Direito Constitucional

A Adoção da Súmula Vinculante no Sistema Judicial Brasileiro

A Adoção da Súmula Vinculante no Sistema Judicial Brasileiro

 

 

José Olindo Gil Barbosa*

 

 

1.       INTRODUÇÃO

 

Nos dias atuais, a discussão em torno da adoção da chamada súmula vinculante no sistema judicial brasileiro como instrumento de uniformização dos pronunciamentos judiciais de natureza jurisdicional, tem se mostrada bastante acalorada entre os juízes, advogados, bem como por todos os demais operadores do Direito.

 

Como se sabe, o objetivo primordial dessa adoção é oferecer efeito vinculante às sumulas emanadas dos tribunais superiores, para impedir que uma pendência judicial, em que o seu teor substancial já tenha sido objeto de discussão e decisão por parte do Judiciário, em diversos processos, seja novamente submetido ao crivo do juiz. 

 

As súmulas, que foram criadas em 1963, pelo então Ministro Victor Nunes Leal, por enquanto, obrigam apenas o órgão julgador que as emite a segui-las. Muitos magistrados, no entanto, proferem as suas decisões baseadas nelas. Entretanto, tramita no Senado Federal, Proposta de Emenda Constitucional de Reforma do Poder Judiciário, na qual se estipula a validade das mesmas para todos. Se assim não bastasse, a própria administração pública seria obrigada a seguir as súmulas emitidas pelo Supremo Tribunal Federal – STF, pelo seu efeito vinculante.

 

Foi a pretexto de resolver a repetição de processos exatamente idênticos, que se acenou com essa proposta das súmulas vinculantes ou precedentes de efeitos vinculantes, que valeriam para os casos porvindouros, obrigando os juízes e a administração pública a se submeter aos seus enunciados, que passariam então a ter força de lei.

 

A matéria, por tão polêmica que é, merece uma análise mais aprofundada por parte de todos os segmentos que constroem o pensamento jurídico pátrio.  

 

 

2.       A ORIGEM DO DIREITO SUMULAR

 

O Direito Sumular, como é cediço, tem aparecido como matéria curricular, o que denota a sua importância como ramo do Direito, hodiernamente. Ele é a própria ascensão da jurisprudência disseminada, por intermédio da sedimentação das decisões judiciais. Argumento muito forte tem o renomado e eminente mestre José Pereira Lira[1], quando afirma que o Direito Sumular tem formação no Direito brasileiro, que pode ser conferida, como se disse, ao Ministro Victor Nunes Leal, que em 1963, “com os seus companheiros da Comissão de Jurisprudência, no Supremo Tribunal, ousou, com autoridade para isso, dentro dos cancelos, e fora deles, no Pretório Excelso, um corajoso passo à frente, promovendo a criação da Súmula, de nítidas raízes brasileiras, sem cópia do stare decisis nem filiação a the restatment of the Law.”. Louvado no ornato vernacular “a lei propõe; a jurisprudência compõe”, Pereira Lira retrocede no tempo para localizar no ano de 1937 o marco primitivo da sua própria cruzada pela respeitabilidade da jurisprudência sumulada, descrevendo que ali estava acontecendo “a volta ao ‘empirismo jurídico’, informado nas mais puras fontes do positivismo, com a Escola Analítica de Jurisprudência, sob o comando de John Austin, aproveitando as conclusões do anti-escolasticismo e as tendências antifeudais e humanistas da chamada Escola da Culta Jurisprudência, e a formação tedesca da Escola da Jurisprudência de Interesses, para desembocar na Escola do Direito Livre, animada pelo espírito da livre investigação científica. (…) A Escola Realista Americana, indo além da Escola Sociológica Americana, principalmente com Oliver Wendell Holmes, gerou a convicção de que deve o jurista, antes de tudo, observar o comportamento dos juízes, dos Tribunais e dos cidadãos, para examinar a sua atividade no sentido do que fazem, e não do que deveriam fazer” [1] .

 

São estas as breves considerações sobre o nascedouro do Direito Sumular, que vem, sem dúvida, escalando importância a partir da segurança jurídica que oferece aos seus invocadores e a partir da complexidade do processo legislativo brasileiro. Tem como origem as mais repetidas decisões dos tribunais, que julgam as lides em última instância.

 

 

3.                 SÚMULA VINCULANTE: OPINIÕES FAVORÁVEIS E DESFAVORÁVEIS

 

As opiniões a respeito da implantação da súmula vinculante no sistema judicial brasileiro são as mais antagônicas possíveis. Por um flanco, vários operadores do direito, dentre estes, juízes, levados pela acumulação desenfreada de processos e trabalho, defendem a tese da adoção da súmula vinculante.

 

Em posição antagônica, estão aqueles que se opõem à essa adoção e advogam que o Estado tem o dever de atender, de maneira justa e integral, aos jurisdicionados, como garantia do seu exercício pleno do direito à cidadania, à absoluta prestação jurisdicional, bem como que o princípio da celeridade processual deve, como qualquer outro preceito, ser analisado em conjunto com os outros princípios, haja vista a necessidade de proporcionar uma correta prestação jurisdicional.

 

 

3.1 OPINIÕES FAVORÁVEIS

 

Os tribunais superiores, notadamente o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, tem recebido uma quantidade assombrosa de milhares de processos. Ano após ano esse número vem aumentando consideravelmente. Um número assim, sem dúvida, acarreta a qualidade da prestação jurisdicional, mesmo sendo ela emitida pelos mais conceituados magistrados da nação, dando vazão a decisões injustas, comprometendo, por conseguinte, a pacificação social, que é o objetivo maior do Direito.

 

Argumentam os defensores do efeito vinculante das súmulas que, na hipótese de aprovação pelo Congresso Nacional da Reforma do Judiciário e a implantação da súmula vinculante no direito pátrio, o problema do congestionamento do Judiciário estaria resolvido ou, no mínimo, atenuado.

 

Não se pode olvidar, contudo, que desde que a atual Constituição entrou em vigor, o Supremo Tribunal Federal, não vem publicando as suas súmulas, muito embora mais de uma centena esteja devidamente disponível para seguir seu trâmite até a edição.

 

 O Ministro Marco Aurélio de Mello, Presidente do Supremo Tribunal – STF, é um dos mais ardorosos defensores da implantação da súmula vinculante. Em entrevista concedida ao Jornal Gazeta Mercantil[1], ele advoga que “a súmula é a melhor forma de se divulgar os precedentes da Suprema Corte. Farei o que estiver ao meu alcance para que o trabalho já realizado pelos ministros da Comissão de Documentação seja editado”.

 

O ex-Ministro Paulo Costa Leite[1], do Superior Tribunal de Justiça, em palestra proferida aos membros da Câmara de Comércio Americana do Rio de Janeiro, afirmou que “após estudar o assunto, não encontrei outro instrumento melhor do que a súmula com efeito vinculante para conter a excessiva litigiosidade da administração pública” Se apoiando em dados de levantamento feito no próprio STJ, concluiu ele que “ as nossas estatísticas demonstram que 85% das causas em tramitação têm um órgão da administração pública em um dos pólos processuais. E o que é pior, em 70% dessas causas houve vitória do particular sobre o ente público, que acaba recorrendo desnecessariamente”.

 

Diomar Bezerra Lima[1], por seu turno, advoga que a implantação da súmula vinculante se faz necessária. Diz ele que “com o respeito à jurisprudência sumulada do STF e dos tribunais superiores, busca-se efetivar a uniformidade jurisprudencial, indispensável a boa distribuição da justiça, representada pela estabilidade jurídica e a pronta solução das demandas, poupando-se as partes de ônus injustificáveis e de prestação jurisdicional que se poderia e deveria evitar. A consciência do dever de imprimir celeridade ao processo, sem sacrifício da segurança jurídica, por si só já justificaria o acatamento, pelos magistrados das instâncias inferiores, aos precedentes judiciais como forma de solucionar rapidamente o litígio. Se, contudo, à orientação fixada pelos tribunais superiores são recalcitrantes e não se curvam, espontaneamente, os juízes, no cumprimento do dever de ‘velar pela rápida solução do litígio’ (art. 125, II, do CPC), que se criem, pela via legislativa, os meios adequados à consecução desse objetivo, e a súmula com efeito vinculante cresce em importância e utilidade para a solução do grave problema que tanto tem gerado perplexidade com acentuado desprestígio ao Poder Judiciário diante da sociedade.”

 

O insigne mestre e magistrado Antônio Ferreira Álvares da Silva[1], entende que, com a implantação da súmula vinculante, nenhuma liberdade, seja a do jurisdicionado ou a do juiz, será tolhida em sua plenitude. Sustenta ele o seguinte: “Nenhuma liberdade é plena. A dos Juízes, como todas as demais liberdades, também não é. É preciso ficar bem claro que, até a vinculação, o Juiz tem plena liberdade para decidir e, depois dela, é também por um ato de liberdade que se submete à uniformização da qual ele próprio faz parte. A limitação provém do exercício de um ato de liberdade. Está, portanto, devidamente legitimada”.

 

Inúmeras outras opiniões favoráveis poderiam ser transcritas neste trabalho. Porém, os exemplos supra servem para bem mostrar a disposição dos que defendem esse instituto.

 

 

3.2 OPÍNIÕES DESFAVORÁVEIS

 

Os opositores à implantação da súmula vinculante argumentam que é o trabalho de juízes de instâncias inferiores que “areja” a nossa jurisprudência e dignifica o conceito da justiça. Advogam que os limites do exercício da função jurisdicional são a lei e a consciência jurídica, devendo esta última ser o norte do magistrado que, no seu labor deve extrair o sentido da lei, através da interpretação. Não deve o juiz, portanto, renunciar a essa atividade conciliatória da sua consciência jurídica com o objetivo da lei em nome da celeridade da prestação jurisdicional, pois esta não é o único nem maior valor a ser considerado em matéria judicial.

 

Dentre os mais ferrenhos opositores encontra-se o nome de Urbano Ruiz[1], ex-Presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes Para a Democracia. Para ele “ nos termos do art. 10 das Declarações da ONU, uma nação é tida como democrática na medida em que tem juízes livres, independentes. Isso não mais ocorreria a partir das súmulas, porque o magistrado não mais teria a liberdade de decidir. Os tribunais superiores já teriam feito isso por ele. Estaria suprimido, ainda, o duplo grau de jurisdição, porque as decisões se concentrariam nas cúpulas, que com antecedência tenham definido a solução do conflito”.  

 

Mordaz crítica também, no tocante à adoção da súmula vinculante no País, faz Ricardo Carvalho Fraga[1], Juiz do Trabalho, Secretário de Valorização Profissional da AMATRA RS – Associação dos Magistrados do Trabalho no Rio Grande do Sul: “A súmula vinculante aparece com novidades nunca antes vistas tais como: ‘cassará a decisão judicial’ e ‘determinará que outra seja proferida’. Acaso, a preocupação fosse com a celeridade processual, nem isto se obteria. Na verdade, revela-se com nitidez impecável que o objetivo é exatamente a concentração de poderes nas cúpulas do Poder Judiciário”.

 

O Presidente da Associação Internacional de Direito Penal (grupo brasileiro), ex-Ministro do Excelso Pretório e advogado Evandro Lins e Silva[1] faz uma viagem histórica bastante elucidativa ao início da Republica, trazendo à baila um caso que veio a ser julgado pelo Supremo tribunal Federal, nos anos 1890, e que bem retrata o que viria a ser a instituição da súmula vinculante em nosso País. Vejamos:

 

”Faz mais de um século e o assunto se tornou atual em face da anunciada reforma do Poder Judiciário. Nos albores da República, um juiz de direito do Estado do Rio Grande do Sul considerou inconstitucional e negou aplicação a uma lei estadual, que abolira certas características essenciais à instituição do júri, como o voto secreto e as recusas peremptórias, sem justificação das partes. Os desembargadores do Tribunal de Justiça pensavam de modo contrário, entendiam que a lei era constitucional e resolveram processar o juiz por crime de prevaricação, condenando-o à pena de nove meses de suspensão do emprego.

 

Rui Barbosa, autor que parece não ser muito lido ou do agrado dos nossos neoliberais, tomou a causa do magistrado, principiando por dizer que defendia também ‘dois elementos que no seio nas nações modernas, constituem a alma e o nervo da liberdade: o júri e a independência da magistratura’ (vide: Os Grandes Julgamentos do Supremo Tribunal Federal, de Edgard Costa, 1o vol. pp. 68 a 70).

 

À segunda parte da defesa, Rui, com sutil ironia, deu o título de ‘novum crimem e o crime de hermenêutica’, sustentando a tese da autonomia intelectual do juiz, para que não se converta ‘em espelho inerte dos tribunais superiores’, quando a sua existência seria ‘um curso intolerável de humilhações’.

 

Havia duas opiniões, na interpretação da lei, ambas proferidas ‘com a mesma sinceridade’ E Rui sintetiza: ‘a questão, em última análise, se reduz, pois, a isto: – um conflito intelectual de duas hermenêuticas, falíveis ambas e ambas convencidas’.

 

A condenação do juiz resultava do ‘delito de interpretação inexata dos textos’, e o tribunal superior não tem o dom da infalibilidade: ‘um parecer subalterno pode ter razão contra julgados supremos, um voto individual contra muitos.’

 

A controvérsia é o creme dos debates judiciários, em qualquer causa, onde os advogados sustentam posições antagônicas quanto ao direito das partes. Na aplicação da mesma lei varia a opinião dos juízes. E nos tribunais é freqüente haver votos vencidos, isto é, interpretações diferentes.

 

Rui ainda indaga qual o corretivo a ser dado ao juiz quando o Tribunal reprova o erro da decisão inferior: ‘A reforma da sentença? Ou a punição do juiz? Se, além da reforma da sentença houvesse de proceder a acusação do magistrado, uma jurisprudência tal negaria à consciência do juiz singular os direitos que reconhecesse, no seu próprio seio, a todos os seus membros’.

As imprecações de Rui Barbosa contra a liberdade de julgar dos juízes e tribunais inferiores, escritas em 1895, ecoam até hoje como uma advertência e uma lição.

 

O supremo Tribunal Federal absolveu o juiz, mas não decidiu sobre a constitucionalidade da lei em causa, porque mesmo se julgada constitucional teria havido erro na sua interpretação, mas não delito. O juiz voltou a considerá-la inconstitucional e foi novamente processado e condenado pelo Tribunal local. Embora considerando a lei constitucional, o Supremo absolveu de novo o magistrado, que mal a interpretou, mas não cometeu os crimes que lhe foram atribuídos, de ‘desobediência, ou de falta de exação no cumprimento dos deveres do cargo, o abuso de autoridade, ou a prevaricação ou outro que se averigüe segundo a prova de intenção do réu.’

 

Esse episódio revela que a tentativa de submeter os juízes à obediência, à submissão às decisões dos tribunais superiores não é nova. Vem de longe, é um resíduo castilhista dos começos da República.

 

Que são as súmulas vinculantes senão uma repetição dessa força obrigatória que se quer dar às decisões sumuladas pelos tribunais superiores?

 

(…) Amanhã, se um juiz decide contrariamente à sumula, acompanhando um ministro minoritário na sua elaboração, poderia ser punido pela sua atitude?

 

(…) Súmulas, sim, mas não vinculantes, e outras providências que dêem aos ministros do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores os meios de tornar possível e viável o seu funcionamento normal dos seus juízes“, arremata o insigne mestre.

 

 

4.       CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A adoção da súmula vinculante no direito brasileiro precisa ser bem mais amadurecida. Ela deve passar por um amplo debate junto a toda a comunidade do pensamento jurídico brasileiro, pelos órgãos representativos de classes tais como a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, a Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, dentre outras, sem o qual a sua adoção estaria fatalmente fadada ao fracasso, com o cometimento de injustiças às partes e o enfraquecimento substancial da justiça de primeiro grau.

 

 A simples alegativa de oferecer, com a adoção da súmula vinculante, uma maior celeridade aos feitos judiciais, com uma efetiva prestação jurisdicional, não deve prevalecer. É que, como sabemos, o que entrava o desenlace do feito são o apego demasiado a formalidades e o nosso infindo sistema recursal. Entretanto, sabemos também que clara e aberrante é a insegurança social que deriva da demora da prestação jurisdicional e a adoção da súmula vinculante, desde que bem estudada e debatida, poderia muito bem vir a desafogar o judiciário das demandas repetitivas, contribuindo, dessa maneira, de modo eficaz para atenuar graves carências e acarretar maior segurança, certeza e celeridade a um das divisões estatais que, de agora em diante estará a desempenhar decisiva participação nos destinos da humanidade.

 

É o nosso entendimento.

 

 

 * Juiz de Direito no Estado do Piauí, pós-graduado em Direito Processual e Direito Processual Civil.

 

 

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Como citar e referenciar este artigo:
BARBOSA, José Olindo Gil. A Adoção da Súmula Vinculante no Sistema Judicial Brasileiro. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/a-adocao-da-sumula-vinculante-no-sistema-judicial-brasileiro/ Acesso em: 28 mar. 2024