Direito Constitucional

Vitaliciedade e STF

Vitaliciedade e STF

 

 

Francisco César Pinheiro Rodrigues*

 

 

 

Um bacharel em Direito, que conheci de passagem e só pôde estudar depois de maduro — portanto mais crítico que seus jovens colegas — protestava e perguntava-me, revoltado com as declarações de dois magistrados em alta posição: “Eles são benevolentes demais com os bandidos do colarinho branco!” Não se preocupam com a impunidade! O que pode fazer o país para se livrar deles?”

 

No caso, paradoxalmente, o “se livrar deles” não se referia aos réus ou suspeitos de desvio do dinheiro público, mas aos próprios magistrados. Sua indignação relacionava-se com a recente proibição das algemas, no entender dele, uma “colher de chá” — a proibição — que “pode até ser legal — “quem sou eu para argumentar em contrário?” — mas que está em desacordo com o forte sentimento popular”. E indagava: “Até que ponto um tribunal máximo pode pairar na estratosfera, desprezando o sentimento natural de uma nação? O impeachment não dá para ser aplicado nesses casos em que o país, quase inteiro, quer uma coisa, e dois, três ou quatro querem o oposto? A opinião do povo não vale nada?!” As palavras não foram exatamente essas — não havia, claro, gravador —, mas as aqui digitadas representam perfeitamente a essência de sua revolta. Espero que não repita sua opinião no Exame da OAB, porque se o fizer será reprovado.

 

Sua indignação, real e expressa com franqueza excessiva — em linguajar bem distante daquilo que lhe foi ensinado no curso jurídico — dá margem a algumas reflexões que não constam dos manuais de Direito. Nem mesmo das discussões acadêmicas porque, antes das recentes entreveros sobre algemas, “grampos” e invasão de escritórios de advocacia, a autoridade intelectual do STF raramente era contestada. E quando o era, a crítica era revestida de enorme diplomacia, com preocupação máxima de não ofender os ministros. Não mera conseqüência do medo do crítico ser “perseguido” futuramente em algum julgamento no qual fosse parte interessada, hipótese considerada remotíssima. A diplomacia era motivada por um real respeito intelectual e moral à tradição do STF e seus titulares. De modo geral, o crítico encerrava sua crítica com um erguer de ombro, como que admitindo que, no final das contas — “quem sabe?” —, poderia ser ele o errado, não o Supremo.

 

Mesmo os ministros de forte personalidade — Nelson Hungria, Aliomar Baleeiros, Moreira Alves, entre outros, não despertavam celeumas e desafios. Eram, acima de tudo, respeitados. Operadores do Direito, mais velhos, certamente lembram-se da sensação de quase veneração intelectual que os invadiam ao ouvir nomes tais como Nelson Hungria, Orozimbo Nonato, Hannemann Guimarães, Aliomar Baleeiro, Hermes Lima, Evandro Lins e Silva, Victor Nunes Leal e, recentemente, inúmeros outros, tais como Sidney Sanches e Carlos Velloso. A maioria dos ministros mais recentes também inspira respeito, mas não há dúvida que nosso grande Tribunal já não é visto, no seu conjunto, com a aprovação quase unânime de poucas décadas atrás.

 

Logo após a “Revolução”, ou “Golpe” de 1964 — direita e esquerda têm sua nomenclatura preferida — o Mal. Castelo Branco foi procurado pelo presidente do STF. O magistrado — salvo engano, o Min. Ribeiro da Costa — propôs que, a partir daquele momento, ações judiciais que implicassem qualquer aumento de remuneração dos juízes seriam julgadas pelo Senado, afastando qualquer suspeita de parcialidade. Castelo Branco rejeitou de pronto a idéia, dizendo confiar totalmente na imparcialidade dos ministros, tal o respeito que inspirava o STF. Poucos sabem ou lembram-se disso.

 

Ainda ao tempo do referido marechal, em pleno regime de exceção, um jovem juiz paulista, trabalhando no interior, Dr. Antonio Carlos Alves Braga — que se tornou depois um dos maiores vultos da magistratura brasileira — concedeu mandado de segurança contra a apreensão sumária de gado — “para a Revolução” — sem as formalidades legais. Essa “excessiva” independência de um “mero” juiz do interior despertou a ira de um oficial de alta patente que foi, pessoalmente, expor ao magistrado a necessidade da apreensão imediata do gado naquela comarca. O juiz o recebeu mas manteve sua decisão, dizendo que, pelo que sabia, as leis continuavam em vigor.

 

O militar saiu indignado, prometendo represálias, e o juiz chegou a pensar que poderia ser cassado. Perderia o cargo, era quase certo. Sua independência pagaria alto preço: a expulsão de uma profissão que amava acima de tudo. Preparou o espírito da esposa quanto à provável e radical mudança de vida. Já houvera cassações de magistrados suspeitos de idéias esquerdistas. No entanto, algum tempo depois o juiz recebeu um ofício, ou carta, do Mal. Castelo Branco, cumprimentando-o pela firmeza no cumprimento da lei e explicando que o oficial que o acusava sofrera uma repreensão, ou penalidade compatível com o ordenamento disciplinar.

 

Tal era, em 1964, o prestígio do Judiciário, pelo menos a nível pessoal. Temos, hoje, igual respeito pela Justiça?

 

A grande crítica popular, na área criminal, relaciona-se, certamente, com a alegada “impunidade”, principalmente a dos “grandes”. A comunidade, ou sua grande maioria, não entende como pode um cidadão após ser, por vezes, flagrado, filmado, fotografado, periciado e gravado cometendo um crime grave possa, mesmo condenado na primeira e segunda instâncias continuar solto, “passeando”, “sorrindo” e com a alta possibilidade de não cumprir pena alguma porque apresentou sucessivos recursos. Recursos que podem resultar em prescrição ou fuga. Fuga essa que só não ocorrerá se a condenação — produto final de tantos anos de arrastado procedimento —, for mínima, suave — cestas básicas, ou três salários-mínimos, por exemplo —, justificando o não-desaparecimento. Nesses casos, o réu não foge, apenas porque isso seria contraproducente. Agora, prisão concreta, real, mais ou menos longa, “nem pensar!”. Reação perfeitamente humana.

 

A comunidade, ou sua maioria, não aceita a interpretação, para ela “enviesada”, de que não é possível “segurar”, “garantir”, “reter”, os réus altamente qualificados economicamente porque a Constituição Federal só considera “culpado” aquele cuja condenação transitou em julgado, um evento perdido na névoa do futuro. Entende, com razão, que uma coisa é a classificação técnica de “culpado”; outra, o risco evidente da impunidade, ensejada pela grande demora em se chegar ao famoso “trânsito em julgado”. Um réu, se “novel sexagenário”, tem o máximo estímulo em protelar seu julgamento pelo STF porque, se for condenado, a condição de setuagenário lhe permitirá vantagens, em termos de redução de pena e outros benefícios. A concessão dessas vantagens leva em conta a idade do réu quando da condenação final, não a idade que ele tinha quando cometeu o crime. E pode até ser que um enfarte — raio que não avisa quando vai cair —, o livre da vergonha do cárcere.

 

A comunidade — inclusive a jurídica, claro —, sabe que quando o réu está preso, seu processo termina mais depressa. Há prioridade de julgamento em todas as instâncias. Aí a comunidade inconformada pergunta: “Por que não prender, “segurar”, o acusado, quando a prova contra ele é bem robusta — juízo de probabilidade — como garantia de execução da possível pena, evitando tanto o perigo da prescrição quanto o da fuga?” Houvesse prioridade total de processamento e julgamentos de seu caso, o processo não demoraria muito e a justiça seria feita, condenando ou absolvendo. Coisa boa até para o réu, se ele está sendo processado injustamente. “Limparia” rapidamente o seu nome.

 

A Constituição não proíbe a prisão preventiva. Proíbe apenas, como é acaciano, o rótulo de “culpado” antes da decisão transitada em julgado, explicação perfeitamente dispensável em um texto legal. Se a justiça, nos crimes do colarinho branco, fosse rápida, a comunidade não se importaria muito com a ausência de algemas e outras, “concessões” ao réu. Pensaria: “Eles não perdem por esperar… Logo, logo, serão julgados…” Como não confiam na punição efetiva desses réus expressam a frustração com compensações “humilhantes”: algemas e camburão.

 

Abordemos, agora, a questão da vitaliciedade dos Ministros do STF. Só pensei, pela primeira vez, nesse tema-tabu motivado pelas indagações do advogado recém-formado e a celeuma relacionada com algemas e solturas de réus dados como privilegiados.

 

Todos sabem que a vitaliciedade é uma garantia não só para o juiz como também para a sociedade. O mesmo acontece com as demais garantias da magistratura. Fiquemos, aqui, apenas com a vitaliciedade. A mera possibilidade de um magistrado perder o cargo porque “atreveu-se” a decidir contra um alto membro do governo — ou seu protegido — já “envenena” sua liberdade de julgador. A coação moral vicia qualquer decisão. Quando um magistrado entra na carreira espera — e jura formalmente — aplicar a justiça conforme sua consciência, não conforme o medo que sente de ser despedido.

 

Alguém, fora do mundo jurídico, pode argumentar que a vitaliciedade, se é boa para o juiz e garante decisões livres do medo, tem a desvantagem de manter no cargo um juiz que pode até ser muito honesto mas péssimo julgador. No caso de desonestidade, se comprovada, o juiz pode perder o cargo por sentença. E se for um mau julgador, apesar de honesto, contra suas decisões cabem recursos, que corrigirão seus erros.

 

Já com as decisões de um tribunal máximo, de palavra final, nada pode ser feito para retificação de tendências totalmente contrárias ao sentimento natural, não só do “povão” como também das camadas mais esclarecidas da população. É agüentar e esperar sua aposentadoria compulsória aos setenta anos. Espera não difícil quando o magistrado é um sexagenário próximo dos setenta, mas difícil quando o juiz está na faixa dos cinqüenta. Não seria o caso de impeachment porque não haveria, em tais decisões, qualquer forma de suborno, ou grotesco crime formal. Se dois ou três magistrados da corte mais alta de um país qualquer do mundo ocidental se convencessem, sinceramente — mera conjetura exemplificativa — de que a Reforma Agrária seria a única solução para o progresso da nação — sendo inevitável e necessário um certo banho de sangue e descumprimento de decisões judiciais das “instâncias inferiores” —, a sociedade não teria como se livrar desse excesso de liberdade interpretativa, caso tais magistrados utilizassem apenas argumentos jurídicos. Diz a Bíblia que “quem procura, acha”. Isso vale também no mundo do Direito.

 

O mesmo se diga — como mera hipótese, em qualquer país — se um pequeno grupo de magistrados da instância máxima, hipoteticamente, fosse inimigo da pena de prisão, considerando que ela é inútil e não recupera ninguém. Muito menos os ricos, que nada vão aprender costurando bola de futebol na cadeia. “Melhor que fiquem fora, mesmo roubando um pouco, mas desenvolvendo o país”. Ou se tais magistrados considerassem que no país estaria havendo um excesso de criminalização da atividade política, exigindo uma santidade de ação incompatível com a realidade nua e crua de qualquer governo, que só pode administrar trocando favores, até mesmo em forma monetária.

 

O garantia constitucional da vitaliciedade é necessária e inevitável nas instâncias “inferiores”. Não, porém, no tribunal máximo de qualquer país. As nações têm o direito de se defender daqueles que pensam totalmente diferente delas. Para isso, seria o caso dos constitucionalistas pensarem qual a alternativa para a vitaliciedade na instância máxima. O mais cogitável é conferir um tempo certo de ocupação do cargo — por quatro ou cinco anos, digamos — com direito de recondução se sua atuação foi aprovada pelo mundo jurídico e a opinião da parte mais esclarecida da sociedade.

 

Na Corte Internacional de Justiça o juiz não e vitalício. É nomeado por um período de nove anos — talvez um exagero, provavelmente em razão da complexidade de julgar longos litígios, envolvendo dois países soberanos. Mas o juiz de Haia pode ser reconduzido ao cargo por igual período, se assim desejar e se desempenhou bem suas funções. Como esse tribunal decide em única e última instância, fez bem a ONU em permitir o revezamento das cadeiras. Seria o caso de o Brasil conjeturar alguma analogia com o critério da mais alta corte judiciária do planeta?

 

De uma conversa ligeira com um recém-formado em Direito podem surgir idéias revolucionárias, no bom sentido. Pensem sobre isso, senhores constitucionalistas.

(20-8-2008)

 

 

* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo. Website do autor: www.franciscopinheirorodrigues.com.br

                                                                                         

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Como citar e referenciar este artigo:
RODRIGUES, Francisco César Pinheiro. Vitaliciedade e STF. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/vitaliciedade-e-stf/ Acesso em: 29 mar. 2024