécie de elemento mitigador da autonomia privada, fazendo presente a influência do Direito Público no Direito Privado pela interferência estatal na liberdade de contratar”[28].

 

Alguns céticos como Ripert, chegaram a afirmar que não existiria mais o Direito Privado, haja vista o intervencionismo do Estado como Direito Público. Entretanto a idéia era equilibrar as esferas Privada e Pública, pois o Direito Privado é em quem ditava as regras e o Estado apenas fazia figura decorativa.

 

Esta intervenção começa configurar-se de maneira melhor quando são tratados os contratos onde o Estado era parte, ou seja, os contratos administrativos.

 

Divergências e dúvidas surgiam sobre qual regra se aplicariam a esses contratos quando não se tratasse de uma atividade de atribuição exclusiva do Direito Público. Ou seja, entre as regras do Direito Administrativo e do Direito Civil, prevalecendo o entendimento que aquele é que se aplicaria em qualquer relação, de qualquer natureza.

 

Esta intervenção em alguns momentos se dava através de um dirigismo contratual, o Estado praticamente forçava a contratação dependendo de seu objeto e conseqüente obrigação. Não haveria assim, manifestação de vontade das partes.

 

Lógico que para aqueles que louvam o Direito Privado a Intervenção do Estado nos contratos sempre fora um afronto a clássica teoria contratual, configurada pela autonomia da vontade e a liberdade de contratar. De início o antigo código civil, de 1916, regulou tanto a locação imobiliária como a locação de serviço (trabalho), pertinentemente face ao objeto destes contratos estes passarão a ser regulados por leis específicas sob um olhar necessário do Poder Público.

 

O Professor Frederico da Costa Carvalho Neto, em sua tese de doutorado pela PUC SP “Nulidade da Nota Promissória dada em Garantia nos Contratos Bancários”, foi bastante pertinente ao expor sobre tal tipo de intervenção,  vejamos:

 

“… O legislador percebeu a necessidade de intervir nessa modalidade de contrato que na verdade é peculiar não porque as partes sejam desiguais propriamente por uma ter e outra não a disposição de uma propriedade, mas porque a locação atinge duas finalidades, podendo se dizer que socialmente é bilateral, já que propicia renda deu lado e moradia, exercício de atividades, de outro.

Outro exemplo do código de 1916 é o contrato de trabalho regrado através das locações de serviços (arts. 1216 a 1229). Com o passar do tempo, o legislador foi criando leis esparsas sobre o contrato de trabalho até que o Governo Vargas consolidou essas leis com a CLT ”[29].

 

Ainda sobre posições céticas contra a intervenção do Estado, em específico nas relações contratuais, é de grande importância repetimos a conclusão do Dr. Nelson Nery, para dar um basta naqueles que sustentam uma possível ‘morte do contrato’, assim o professor expõe:

 

“É preciso que o direito não fique alheio a essa mudança, aguardando estático que a realidade social e econômica de hoje se adapte aos vetustos institutos com o perfil que herdamos dos romanos, atualizado na fase de codificações do século XIX. A propósito, o último grande movimento reformista do Direito Privado no mundo ocidental ocorreu com a recepção do Direito Romano, o que, convenhamos, não se coaduna com o dinamismo que a sociedade, em constante transformação, está a exigir da ciência do Direito.”[30]

 

Um outro meio de intervenção nas relações contratuais centrada na boa-fé e equidade entre as partes é através do poder judiciário e sua interpretação. A barreira da pregada liberdade de contratar e autonomia da vontade teve que ceder aos poucos face aos abusos que vinham surgindo.

 

Como bem afirma a Profa. Cláudia Lima Marques “… ao juiz não era permitido mais do que um controle formal de presença ou ausência da vontade de um consenso isento de vícios ou defeitos, nunca, porém um controle do conteúdo do contrato, da justeza e do equilíbrio das obrigações assumidas. De outro lado, à lei cabia uma função interpretativa, no máximo, supletiva da vontade”[31].

 

Logo, ao tratar com a massa após de ditados momentos históricos, a necessidade de intervir nas inúmeras relações já era mais do que necessário. Esta se inicia através de fiscalizações e imposição de certas quotas e preços. Evoluído o sistema a intervenção como já visto anteriormente se deu através de edições de leis limitadoras e controladoras de certas atividades exposta a massa, como por exemplo, os serviços públicos.

 

Além de que o Judiciário deixa de ser um mero espectador diante relações contratuais abusivas, as quais desviavam sua função essencial e iam de encontro à boa-fé nas relações. A justiça começa então intervir diretamente em caso de abusividades não só, em plano superior, a proteção da parte mais fraca como também o equilíbrio da relação. Este tipo de controle, bem como o controle através do Ministério Público será analisado à frente. Salientando lembrar que diferente da intervenção que se dava nas relações trabalhistas, só com a entrada em vigor do CDC em outubro de 1990 é que no Brasil iniciará uma nova fase de visão e intervenção contratual.

 

 

IX Vulnerabilidade

 

                        Não atendo-se as inúmeras definições dada  a vulnerabilidade, e também não a confundido com hipossuficiência, que tem-se  relativo aos aspectos processuais. A vulnerabilidade, como princípio, continua sendo um termo de definição totalmente ampla para aplicação no direito.

 

                        No CDC, como visto em seu texto, a vulnerabilidade foi eleita como princípio pelo legislador em seu artigo 4º, que trata da Política das Relações de Consumo. Interessante frisar, que o legislador no caput do artigo utiliza-se da expressão ‘relações de consumo’, e no inciso I que trata em específico o princípio da vulnerabilidade, utiliza-se deste reconhecimento no ‘mercado de consumo’.

 

                        Questionamentos surgem se a vulnerabilidade é presumida ou não.  Entendemos que a intenção do Código, foi sim de presumir a vulnerabilidade do consumidor de uma forma genérica, tentando desta maneira inibir e ao mesmo tempo educar o mercado em seu sentido amplo. Acresce ao fato que o reconhecimento da vulnerabilidade no mercado de consumo é pregado na norma como um princípio, e como foi visto, abstrai mais ainda o conceito da vulnerabilidade. O Professor Rogério Donnini, em recente aula dada no curso de especialização em Dir. das Relações de Consumo da PUC-SP definiu princípio como: “princípio geralmente é genérico, dando grande margem em sua definição”.

 

                        O Professor Doninni entende que os princípios por retratarem uma indefinição servem para norteia o sistema, cita inclusive o Professor Ricardo Lorezzeti ao afirmar que os princípios são normas que apresentam caráter explícito e implícito. Seriam estes utilizados quando não houvesse uma norma regulando determinada situação. Assim quando ele passa a ser explícito torna-se uma  Cláusula Geral, um exemplo é a Cláusula Geral da Boa-fé Objetiva.

 

                        Face isto conclui-se que pode-se utilizar o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor numa maneira difusa, ampla, ou seja,  presumindo o consumidor difusamente como vulnerável.

 

                        Ocorre que a presunção de vulnerabilidade num caso específico requer uma maior certeza para admiti-la.  Logo deve-se  ficar comprovado, verificado que em dada relação de consumo há uma parte vulnerável, e por que é vulnerável. Para isto, como em toda relação jurídica, a análise do caso específico é essencial para atingir um equilíbrio na relação.

 

                        Ter uma pré-compreensão, um conceito já formado de que o consumidor, em dada relação é vulnerável pode causar uma parcialidade, a qual pode resultar um atentado a harmonia e ao equilíbrio das relações. Que pese opiniões contrárias, é preferido um ideal de igualdade centrado numa harmonia e equilíbrio da relação, do que enxergar sem qualquer cautela através de uma presunção um parte mais fraca.

 

                        Ainda que, mesmo se não existisse a vulnerabilidade, em determinado caso prático, a legislação permite a busca do equilíbrio na relação de consumo harmonizando os interesses das partes. Por estes ideais também fazerem parte também da Política Nacional da Relação de Consumo.

 

                        Entende-se que apesar da louvável intenção do CDC proteger o consumidor a qualquer custo, face o poderio do mercado capitalista, hoje mais forte devido a globalização. Devemos focar o caso específico, ou seja o fato em si. Só assim poderá ser identificados os princípios a serem prevalecidos e as regras a serem aplicadas.

 

                        É questionado já neste momento se o legislador teve alguma intenção em específico ao utilizar em certo momento o termo ‘mercado de consumo’ e num outro momento ‘relação de consumo’, será tentado apresentar uma opinião sobre possível intenção ou não do legislador utilizar-se destes termos de forma proposital.

 

                        O Professor alemão Nobert Reich, citado pelo Prof. Newton De Lucca em sua obra, prefere utilizar-se do termo “submissão estrutural” ao invés de vulnerabilidade, o Professor Newton explica qual foi a intenção do professor alemão:

 

“Essa submissão estrutural – expressamente reconhecida pelo CDC com a expressão, igualmente feliz, de vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo”[32].

 

                        Propõe o Professor Newton que seria um atentado ao CDC entender uma pequena ou média empresa vulnerável, aplicaríamos o sinônimo ora definido, ou seja, submissão estrutural. Desta maneira poder-se-ia admitir-se que certas empresas também são vulneráveis no mercado perante grandes empresas. Identificando o porquê de tal submissão.

 

                        Não há como excluir do mercado de consumo uma alternativa de sistema regulatório que seria muito útil se funcionasse, o qual seria a concorrência. Ousamos afirmar com crivo do Prof. Newton que não há concorrência perfeita. Poder-se-ia questionar se a concorrência no mercado teria alguma influência no mercado de consumo e na Política das Relações de Consumo.

 

                        A resposta é óbvia, como fora visto o mercado funciona através de um ciclo econômico, onde neste a etapa final é o consumo. A concorrência no mercado também faz parte deste ciclo, ou seja, faz parte deste ciclo influenciando diretamente esta última fase.

 

                        Um outro questionamento, este feito pelo Professor Newton De Lucca, e já abordado neste trabalho, quanto a utilização do termo “mercado de consumo” no inciso-princípio. O professor questiona basicamente se a vulnerabilidade do consumidor existiria apenas no mercado de consumo. O mesmo responde afirmando que seria impossível desvincular a idéia de vulnerabilidade do mercado de consumo, pois a legislação regula apenas o consumidor dentro de seu habitat.

 

 

X Tipos de Vulnerabilidade

 

                        Apesar de a doutrina identificar inúmeros tipos de vulnerabilidade, como a Profa. Maura Gomes de Souza que em sua dissertação de mestrado elencou onze tipos de vulnerabilidade, ou seja, vulnerabilidade do tipo técnica, jurídica, política ou legislativa, biológica ou psíquica, econômica e social, ambiental, na publicidade (informação/publicidade), no contrato, nas práticas comerciais, e nas cláusulas abusiva e em juízo. Optaremos, sem total concordância e não diferente de grande parte da doutrina seguir o modelo proposto pela Profa. Cláudia Lima Marques[33].

 

                        A Professora Gaúcha divide a vulnerabilidade em três classificações, a técnica, a jurídica e a fática. De forma superficial definirá estes três tipos de vulnerabilidade a seguir, atentando-se ao fato que todas reflete situações práticas de fato:

 

a)       Vulnerabilidade Técnica –  Neste caso aquele que adquiri um produto ou serviço não detém de conhecimentos específicos sobre o bem a ser adquirido, esta situação pode ocasionar (caso concreto) um engano ao consumidor quanto as características e a utilidade do objeto da relação;

 

b)      Vulnerabilidade Jurídica (ou Científica) – Seria aquela vulnerabilidade ocasionada  pela falta de conhecimentos jurídicos, de contabilidade ou de economia. Este tipo de vulnerabilidade reflete muito nas questões contratuais;

 

c)       Vulnerabilidade Fática (ou Sócio-Econômica) – Este tipo de vulnerabilidade pode ocorrer em contraste com o parceiro fornecedor com quem se contrata, haja vista o poderio econômico de certas empresas, tais como aquelas que fornecem serviços essenciais.

A Professora Cláudia Lima com todo respaldo que lhe é peculiar, procurou fazer esta classificação, a qual é seguida por muitos. Ocorre que como observado, a classificação é decorrente de casos práticos. Logo a utilização destes tipos, para serem aplicados deverão ser especificamente configurados, a busca desta configuração fundamentará o modelo criado pela professora. Entendendo de forma contrário a ilustre professora, não que se falar em presunção, há sim de se verificar a situação específica e não um pré-julgamento.

 

 

XI Semelhanças entre  o Protecionismo do CDC e da CLT

 

                        Essa posição de vulnerabilidade do consumidor poderia ser comparada ao protecionismo empregado ao trabalhador.  Tanto no Direito Material como no Direito Instrumental do trabalho, o princípio protecionista é considerado em primeiro plano.

 

                        As regras no direito do trabalho são interpretadas mais favoravelmente ao trabalhador, isso se dá tanto na parte material como processualmente falando. O Professor Sérgio Pinto Martins, assevera que:

 

“Esse princípio é de âmbito internacional, não vigorando apenas no Brasil, mas em outros países. O processo do trabalho visa, segundo Galart Folch, assegurar superioridade jurídica ao empregado face de sua inferioridade econômica (1936:16). O processo é que irá adaptar-se à natureza  da lide trabalhista. O empregador sempre tem melhores meios de conseguir mais facilmente sua prova, escolhendo testemunhas entre seus subordinados, podendo suportar economicamente a demora na solução do processo. Já o empregado não tem essa facilidade ao ter que convidar a testemunha e não saber se esta comparecerá, com medo de represálias do empregador, e, muitas vezes, de não Ter provas a produzir por esses motivos.”[34]

 

                        Observa-se a semelhança do direito do trabalho com o direito do consumidor mais uma vez. Inicialmente sob o ponto de vista dos movimentos trabalhistas, o qual serviu incentivo ao movimento consumerista , mas também no Brasil as legislações.

 

                        Tanto consumidor como trabalhador necessita de certo protecionismo, pelos mais diversos fatores. Destaca-se o fator principal de posição vulnerável perante os fornecedores e empregadores.

 

                        O CDC é visto como um micro sistema jurídico, ou seja, além de sua transversalidade com os outros direitos, engloba tanto a parte processual como material. As leis trabalhistas, um pouco mais esparsas, têm como principal instrumento legal a CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas.

 

                        As semelhanças não se encerram, tanto fornecedor como o empregador são hipersuficiente face o consumidor e empregado. A inversão do ônus da prova tão discutida por nós na área consumerista, também pode ser utilizada diante as relações trabalhista em prol do trabalhador. Ousa-se fazer um breve comentário nesse momento, talvez o CDC ao utilizar-se dos termos vulnerabilidade e hipossuficiência subdividiu o que no direto laborativo era utilizado tanto para a parte processual como material.

 

                        Explica-se, alguns autores, talvez pela topografia do CDC, sustentam que a hipossuficiência se justifica no aspecto processual, pelo fato de ser considerada no artigo 6º, VIII do CDC a hipossuficiência para fins de inversão do ônus da prova.

 

                        Poderíamos chegar a uma prévia conclusão que a hipossuficiência tem um maior teor de regra, não dando margens a definições e interpretações, do que a vulnerabilidade, que como já discutido é um princípio.

 

                        Como o CDC a CLT é paternalista, ele é protecionista como um todo porque o legislador assim o quis. O protecionismo utilizado em prol do trabalhador serve, como já afirmado, tanto no âmbito processual  como no material, evitando assim margens e interpretações indevidas.

 

 

XII.Do Campo Científico ao Social

 

                        Ater-se em radical ao campo científico às vezes resulta numa fuga da realidade. Entende-se que o caráter científico é essencial, mas esse deve ser útil ao campo social, a realidade. Dessa maneira, pede-se licença para divagar entre o campo científico e o campo real, talvez com essências de pré-conceitos e compressões formadas.

 

                        Tratar do tema da vulnerabilidade do consumidor causou diversas viagens entre o puro cientificismo e a realidade do dia-a-dia. Não se tinha ciência de tal complexidade, tanto que o argumento mudou de lado diversas oportunidades. A discussão entre colegas e professores gerara mais questionamentos ainda.

 

                        A pesquisa na doutrina fora considerável, inclusive com opiniões de outras nacionalidades. Entretanto, as diversas lidas sobre o artigo 4º, inciso I, geraram diversas inquietações, entendia-se a intenção do legislador, mas não se entendida como seria dada a eficácia aquele texto normativo.

 

                        Não se tem dúvida que o consumidor de forma ampla é vulnerável.

 

                        E por que este é vulnerável? As respostas podem surtir de inúmeras maneiras. Difusamente é claro identificar que as práticas comerciais, como a publicidade se utiliza dessa fragilidade para conduzir as necessidades na grande massa.

 

                        Os contratos de adesão acarretam inúmeros momentos da submissão estrutural do consumidor, desde sua fase pré contratual até ao seu não exaurimento sob suas responsabilidades. Ainda nesses, o consumidor é vulnerável por não saber com quem contrata. A informação vaga não se traduz na sua mente, por tornar uma opção única, haja vista, não existir uma concorrência que permita o exercício sua liberdade de contratar e autonomia da vontade.

 

                        Destacam-se os serviços sob regime de concessão, onde há uma única opção. É caso de telefonia fixa, fornecimento de água e luz, e até mesmo os serviços prestado pelo próprio Estado.

 

                        Financeiras, bancos e cartões de créditos, os quais de maneira alguma faz enxergar de que maneira chegam-se aqueles cálculos eivados de anatocismo, tornando grande parte da população endividada  e sem menor esperança de sanar a dívida. E ainda, aqueles que não possuem dívidas pagam o preço dos inadimplente, ou seja, não há risco do negócio para tais empresas.

 

                        Entretanto, o grande boom do momento é a Internet. Essa vem causando ultimamente o maior inimigo do fornecedor, seja através do comércio eletrônico, mailing lists, vendas de cadastros de consumidores, dentre outras inúmeras condutas ilícitas. A submissão nesse campo é grande, não poderia nem questionar o não regramento desse tipo de condutas, pois mesmo se o tivesse o Estado não teria como fiscalizar.

 

                        Exemplos para justificar porque a presunção absoluta de vulnerabilidade do consumidor não se esgota. E esse sim faz jus ao título de vulnerável.

 

                        O que passa-se a questionar agora é como esse princípio terá eficácia em proveito da sociedade. O consumidor sabe que é vulnerável, o fornecedor sabe que o consumidor é vulnerável e o Estado idem.

 

                        Quero chegar no momento que não necessite da atuação dos Estado, seja administrativamente ou judicialmente. Apesar de grandes evoluções nesses campos, ou seja, melhores condutas dos fornecedores perante o consumidor, seja por efeito da norma ou da própria concorrência. As condutas abusivas ainda continuam.

 

                        O fornecedor onde poder usufruir da submissão estrutural do consumidor vai fazer. Quando sabem que foram abusados, o que é uma minoria, são ignorantes sobre seus direitos, além de que como antigamente a empresas mal falada pelo boca-à-boca  não funcionam em atuais proporções.

 

                        É essa aposta que o fornecedor faz, dentre inúmeros casos um ínfimo número de consumidor tentará reivindicar seu direito, e ciente de como funciona o sistema o fornecedor paga para ver o resultado, se subentender que perderá a demanda faz um acordo de imediato.

 

                        Apesar de grandes passos dado pelo movimento consumerista, seja pelo Ministério Público, Associações, PROCON’s, dentre outros ainda falta muito para que o mercado adeque-se e respeite o consumidor. Aliás, o consumidor tem que ter até cuidado ao associasse em determinadas associações e institutos, pois o que se ver hoje que ela se tornam reais prestadoras de serviço e se utilizam das mesmas práticas do fornecedores para angariarem sócios.

 

                        Em específico no âmbito judicial, a justificativa mor para que se consiga um deferimento numa demanda causada pela uma relação de consumo, não será porque o consumidor á vulnerável em primeiro momento, o fato em si é que dará resultado a demanda.

 

                        O porque disso, salvo melhor juízo, é que o Estado através do juiz não julgará: “defiro pois o consumidor é vulnerável”. Por exemplo, no caso de responsabilidade civil, onde no CDC a responsabilidade é objetiva. O consumidor só será feliz na demanda se deixar comprovado o dano, e principalmente o nexo causal. Lembrando que a responsabilidade objetiva atenha-se a conduta, e apenas a esta.

 

                        Por isso entendemos que a melhor justificativa para o CDC é o desequilíbrio da relação de consumo em primeiro plano.

 

                        Tornou-se já um hábito utilizar “vulnerabilidade” como adjetivo de consumidor, entendemos que torna-se perigoso tal associação. O medo é que, como já ocorre, estão usando toda luta e evolução do movimento consumerista para outros fins. Já fora afirmado em outra ocasião desse trabalho que sob um rótulo de que é vulnerável, causas impertinentes de responsabilidade civil lotam os juizados e tribunais. Ou seja, isso mancha a imagem do movimento, o qual começa ser visto com outros olhos.

 

                        Tivemos oportunidade de conversar com alguns funcionários de Call Center de empresa de produto alimentício. Fora informado que é rotineira a prática de consumidores ligando com produtos viciados por qualidade ou quantidade, ou não, utilizando-se de chantagens  em busca de dinheiro.

 

                        A nossa preocupação é que o equilíbrio na relação prevaleça se houve alguma lesão ao consumidor, que se repare. Mas todos esses casos analisados especificamente, identificando as causas e o porquê da vulnerabilidade. Até porque além seria um pré-conceito de por ser um fornecedor está errado em todos os momentos, isso afastaria todo um princípio básico de justiça.

 

                        Ademais, não será tão irrisória assim a possibilidade de um consumidor absolutamente não vulnerável realizar uma relação de consumo, dentro de um mercado de consumo.

 

                        Outro atormento é a questão da natureza jurídica desse imenso mercado de consumo. Não ousa-se tentar dar essa natureza, mas o definiria em um imaginário âmbito sustentado por inúmeros fatores externos e internos, de diversas naturezas, onde seria realizada as relações lato sensu, seja civis, comerciais e de consumo, assistidas em tese pelo Estado como sistema.

 

 

XIII. Algumas Conclusões

 

      i.        De imediato, entendemos que em uma relação de consumo não é impossível enxergar ausência de vulnerabilidade do consumidor face o fornecedor;

 

     ii.        Requer-se cautela para se identificar uma relação de consumo ou não, a mesma cautela deverá buscar uma vulnerabilidade absoluta;

 

   iii.        Sempre é questionado se a vulnerabilidade é quem justifica o CDC, prefere-se entender que uma busca de equilíbrio na relação e a harmonia entre os interesses das partes seria uma justificativa melhor. Caso não se entenda desta a maneira dever-se-ia identificar na Lei 8.078/90 um duplo perfil. Um desses seria uma Lei de Proteção e Defesa do Consumidor justificado pela vulnerabilidade (fundamentada no inciso XXXII do artigo 5º da Constituição Federal). Um outro perfil é enxergar na 8.078/90 uma Lei que regula as Relações de Consumo justificada pela busca de equilíbrio na relação consumidor-fornecedor e a harmonia de vossos interesses (fundamentada no artigo 170 e seu inciso 5º da Constituição Federal);

 

   iv.        A vulnerabilidade como presunção teria mais um efeito educativo-repressivo do mercado, do que uma norma que deveria ser aplicada a um caso específico. Compartilhando do entendimento do Professor Carlos Alberto Sales (Promotor de Justiça), diante uma concepção subjetiva de consumo: “ o conceito de consumidor não se obtém de forma estanque, mas na análise do caso concreto, sendo portanto um termo relacional”[35];

 

    v.        Pregar que há uma vulnerabilidade na massa de consumidores é mais fácil de justificar, sob o argumento que o consumidor a todo o momento está exposto a inúmeras práticas comerciais, seja através de publicidade, contratos de adesão, práticas abusivas, dentre outros. Ocorre, entretanto, que mesmo de forma difusa e/ou coletiva se houver um dano, sendo justificável por alguma vulnerabilidade, levado ao judiciário deverá ter um mínimo de nexo de causalidade verificada no fato em si que o consumidor fora vulnerável. Como sabido, através das ações coletivas ocorrerá o momento (liquidação/execução) de se provar o nexo de causalidade;

 

   vi.        Partindo-se para o casuísmo, que é inevitável, podemos identificar a submissão estrutural em pequenas e médias empresas face aquelas grandes empresas controladoras do mercado;

 

 vii.        A vulnerabilidade em si é uma questão totalmente subjetiva, cada caso é que irá determiná-la. Ao falar-se em Princípio do reconhecimento da vulnerabilidade a noção torna-se mais ampla, pois se a vulnerabilidade por si é indefinida e o princípio como norma é totalmente flexível, a união dois  ampliará mais ainda esta definição;

 

viii.        Apesar de tentativas, não atingimos a intenção do legislador que no caput do art. 4º do CDC fala em Política Nacional das Relações de Consumo, e o reconhecimento de uma possível vulnerabilidade no Mercado de Consumo, não entende se a relação de consumo estaria dentro do mercado de consumo, ou o inverso;

 

   ix.        Como visto, o consumo tem total ligação com a economia de mercado, integrando este como última fase do ciclo econômico. A idéia seria até comemorável se aquele não representa-se apenas um instrumento do ciclo, um figurante, ou seja, deveria pelo menos impor sua vontade, poder escolher, barganhar e sabe com quem contrata. Acrescenta o Professor André Ramos Tavares que: “Não há liberdade ou opção de escolha quando a vontade (e consciência) individual foi viciada ou menosprezada”[36];

 

    x.        Apesar de óbvio, torna-se a repetir que o mercado é quem dita as normas de conduta e social, de acordo com suas pretensões de lucro.

 

Utilizando-se mais uma vez das sábias palavras do Prof. Newton De Lucca, não se tem ciência se o presente trabalho se encerrou, se atingiu algum objetivo com este. A intenção principal desta monografia de maneira alguma fora agradar os consumidores, tampouco os fornecedores.

 

Conforme sempre requisitado pelos mestres deve-se esquecer os preconceitos, valores, religiões, pré-compreensões ou qualquer tipo de ranço que cause uma parcialidade.

 

Diante disso, fora buscado através de pesquisas, estudos e alguns questionamentos, fidelidade a ciência jurídica. Os objetos principais que delineavam o objeto desse estudo foram à norma, através da Lei 8.078/90 e o reflexo desta no campo prático.

 

Notou-se que não só a doutrina nacional como a estrangeira é escassa sobre o tema. Algumas dessas apresentavam notória imparcialidade, o que no momento era o que menos se buscava.

 

Em qualquer momento se for indagado que o consumidor é vulnerável no cenário que definimos de mercado, não há dúvida quanto a resposta positiva. Inúmeros são os fatores e argumentos para sustentar a resposta. O que não se reconhece é que se em toda relação de consumo, o consumidor ali é vulnerável.

 

É mais do que notório que grande parte dos fornecedores seja através do dolo bom ou mau, abusam de sua práticas para atingir suas finalidades de lucro. Ao mesmo tempo em que infelizmente o CDC vem sendo usado indevidamente por alguns consumidores.

 

O que se tem a ousadia de propor é que cada caso deve ser analisado individualmente, requerendo-se cautela na presunção de que o consumidor é vulnerável. Não se requer grandes estudos para isso, é uma questão superficial, entretanto que deve ser verificada para que se atinja o objetivo da justiça.

 

Escolhendo-se alguns casos de relações de consumo, podemos observar que a causa principal de possível lide não será a vulnerabilidade em si, esta será um complemento. Ao se tratar de uma cláusula abusiva em um contrato, será verificada tal abusividade, e constatada se declarará sua nulidade sob um dos fundamentos da busca do equilíbrio contratual, busca do equilíbrio da relação.

 

Ao tratar um possível caso de responsabilidade civil, adiantando, causado pelo fato do produto ou serviço. Apesar da responsabilidade objetiva, permanece a demonstração do nexo e do dano, salvo exceções. Deste nexo causal e do dano é que sustentará uma possível condenação.

 

Um dos casos que se admite o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor de imediato, é quando a massa de consumidores estão sendo alvo de uma peça publicitária[37].  Essa prática realmente não tem como questionar a flagrante vulnerabilidade como primeiro argumento. Assim ter-se-ia a questão da vulnerabilidade em primeiro plano e a causa consequecial em segundo plano.

 

Ou seja, com exceção das práticas publicitárias onde a vulnerabilidade do consumidor é flagrante em primeiro plano, nos outros casos a vulnerabilidade será um acessório, um plus, para configurar melhor a causa de primeiro plano. O fornecedor por outro lado, dada determinada situação poderá até conseguir comprovar que determinado consumidor não é vulnerável, mas não é este o fator determinante da demanda, e sim algo outro principal, em que aquele inevitavelmente procurará provar à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do consumidor. Relevando-se um possível ônus invertido. Logo, outro fator que vulnerabilidade pode ainda ocasionar é uma justificativa para inverter o ônus da prova, mesmo assim se aliada a hipossuficiência.

 

É o que se vem sido demonstrado através das decisões judiciais, tanto nas primeiras instâncias como nos tribunais superiores. A vulnerabilidade do consumidor está sempre atrelada a um outro fator mais relevante. Ademais, como já afirmado, não se terá uma decisão contra o fornecedor apenas porque o consumidor é vulnerável. Não questiona-se as normas do artigo 4º CDC por não oferecerem sanções, haja vista como definido apresentarem uma categoria de política pública, princípio-programa ou ainda norma objetivo. Em outros dizeres uma norma sem sanção. Mas, dentre estas, boa parte apresentam uma implicação direta como, por exemplo, o inciso III do mesmo artigo, que implicará numa atitude, in casu, do juiz pronunciar-se com fundamento na busca da harmonia entre as partes, boa-fé (para ambos) equilibrar a relação através do seu poder-dever.

 

Conclui-se ainda, que o protecionismo hoje ao consumidor devido principalmente através da Lei 8.078/90 representa apenas uma fase no mercado. Não se tem dúvida que esse protecionismo ainda é necessário, poderia se dizer que se permanece numa caminhada, caminhada esta que terá um fim. Há de permanecer logicamente a regulação nas relações de consumo com todo o legado e vigência do CDC, mas o protecionismo tenderá a diminuir conforme o mercado se adequa a essas novas tendências. O Consumidor de hoje já apresenta um perfil de insatisfeito, educado pelo CDC. Pode se dizer que o consumidor atual é mais sofisticado, sensível ao preço, tem menos tempo a perder com essas relações  e prioriza a conveniência.

 

Além disso, o consumidor de hoje não é mais sensível a marcas fortes, são menos fieis, sempre insatisfeitos e apresentam um alto grau de expectativa em relação aos serviços[38] e produtos.

 

Por fim, questiona-se se quando representado através das demandas coletivas lato sensu, essa característica de vulnerável (excetuando-se a idéia de hipossuficiente) em sede de jurisdição no campo processual permaneceria? Há opiniões divergente sobre a dúvida, inclusive questionando se persistiria a vulnerabilidade em uma Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público.

 

É buscada a todo o momento uma racionalidade lógica. Longe de comparações, Sócrates em sua apologia escrita por seu fiel seguidor Aristóteles fora condenado por questionar a racionalidade de alguns atenienses em seus labores. Não ousa-se a questionar a intenção do legislador ao por no CDC a vulnerabilidade como um princípio. Apenas é estudado como essa vem sendo aplicada na prática, e quais efeitos para a sociedade.

 

“Não, correr de novo não é exatamente o que importa. Primeiro porque é muito difícil saber o que é possível ou não. Meu sonho é que um dia eu consiga melhorar tanto minha condição, que eu  possa voltar fazer minha escolha. Voltar a ter a capacidade de escolher é daquelas dádivas às quais não damos valor. Mas é o que faz a vida valer a pena isso é o principal para todo ser humano.” (Zanardi)[39]

 

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* Doutorando em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP Especialista em Direito das Relações de Consumo pela PUC-SP. Assessor Jurídico do TJRN. Professor do Curso de Pós Graduação da Universidade Católica de Santos. Professor do Curso de Pós Graduação da Universidade Potiguar – UnP

 



[1] Questionamento/posicionamento levantado na aula do dia 10/08/2004 deste curso de mestrado.

[2] Interessante lembrar que este ideal de igualdade surge de questionamentos inicialmente de Sócrates e seguido por Aristóteles, diferentes do que muitos vêm pregando que a origem seria do Direito Alemão.

[3] Fase de Kelsen da Teoria Pura do Direito.

[4] Melo, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico (plano existência), 1998.

[5] Souza, Maura Gomes de Relações Jurídicas entre Fornecedores e Consumidores. Confronto ou Harmonização nas Decisões Jurídicas Brasileiras – Vulnerabilidade do Consumidor. p. 42.

[6] Idem p. 53.

[7] Idem.

[8] Grau, Eros Roberto. Interpretando o Código de Defesa do consumidor; algumas notas.Revista Direito do Consumidor  nº05, p. 183.

[9] Idem.

[10] Idem.

[11] Calsamigla, Albert.  Eficiencia y Derecho.

[12] Grau, Eros Roberto.  A Ordem Econômica na Constituição de 1988. p. 46-47.

[13] Ghestin, Jacques,  Traité de Droit Civil – Le Obligations – Le contract, LGDJ, Paris, 1980, p. 90-91. Apud Grau, Eros Roberto.  A Ordem Econômica na Constituição de 1988. p. 47. (Tradução básica, sem critérios: “O que justifica esse esforço de qualificação, não obstante sua dificuldade, é a necessidade de a ela se haver recurso afim de intentar sistematizar o regime das regras que constituem a ordem econômica pública. As regras que dizem respeito à proteção de determinadas categorias de pessoas não podem, sabidamente, ser submetidas ao mesmo regime ao qual o são aquelas de ordem pública de direção. Inicialmente, se uma regra imperativa tem o intuito de proteger uma das partes em detrimento da outra, nos parece difícil de conceder a esta última a ação de anulação. Vimos também que a ordem pública de proteção constituía um minimum aos quais restaria sempre aos contratos a possibilidade derrogatória, à condição que seja em favor da parte protegida: tal princípio é evidentemente inaplicado à ordem pública de direção, que visa a imposição de uma política econômica e social. Finalmente, é lógico permitir sua obtenção uma vez que a proteção não se faz mais necessária: tal renúncia só se verá concedida para a ordem pública de direção.”

 

[14] Grau, Eros Roberto.  A Ordem Econômica na Constituição de 1988. p. 58-59.

[15] Eros Grau, em comunicação apresentada no “Seminário Internacional de Direito do Consumidor”, realizado na cidade de São Paulo, no período de 24 a 27 de setembro de 1990, citado por Benjamin.(ob. Cit. P.26).

[16] Bourgoignie, Thierry, O conceito Jurídico de Consumidor. Revista Direito do Consumidor nº 02. p. 07.

[17] Bourgoignie, Thierry, O conceito Jurídico de Consumidor. Revista Direito do Consumidor nº 02.

 

[18] Nobert Reich

[19] Filomeno, José Brito. Manual do Direito do Consumidor.

[20] De Lucca, Newton.  Direito do Consumidor, p. 132.

[21] Idem p. 88.

[22] Bis in idem p. 89.

[23] Idem.

[24] Dados obtidos através de aula dada pelo Prof. Vítor Morais de Andrade no 3º ano da graduação de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde tivemos oportunidade de prestar assistência acadêmica em 19 de fevereiro de 2005.

[25] Salles, Carlos Alberto de. O Direito do Consumidor e suas Influências sobre os Mecanismos de Regulação do Mercado. Revista Direto do Consumidor nº 17, p. 85-86.

[26] Lei 8.078/90, CDC.

[27] FILOMENO, José Geraldo Brito,. Código de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto, 7ª ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.

 

[28] Nelson Nery nior,  Código de Defesa do Consumidor Comentado pelos autores do Anteprojeto, 7ª Ed., 2001, cit. p. 446.

 

[29] Frederico da Costa Carvalho Neto, Nulidade da Nota Promissória Dada em Garantia nos Contratos Bancários, Editora Juarez de Oliveira, São Paulo, 2004, p.28.

[30] Nelson Nery nior,  Código de Defesa do Consumidor Comentado pelos autores do Anteprojeto, 7ª Ed., 2001, cit. p. 449.

[31] Cláudia Lima Marques, Contratos no Código de Defesa do Consumidor – O novo regime das relações contratuais, 4ª Ed, São Paulo, RT 2002. P.208.

[32] De Lucca, Newton.  Direito do Consumidor, p. 183.

 

[33] Marques, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, RT 4ª Edição.

[34] Martins, Sérgio Pinto. Direito Processual do Trabalho, 15 ªEd., Editora Jurídicos Atlas, São Paulo 2001, p. 65.

[35] Salles, Carlos Alberto de. O direito do consumidor e suas influencias sobre os mecanismos de regulação do mercado. Revista Direto do Consumidor nº 17, p.92.

[36] Tavares, André Ramos.  Direito Constitucional Econômico Brasileiro. p. 188.

[37] Entendendo essa no seu plano lato,ou seja, informação,  proposta, oferta, anúncio, dentre outros.

[38] No Brasil atualmente o setor de prestação de serviço representa 55% do PIB.

[39] Italiano, 35 anos, 14 anos em pista de alta velocidade, Bicampeão Mundial de Fórmula Indy. Em 2001, no GP da Alemanha, teve seu carro atingido por outro a 320Km por hora. Sobreviveu, porém, teve suas pernas amputadas. (Fonte: aula ministrada ao curso de Administração Hospitalar da Faculdade São Camilo, em 17/02/2005 pela Professora Daniela Camarinha)

Como citar e referenciar este artigo:
SILVA, Marcus Vinicius Fernandes Andrade da. A Vulnerabilidade do Consumidor Apenas no Mercado de Consumo?. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-do-consumidor/a-vulnerabilidade-do-consumidor-apenas-no-mercado-de-consumo/ Acesso em: 29 mar. 2024