Direito do Consumidor

Autorização para desconto de prestações em folha de pagamento pelo consumidor-trabalhador. A norma prevalece perante o ordenamento jurídico?

RESUMO

O mecanismo de autorização dos descontos em folha de pagamento traz a questão quanto à possibilidade ou não do trabalhador revogar esta autorização. De modo que se faz necessário investigar a adequação da norma perante o ordenamento jurídico, eis que o tema adentra no cerne dos direitos do consumidor e, conseguintemente, no direito constitucional. Eis aí sua importância.

Palavras Chave: Direito do Consumidor. Empréstimos. Desconto em folha. Inconstitucionalidade. Superendividamento.

ABSTRACT

The discounts authorization mechanism in payroll, raises the question whether it is possible or not the worker revoke this authorization. So it is necessary to investigate the adequacy of the rule before the law, behold, the theme enters both consumer rights core, when the core of labor law. So it its importance.

Keywords: Credit. Consumer. Consumer Rights. Unconstitutional. Overindebtedness.

INTRODUÇÃO

As características de nossa economia impeliu o trabalhador a buscar meios de obter crédito para adquirir bens de consumo. Essa realidade levou o Estado legislador a criar uma modalidade de cobrança – alguns vêem como de pagamento – dos empréstimos feitos pelo trabalhador, diretamente em sua folha de pagamento.

Contudo, essa forma de debitar o valor das parcelas da dívida contraída é estabelecida como irretratável e irrevogável.

É justamente esta natureza “irretratável e irrevogável” que deve ser inquirida, se é ou não compatível com o ordenamento jurídico.

1. A NORMA PERANTE OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E CONSUMERISTAS

A Lei Ordinária 10.820/2003 trata da autorização dada pelo trabalhador para desconto de prestações em folha de pagamento. A Lei tem, atualmente, alterações trazidas pela Lei Lei nº 13.172, de 21 de outubro de 2015, que é a conversão da Medida provisória nº 681, de 10 de julho de 2015.

Convém salientar que a norma adentra nos limites das regras e princípios traçados pelo direito do consumidor e do direito do trabalho (entretanto, não só).

Deste modo, qualquer norma criada pelo legislador que afete diretamente os direitos do consumidor e os direitos do trabalhador, necessariamente tem de se adequar aos princípios estabelecidos nestes sistemas. Embora a natureza do CDC e da CLT seja de Lei Ordinária, hierarquia formal “equivalente” à Lei 10.820/2003, não podem conflitar com os princípios e regras constitucionais que as fundamentam. Isso porque tais leis (CDC e CLT) são subsistemas autônomos que estão em coordenação com o sistema constitucional. Estão, portanto, logo abaixo das normas da Constituição que os fundamenta. De tal modo que, quando se faz uma leitura das normas consumeristas, necessariamente deve-se fazer uma leitura sistêmica.

É proveitoso dizer que as normas constitucionais traçam uma dimensão proibitiva, voltada ao legislador para não editar leis que violem direitos fundamentais ou constitucionalmente garantidos, e uma dimensão positiva, voltada também ao legislador para que crie leis que garantam a eficácia de tais princípios ou direitos. Deste modo, essas normas, quando subsistema da Constituição, são de ordem pública, quer dizer, não podem ser afastadas sequer pela vontade das partes que são destinatárias destas regras.

Saliente-se também, e já dissemos acima, que tais normas, conquanto subsistema da Constituição são de ordem pública, quer dizer, não podem nem mesmo ser afastadas pela vontade das partes. De fato, normas de ordem pública existem em função da importância do fato no seio da sociedade.

Assim, por exemplo, os princípios constitucionais como o piso vital mínimo, dignidade, pobreza (erradicação desta), informação, são fundamentos diretos das normas estabelecidas no Código de Defesa do Consumidor e da Consolidação das Leis do Trabalho. Podemos citar, ainda, outro princípio: o reconhecimento da qualidade de hipossuficiente do consumidor; este princípio impede a criação de normas que estabeleçam situações nas quais o consumidor seja exposto a práticas abusivas ou que lhe coloque em posição de extrema desvantagem face ao fornecedor. Ou ainda, mais outro, agora a respeito do direito do trabalhador, qual seja o princípio da proteção que confere ao trabalhador a qualidade de hipossuficiente, proibindo também que a lei crie situações de extrema desigualdade ou desproporcionalidade entre ele e o empregador.

De tal modo, o ordenamento jurídico funda no princípio da proteção ao hipossuficiente (e.g., art. 1º, III, 3º, I, III, 5º, caput, LXXIV, LXXVI, 6º, 7º, IV etc, todos da CF/88), um dos pilares dos sistemas consumerista e trabalhista.

Aliás, o artigo 7º, IV, da CF/88, refere-se que há de existir respeito ao mínimo existencial para a pessoa, um piso vital mínimo, vedando-se que se lhe prive do mínimo necessário para sobreviver com dignidade. De tal modo a regra constitucional impede a vinculação do salário para qualquer fim (a não ser exceção por ela mesma estabelecida, o que não é o caso!).

Não se pode deixar de dizer aqui que, por vezes (mas não apenas nesses casos), a precisão das pessoas em conseguir recursos econômicos para suprimento de necessidades imperiosas, pode ser a ruina econômica daquele que faz o empréstimo, ou ainda, pode ser um meio de enriquecimento ilícito daquele que vende o crédito.

À luz do Código de Defesa do Consumidor, por exemplo, é prática abusiva prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços (art. 39, IV), estabelecendo que tais cláusulas ou contratos abusivos para o consumidor são nulos de pleno direito.Apenas de passagem, aponte-se ainda o Código Civil, para o qual é vício do negócio jurídico (arts. 157 e 171, II), aproveitar-se da premente necessidade de alguém, fazendo-a se obrigar com dívidas/prestações manifestamente desproporcionais, sendo, por isso, anuláveis. Apenas para efeito de nota, diga-se que desconto em folha de valores destinados ao pagamento de cartão de crédito, também deva ser encarada com parcimônia!

2. A NORMA PERANTE OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E CONSUMERISTAS E O SOBREENDIVIDAMENTO

Vale lembrar também da questão do open credit society e o sobreendividamento.

Não é novo o conhecimento do tema; tendo por base a colocação do crédito no mercado como uma mercadoria de consumo, open credit society tem como expoente maior a história dos EUA e seu crescimento econômico baseado na cultura de consumo e fomento de tal ideal.

As instituições financeiras, nesta realidade econômica e social, lançaram mão de métodos cada vez mais ‘acessíveis’ para vender crédito, buscando ampla e abertamente o lucro, sem, contudo, importar-se com a realidade econômica do consumidor.

Diante de inúmeros (e cada vez crescente) casos de superendividamento (ou sobreendividamento, termo usado pela doutrina européia), devido a acontecimentos que sobrevenham aos consumidores e que lhes impeça de continuar honrando suas obrigações, inúmeros países, em especial os do continente europeu, começaram a criar mecanismos legais para proteger o consumidor de créditos oferecidos pelas instituições bancárias/financeiras.

Entre nós é o heróico Código de Defesa do Consumidor quem traça os limites para esse mecanismo de venda de créditos (além da CF). Não é demais lembrar rapidamente que fora objeto de discussões calorosas a aplicabilidade ou não do CDC face às instituições financeiras.

Convém, tocando de resvalo no tema, considerar um fato social que deve estar nas reflexões dos operadores do direito: a saúde do consumidor. Matéria de importantes estudos, a condição psicológica dos superendividados, que, em razão da vontade de honrar suas obrigações e a impossibilidade de fazê-lo, bem como sua bancarrota ou exclusão social, leva-os a um estado de depressão e outros processos psíquicos prejudiciais a sua própria saúde (inclusive pensamentos suicidas – ver estudos feitos por institutos europeus de defesa do consumidor).

Por fim, a questão do superendividamento não raro implica em ferir princípio que já relatamos, o mínimo existencial, que é o mínimo necessário para garantir a sobrevivência digna do consumidor-trabalhador.

Assim, prossigamos.

3. A NORMA CONFRONTADA

Uma das regras da lei em comentário é a de que os empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT poderão autorizar, de forma irrevogável e irretratável, o desconto em folha de pagamento ou na sua remuneração disponível dos valores referentes ao pagamento de empréstimos, financiamentos, cartão de crédito e operações de arrendamento mercantil concedidos por instituições financeiras e sociedades de arrendamento mercantil.

Poder-se ia estender a discussão sobre outros elementos da lei, contudo, fiquemos apenas com a questão proposta a natureza forma irrevogável e irretratável” de referida autorização.

Pelo que já se nota, a norma afronta diretamente os princípios elencados há alguns parágrafos atrás.

Não se pode negar o fato de quem é o destinatário dessa norma. É necessário notar (por mais obvio que seja), que o trabalhador que consome estes produtos financeiros elencados pela Lei (empréstimos, financiamentos, cartão de crédito, operações de arrendamento mercantil concedidos por instituições financeiras e sociedades de arrendamento mercantil), não deixa de ser um consumidor. E mais, é um consumidor-trabalhador, duas vezes hipossuficiente.

A norma, claramente, como vimos traçando até aqui, viola a principiologia do subsistema estabelecido pelo CDC, viola, conseqüentemente (ou primeiramente, fazendo-se uma análise vertical da hierarquia das normas), a própria Constituição Federal (fere o Código Civil também, conforme vimos alhures, considerando que estamos tratando de um ordenamento jurídico integrado).

Ante aos princípios vistos, como pode ser irretratável e irrevogável o desconto em folha? Para nós, não é possível.

O fato em si (irretratabilidade e irrevogabilidade) desta forma de pagamento não é possível, pois, em si mesmo, já torna a situação desigual, criando uma posição de extrema desvantagem (ainda que potencial) para o consumidor, uma vez que é feito diretamente na sua folha de pagamento, seu salário, seu patrimônio de natureza alimentar, seu piso vital, aquilo que garante sua dignidade, que visa a erradicação da pobreza.

Não se trata de relação empresarial, mercantil, ou relação de investimento de risco, mas de relação de consumo. Para nós, a instituição financeira tem outros meios de cobrar suas dívidas, também, assume o risco do negócio, o risco do mercado, sem esquecer a sua posição (inclusive sua capacidade econômica em face do consumidor-trabalhador) que já é de extrema vantagem, pensar de forma contrária seria criar mais uma vantagem a quem já possui a maior delas, a econômica, pois falamos de instituições financeiras, Bancos.

Mas, hipoteticamente, mudando a ótica, suponhamos que houve absoluta obediência ao princípio da informação e da publicidade proba (ou proibição de publicidade enganosa), e o consumidor-trabalhador contratou um empréstimo absolutamente consciente de que ele jamais poderá revogar ou se retratar dessa forma de “pagamento” da obrigação assumida, bem como inexista qualquer situação de necessidade insolvível na vida do consumidor que o impila a adquirir o ‘crédito’; neste caso, se poderia dizer que a regra estaria em acordo com a CF e o CDC? Seria caso de pensar que houve um contrato com absoluta lisura? Ainda assim, entendemos que se estaria violando o princípio fundamental da hipossuficiência do consumidor estabelecendo uma vantagem desigual em favor do estabelecimento financeiro, expondo o consumidor a uma prática abusiva ou, ao menos, lhe colocando em posição de extrema desvantagem, pelo mesmo motivo já exposto linhas atrás. A extrema desvantagem ou a posição desigual pode ser tanto atual quanto potencial, não havendo, o sistema, estabelecido qualquer exceção a uma delas.

Desta sorte, por fim, cremos que nos casos concretos, a referida norma poderá ser (e acreditamos que será, principalmente na atual conjuntura econômica da Nação), questionada.

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Como citar e referenciar este artigo:
SILVA, Elvis Rossi da. Autorização para desconto de prestações em folha de pagamento pelo consumidor-trabalhador. A norma prevalece perante o ordenamento jurídico?. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2016. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-do-consumidor/autorizacao-para-desconto-de-prestacoes-em-folha-de-pagamento-pelo-consumidor-trabalhador-a-norma-prevalece-perante-o-ordenamento-juridico/ Acesso em: 29 mar. 2024