Direito Constitucional

Responsabilidade Estatal no Sistema Carcerário: contexto atual vivenciado por mulheres gestantes na Penitenciária Talavera Bruce do Estado do Rio de Janeiro

Resumo: O presente artigo científico versa sobre a temática constitucional em relação à Direitos Humanos e Responsabilidade Estatal no Sistema Carcerário, apresentando, como enfoque principal, as condições as quais encontram-se submetidas as mulheres, em período gestacional, no Estado do Rio de Janeiro. Procura-se expor a realidade e precariedade interna oferecidas às futuras mães, bem como seus respectivos filhos. Para isso, procurou-se discorrer brevemente sobre o sistema penitenciário feminino, desde sua origem, até os dias atuais. Por fim, apresentar relatos colhidos mediante entrevista realizada diretamente com as internas presentes na Penitenciária Talavera Bruce. Para tanto, o artigo científico desenvolveu primeiramente pesquisa bibliográfica: doutrina e legislação pátria, pesquisa exploratória e descritiva com foco na abordagem qualitativa-quantitativa e, por fim, pesquisa de campo.

Palavras-chave: Mulher. Direitos Humanos. Penitenciária. Gestante. Superlotação.

Introdução

O presente artigo contém como matéria “Responsabilidade Estatal no Sistema Carcerário: contexto atual vivenciado por mulheres gestantes na Penitenciária Talavera Bruce do Estado do Rio de Janeiro“. O interesse pelo objeto em tela versa sobre a percepção diante o descaso soberano exercido perante as mulheres grávidas que se encontram sob a tutela do Estado.

O artigo acadêmico possui como base apresentar a origem do sistema penitenciário feminino no Brasil, o papel da Igreja e o objetivo social que se buscava alcançar com a ressocialização das mesmas, bem como sua evolução e mazelas presentes até os dias atuais, possuindo como prisma o Estado do Rio de Janeiro.

Cumpre observar, que ao final do trabalho é possível constatar a negligência, social e estatal, presente na Penitenciária Talavera Bruce. Observação esta que encontra respaldo em informações concretas obtidas por intermédio de relatos colhidos diretamente em conversa com as internas grávidas e puérperas.

1 – Desenvolvimento.

1.1 – Sistema Penitenciário.

1.1.1 – Surgimento do Sistema Prisional Feminino no Brasil.

A previsão exposta na CRFB em seu artigo 5º, inciso XLVIII, impõe que a pena deverá ser exercida em estabelecimentos distintos, obedecendo a natureza do delito praticado, bem como a idade e o sexo do apenado. Assim sendo sinaliza quanto ao assessoramento na tentativa de reabilitação do condenado, buscando atingir a ressocialização do mesmo. (MORAES, 2013, p. 302)

Historicamente, a reforma penal foi criada no Brasil no início dos anos de 1940, mesma época em que começou a ser implementada a criação das prisões femininas. Com o advento do Decreto Lei nº 12.116 de agosto de 1941, o sistema brasileiro concretizou a necessidade de realizar a separação entre homens e mulheres dentro de seu sistema carcerário.

Artigo 1.º – É criada junto à Penitenciária do Estado e sujeita às leis e regulamentos em vigor, no que lhe for aplicável, um Secção destinada ao “Presidio de Mulheres”, subordinada à administração daquele estabelecimento.

Parágrafo único – Na Secção de que trata este artigo – instalada em imóvel situado nos terrenos da Penitenciária, especialmente adaptado – somente serão recolhidas mulheres definitivamente condenadas. (DECRETO LEI Nº 12.116/1941)

Conforme já exposto, a própria CRFB de 1988 prevê a necessidade de a pena ser desempenhada em estabelecimentos distintos e apropriados, levando-se em consideração a natureza do delito, a idade e o sexo do sentenciado. Contudo, cabe frisar que na prática essa determinação não encontra meios para ser exercida com sucesso, tendo em vista a superlotação da população carcerária.

Até esse momento, as mulheres sentenciadas se encontravam não só com a sua liberdade restrita, mas também a proteção destinada à saúde e a vida delas estavam condenadas. Antes da criação e efetivação de presídios femininos, as mulheres eram conduzidas a cumprir pena em cadeias mistas, isto é, homens e mulheres sentenciados em uma mesma cela. De acordo com Queiroz, (2015, p. 131), “Onde frequentemente mulheres dividiam celas com homens, eram estupradas pelos detentos e forçadas à prostituição para sobreviver”, e ainda relata que “Era destinado a criminosas, prostitutas, moradoras de rua e mulheres desajustadas. No entanto, o conceito de desajustadas, na época poderia significar uma série de coisas muito distante do desajuste.”

As primeiras penitenciarias femininas no Brasil, foram criadas sob o domínio de freiras que possuíam como objetivo “reajustar” a mulher na sociedade.

O termo “desajustado” reporta-se àquele indivíduo que não possui condições de se adaptar em sociedade, não segue padrões comportamentais impostos socialmente, e que apresenta distúrbios do caráter, bem como insuficiência física ou deficiência mental, as quais carecem de medidas educativas especiais.

Segundo o entendimento de Rodrigues e de Silva Matos (2012, p. 24) “Esse modelo de prisão feminina dos anos 40 acentuava (…) o sentido moralizador e restaurador do ideário doméstico, cultural e submisso da mulher (…).”

Dedicadas às prendas domésticas de todo tipo (bordado, costura, cozinha, cuidado da casa e dos filhos e marido), elas estariam aptas a retornar ao convívio social e da família, ou, caso fossem solteiras, idosas ou sem vocação para o casamento, estariam preparadas para a vida religiosa (SOARES; ILGENFRITZ, 2001, p. 58)

Isto posto, é possível concluir que o propósito dos institutos comandados pela Igreja Católica, não visava somente a prisão das mulheres condenadas, mas a domesticação das mesmas à medida que as freiras se dedicavam em modelar o caráter das internas ao que se entendia ser o devido “papel da mulher”.

(…) em 1955, a Penitenciária de Mulheres voltou a ser diretamente administrada pela direção da Penitenciária Central, a alegação de que as Irmãs do Bom Pastor não conseguiram controlar a indisciplina violenta e não dispunham de conhecimento das questões penitenciárias e administrativas necessárias para controlar 220 mulheres que estavam presas em um estabelecimento planejado para abrigar 60 mulheres (em 1953, ampliado para abrigar 120 presas) (CARTOGRAFIA DA DITADURA – PENITENCIÁRIA TALAVERA BRUCE, 2014, p. 2).

1.1.2 – Situação do Atual Sistema Prisional Feminino no Brasil e o Perfil da Mulher Presa.

O último Levantamento Nacional de Informações Penitenciária (INFOPEN) realizado em 2014 relata que o Brasil ocupa o 5º lugar no ranking dos 20 países com maior população de mulheres encarceradas. De acordo com o relatório, houve um acréscimo de 567% da população absoluta de mulheres encarceradas no sistema penitenciário entre os anos 2000 e 2014, chegando ao patamar de 37.380 mulheres.

No que tange ao perfil da população feminina presa no Brasil de acordo com seu perfil etário, temos que 50% das mulheres possuem entre 18 a 29 anos. Observando ainda as causas da prisão, é notório perceber que o sistema carcerário feminino abriga padrões de criminalidade muito distintos, se comparados com o do público masculino. O crime de tráfico corresponde em média 25% dos crimes pelos quais os homens respondem, ao passo que para as mulheres esta estimativa chega ao nível de 68% (DEPARTAMENTO PENITENCIARIO NACIONAL-MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2016).

Ainda de acordo com o levantamento realizado pelo Ministério da Justiça em 2016, nota-se que dentre os estabelecimentos destinados às mulheres, somente 34% apresentam estrutura adequada para gestante, isto é, menos da metade. Nos estabelecimentos mistos, esse número reduz para somente 6%. No que concerne à existência de berçários, apenas 32% das unidades femininas os possuem, enquanto que as unidades mistas acomodam meramente 3%.

Não se verifica na prática a construção de unidades prisionais específicas para mulheres, nas quais se possam vislumbrar o respeito às especificidades femininas e aos direitos humanos. (…) quase todas as penitenciárias femininas existentes estão localizadas em presídios “reformados”: ou eram penitenciárias masculinas, ou cadeias públicas, ou, ainda, prédios públicos em condições de desativação (RELATÓRIO SOBRE MULHERES ENCARCERADAS NO BRASIL, 2007, P. 20).

Em 2000 as mulheres representavam o equivalente à 3,2% da população carcerária no Brasil, já em 2014 passaram a representar 6,4% do total de prisioneiros (FIG. 1). Constata-se, portanto, o pleno despreparo do Estado em relação ao crescente número de mulheres presas, bem como a situação de vulnerabilidade em que se encontram.

Mediante exposto no Relatório sobre Mulheres Encarceradas no Brasil (2007, p. 15) “O perfil da mulher presa hoje é jovem, mãe solteira, afrodescendente e na maioria dos casos, condenada por envolvimento com o tráfico de drogas (ou entorpecentes).”

Em geral é gente esmagada pela penúria, de áreas urbanas, que buscam o tráfico como sustento. São na maioria, negras e pardas, mães abandonadas pelo companheiro e com ensino fundamental incompleto. (QUEIROZ, 2015, p.62).

A crescente inserção da mulher no mercado de trabalho, bem como o papel que passou a assumir perante à sociedade com a colaboração no desenvolvimento familiar, facilitou sua participação no mundo criminal, em consequência de que, segundo relatos, muitas entraram para o mundo do crime e envolveram-se neste meio por influência de seus namorados, maridos e companheiros. Com a prisão de seus respectivos parceiros, passam a se verem obrigadas a assumir o lugar que os mesmos possuíam no tráfico, para que continuem a prover alimento a seus filhos. Sendo este, um dos principais motivos que levam a maioria a estar presa hoje. Comércio que muitas ainda praticam dentro dos presídios para manter o vício.

1.1.3 – A Mulher Presa Gestante.

A CRFB/88, no caput do Art. 5º protege a vida como um dos bens jurídicos mais preservados pelo Estado. Continuando a leitura no texto constitucional, dentro do artigo supracitado, é possível observar em seu inciso III, a vedação à prática de submissão à tortura e a tratamento desumano ou degradante. Neste mesmo caminho, têm-se o inciso XLIX que assegura ao preso o respeito à sua integridade física e moral.

Ao observar a presença de grávidas dentro da população carcerária, nota-se com o disposto na Lei de Execução Penais, que é obrigação do Estado prover condições adequadas e saudáveis para o desenvolvimento da criança dentro do cárcere.

Observa-se que o período gestacional é fundamental para o bom desenvolvimento da criança ainda dentro do corpo da mãe. Ao negligenciar as condições básicas de saúde de sua interna grávida, o Estado penaliza outra vida desde sua origem. Sendo certo que o Estado possui não só o dever em propiciar uma vida digna, como também um ambiente estruturado e adequado, o qual possua capacidade de suprir as condições que dentro dele se fazem necessárias.

No entanto, as penitenciárias brasileiras vivem a depreciação temporal e social ocasionadas pelo descaso histórico. Se fora do cárcere são necessários anos de militância para garantir o direito das mulheres de serem vistas e ouvidas, atrás dos muros carcerários, suas vozes se tornam silenciosas. Muitas mulheres são penalizadas mais de uma vez, cumprindo sanção proveniente da sentença prolatada para seu crime e outras derivadas do esquecimento e indiferença social.

Ao analisar a LEP, nota-se disposto no art. 14, parágrafo 3º a proteção destinada diretamente à presa grávida ao assegurar “acompanhamento médico à mulher, principalmente no pré-natal (…)” o qual foi acrescido recentemente pela Lei n. 11.942 de 2009.

Ainda dentro desta vertente, encontra-se disposto no art. 89, da LEP, que as penitenciárias de mulheres deverão dotar de seção para a gestante. Contudo, conforme já dito, tais dispositivos não são aplicados à realidade. Ficando mais uma vez evidente o descaso e despreparo do Estado com as internas grávidas.

A maioria das detentas grávidas já chega grávida na cadeia. Algumas, já no fim da gestação, nunca passaram por um obstetra, pois eram pobres e desinformadas demais. Como em todo o país só existem 39 unidades de saúde e 288 leitos para gestantes e lactantes privadas de liberdade, na maioria dos presídios e cadeias públicas, elas ficam misturadas com a população carcerária e, quando chega a hora do parto, geralmente alguém leva para o hospital. Já nasceu muita criança dentro do presidio porque a viatura não chegou a tempo, ou porque a polícia se recusou a levar a gestante ao hospital, já que provavelmente não acreditou ou não se importou que ela, estava com dores de parto. Aconteceu, em alguns casos, de as próprias presas fazerem o parto, ou a enfermeira do presidio. (QUEIROZ, 2015, p. 74).

Assim sendo, confirma-se que na realidade os direitos básicos relacionados à saúde da mulher presa enquanto grávida, não são respeitados na prática. A negligência na realização do pré-natal é um problema grave presente nas penitenciárias, pois muitas delas, mesmo estando em estado gestacional avançado nunca tiveram acesso à atendimento médico periódico.

Segundo o Ministério da Saúde, é recomendável a realização de seis consultas durante a gestação e uma após o parto.

Desde o ano de 2011 é previsto que a mulher grávida a partir do 7º mês de gestação ou que apresente gravidez de alto risco poderá ter a prisão preventiva substituída por prisão albergue domiciliar (Lei nº 12.403 – Art. 318, IV). No entanto, a substituição é faculdade do juiz, o qual deverá ser convencido mediante laudo médico que ateste a condição de risco decorrente da gravidez da sentenciada em questão.

Alguns ativistas têm sugerido que as mães de bebês até um ano fiquem em prisão domiciliar, com tornozeleiras eletrônicas, enquanto amamentam. Assim a criança vive [Sic], em um ambiente mais saudável […]. Ao fim do período, a mãe voltaria a cumprir pena em regime fechado. Uma preocupação, porém, é a de que esse tipo de benefício levassem as presas a engravidar propositalmente. (QUEIROZ, 2015, p. 117).

No Estado do Pará, mais precisamente no Centro de Reeducação Feminina (CRF), relata Queiroz, (2015, p. 186), “uma presa declara a jornalista que estava grávida e havia perdido o bebê há aproximadamente dez dias e que, com isso, havia sangrado muito e, mesmo assim, não havia sido tomada nenhuma providência de cuidado e de consulta médica. Relatava estar (com muita febre e que provavelmente o feto estaria apodrecendo dentro dela) ”.

Não obstante, o Estado ainda nega, implicitamente, o direito à mãe em permanecer com a guarda da criança, posto que durante o decorrer do processo os fóruns enviam as intimações para o endereço que constam em seus arquivos. De acordo com relatório produzido pelas organizações: Pastoral Carcerária, Conectas Direitos Humanos e Instituto Sou da Paz, (2012, p.4), sem ter conhecimento da destituição do poder familiar, as mulheres condenadas não são informadas quanto a sua convocação para comparecer em juízo e manifestar seu interesse em permanecer com a guarda de seus filhos.

A ausência da mãe à audiência é interpretada pelo magistrado como desinteresse da mesma em manter o vínculo familiar com a criança, encaminhando-a então para o ineficaz e burocrático sistema de acolhimento institucional brasileiro de adoção.

[…] quando terminam de cumprir a pena, elas têm que pedir a guarda dos filhos de volta a justiça. Nem todas conseguem. Para provar-se capaz de criar uma criança, é preciso ter comprovante de endereço e de emprego. Esse é um salto muito mais difícil de ser dado pelas mulheres com antecedentes criminais. Quando um homem é preso, comumente sua família continua em casa, aguardando seu regresso. Quando uma mulher é presa, a história corriqueira é: ela perde o marido e a casa, os filhos são distribuídos entre familiares e abrigos. Enquanto o homem volta para um mundo que já o espera, ela sai e tem que reconstruir o seu. (QUEIROZ, 2015, p.77).

Assombrosamente, muitas mulheres perdem a guarda de seus filhos ao passo que estão presas, e outras várias perdem de forma permanente. Enquanto que as mães têm seus destinos traçados em varas criminais, o destino das crianças é decidido na vara da infância e juventude sem manifestação de sua progenitora.

1.2 – Direitos Humanos e à Saúde.

1.2.1 – Direito à Saúde no Brasil.

Faz-se necessário frisar que o direito à saúde no cárcere, ainda mais no que se relaciona à mulher, é tema novo dentro do atual cenário político e social. A criação e implementação de um plano de saúde específico para o sistema prisional só foi objeto de deliberação, por parte do poder público, mais de quinze anos após o reconhecimento da saúde como direito de todos.

A CRFB/88 em seu Art. 196 ao estabelecer que “a saúde é um direito de todos e dever do Estado (…)”, permite, portanto, assim o entendimento de que isso também se estende aos direitos das mulheres encarceradas. Havendo, portanto, a necessidade da implementação de políticas públicas de atendimento à sua saúde.

Ao iniciar o estudo sobre saúde feminina no sistema carcerário, é clara a precariedade de políticas públicas voltadas para esta parcela da população. Sendo a LEP precursora na garantia dos direitos à saúde nos estabelecimentos prisionais, uma vez que o período de regulamentação da mesma coincidiu com o momento em que a sociedade lutava por direitos sociais e abertura política, pois é saindo de um período ditatorial e deslocando-se para a construção de uma democracia que a LEP se regulamenta.

É certo que a mulher grávida necessita de atenção especial, uma vez que nutre outra vida dentro de si. Contudo, apesar de seu filho já possuir direitos desde o ventre de sua mãe, o Estado age com negligência a partir do momento que não disponibiliza seção destinada especialmente à estas mulheres e seus futuros filhos presos dentro do cárcere.

Desta forma, verifica-se que a partir do momento em que se pratica um crime, será necessário pagar com sua dignidade enquanto ser humano dia após dia ao cumprimento de sentença. E nos casos das grávidas, a dignidade de seus futuros filhos também é usurpada e utilizada como meio de “pagamento”.

Ainda com relação ao que dispõe a LEP, a mesma em seu artigo 120, informa que os condenados que cumprem pena em regime fechado ou semiaberto, bem como os presos provisórios, possuem o direito de obter permissão para sair do estabelecimento, mediante escolta, quando ocorrer a necessidade de tratamento médico.

Entretanto, tal acompanhamento não ocorre, uma vez que é alegado falta de profissional, de viatura e recursos que possam ser disponibilizados para a realização do transporte das internas. Desta forma, muitas das vezes as internas não possuem a possibilidade em realizar os exames temporais necessários ao decorrer da gestação. Sendo certo, que há relatos de mulheres soropositivas que tiveram a própria vida, bem como a de seu filho, colocadas em situação de risco, uma vez que o parto fora realizado normalmente sem que se observasse a necessidade do cuidado especial no momento do nascimento.

Na rotina das unidades prisionais as solicitações de escolta para atendimento de saúde competem com as escoltas para atendimento às exigências judiciais. Desta forma, então, realiza-se um juízo de valor para que se analise qual das demandas expostas no momento se apresenta como “mais importante”. Sendo assim, as mulheres presas não conseguem realizar tratamento médico continuado porque a ausência da escolta e de interesse institucional impossibilitam a frequência necessária, seja para garantir vaga, seja para garantir a preservação de sua dignidade.

Posteriormente à LEP, ocorre em 2003 um segundo marco das políticas sociais de saúde no sistema carcerário, a qual foi firmada a necessidade da organização de ações e serviços de saúde com base nos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde. Desta forma, foi-se criado o Plano Nacional de Saúde no Sistema Prisional, o qual amplia as diretrizes de saúde descritas anteriormente na LEP.

O objetivo principal do PNSSP é contribuir para o controle e/ou redução dos agravos de saúde mais frequente na população carcerária do país. No que diz respeito à mulher presa, o PNSSP, contribuiu para a redução dos impactos causados pela “invisibilidade” da mulher no sistema prisional.

Já em 2014, ocorreu um importante avanço direcionado aos direitos das mulheres que se encontram com sua liberdade restrita, uma vez que se criou a instituição da Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional (PNAMPE), a qual amplia o olhar sobre a população feminina encarcerada ao determinar prevenção de todos os tipos de violência praticadas contra elas.

1.2.2 – Direitos Humanos e a Dignidade da Pessoa Humana em Relação à Mulher no Sistema Carcerário.

O princípio da dignidade da pessoa humana encontra-se estabelecido no inciso III artigo 1º da CRFB de 1988, e foi introduzido como princípio fundamental, operando como auxílio de todo o ordenamento do Estado Democrático de Direito. Trate-se de um valor espiritual e moral inerente a todo ser humano, contudo não possui definição, visto que parte da premissa complexa em perceber quando está presente atos de “indignidade”.

[…] Princípio da dignidade da pessoa humana, não há como negar que uma definição clara do que seja efetivamente esta dignidade não parece ser possível, uma vez que se cuida de conceito de contornos vagos e imprecisos. Mesmo assim não restam dúvidas de que a dignidade é algo real, já que não se verifica maior dificuldade em verificar as situações em que é espezinhada e agredida. […] neste contexto costuma apontar-se corretamente para a circunstância de que o princípio da dignidade humana constitui uma categoria axiológica aberta, sendo inadequado conceituá-lo de maneira fixista, ainda mais quando se verifica que uma definição desta natureza não harmoniza com o pluralismo e a diversidade de valores que se manifestam nas sociedades democráticas contemporâneas. (SARLET, 2003, p. 108).

A dignidade encontra-se preceituada no Art. 5 da CRFB de 1988, sendo um direito irrenunciável e inalienável por ser conceituado como algo que é próprio do indivíduo.

Desse modo, ao debruçar-se, sobre a expressão “direitos humanos”, a proposta em tela, conduz-se a um conjunto de valores superiores compreendidos como elementos intrínsecos ao indivíduo humano e, portanto, pretéritos quando em comparação ao Estado, o qual não estaria concedendo algo, mas tão somente reconhecendo, sendo por seu caráter indispensável à vida humana, ou pela visão de universalidade, o relevante é a sua imposição e respeito por todos, onde quer que se encontrem. (COSTA e DIAS, 2013, p. 68).

Convém ressaltar a diferença entre Direitos Humanos e Direitos Fundamentais, e Sarlet apresenta de forma clara e didática tal diferença:

Em que pesem sejam ambos os termos (“direitos humanos” e “Direitos fundamentais”) comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo “direitos fundamentais” se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos” guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independente com sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram a validade universal, para todos os povos e tempos de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional). (SARLET, 2003, P. 34).

As condições humilhantes a que são submetidas as presidiárias no Brasil é de notório desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana e ainda aos direitos humanos. Motivando assim, a necessidade de aplicação correspondente a políticas públicas para que haja medidas que reduzam essas atrocidades, uma vez que a sentenciada não pode ter seus direitos básicos essenciais à saúde extintos enquanto cumprem suas penas, principalmente no que se refere às mulheres grávidas.

Ademais, além de não serem realizados exames médicos, os kits de higiene distribuídos são totalmente escassos, haja vista a superlotação penitenciária. Para ter acesso a produtos básicos de uso pessoal, como papel higiênico, creme dental, xampu e absorventes, as internas ficam limitadas à sua disponibilidade de suas famílias ou de entidades religiosas que se encarregam em levá-los nos dias de visita. As internas que não recebem visitas ou que não possuem famílias, o que não é exceção, passam o mês acumulando pedaços de pão para improvisar absorventes, uma vez que as doações recebidas não alcançam número suficiente para atender as necessidades de todas.

No ano de 2010, foi realizada a 65ª Assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU, 2010), na qual foram traçadas algumas normas relacionadas com o tratamento das mulheres presas, conhecido como “Regras de Bangkok”. Esse documento, reconhece a real necessidade de as mulheres receberem uma atenção diferenciada, representando um grande avanço na construção de diretrizes no atendimento das mulheres condenadas. O governo brasileiro participou das negociações de elaboração e aprovação da norma, no entanto, ela ainda não foi internalizada na legislação nacional, até o presente momento.

Em suma, as “Regras de Bangkok” procuram fazer com que haja uma maior aproximação da prisão do domicilio da detenta, além de um tratamento de saúde específico para a presa gestante dentro do sistema carcerário.

1.3 – Relatos da Pesquisa de Campo Realizada na Penitenciária Talavera Bruce no Estado do Rio de Janeiro.

Diante de todo o exposto ao longo do trabalho, necessário se fez estudar e compreender a legislação pertinente aos direitos das internadas durante o período gestacional. Para isto, foi realizada visita, afim de realizar uma análise atual das reais condições que a Penitenciária Talavera Bruce, unidade penal feminina, localizada no Complexo de Gericinó, no Estado do Rio de Janeiro oferece às suas internas durante este período.

A Penitenciária Talavera Bruce é reservada ao cumprimento de pena em regime fechado para mulheres, recebendo também aquelas que se encontrem grávidas dentro do sistema penitenciário fluminense.

A pesquisa de campo em referência foi realizada em setembro do presente ano, e foi possível constatar, de imediato, as péssimas condições físicas que elas apresentavam.

Em conversa com as internas, foi relatado que dentro da penitenciária não há sequer um tratamento diferenciado com as mulheres que se encontram no período gestacional. Estas são submetidas às mesmas condições que as outras internas, não possuindo local adequado, tampouco alteração em sua rotina diária dentro do presídio.

Tal descaso se estende ainda à alimentação oferecida às internas. De acordo com os relatos, a penitenciária somente dispõe de três refeições ao longo do dia, sendo a primeira servida logo pela manhã correspondente a um pão seco e a última às 17:00 (dezessete) horas.

Ainda em conversa com as internas, as mesmas informaram não haver qualquer diferenciação no cardápio, que possa a vir a atender as necessidades que seus corpos maternos anunciam necessitar. Além de não haver este cuidado, elas afirmam ainda que a comida muitas das vezes são entregues com algum alimento visivelmente podre e/ou cru.

Além de tal abandono estatal, é importante ressaltar que a água destinada ao consumo das detentas ainda não é potável.

Não é só de política pública que se busca a melhoria dentro dos estabelecimentos prisionais. É necessária a aplicação, e de maneira coerente e consciente. É necessário quebrar barreiras historicamente criadas no que diz respeito a ressocialização dos internos. O Estado precisa criar vínculo com seus tutelados, uma vez que passa a gerir o meio social ao que eles estarão submetidos pelo tempo do cumprimento de pena.

É imprescindível que haja fiscalização de tais políticas públicas, bem como treinamento dos funcionários presentes nas penitenciárias, posto que no final do ano de 2015, mais precisamente em novembro, houve o nascimento de um bebê dentro do isolamento da Penitenciária Talavera Bruce. Tal denúncia chama a atenção, uma vez que de acordo com as “Regras das Nações Unidas para Tratamento de Mulheres Presas e Medidas não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras” (Regras de Bangkok – 2010) em sua regra 22 prevê que: “Não serão aplicadas sanções de isolamento ou segregação disciplinar a mulheres grávidas (…)”.

A regra acima descrita não foi respeitada, e de acordo com relatos, o descumprimento ocorre pelo fato dos funcionários da penitenciária não serem treinados, e, consequentemente desconhecerem tais regras. Além disto, em depoimento, a SEAP, informou que a interna não possuía condições para ser colocada em convívio com as outras gestantes, pois a mesma causava problemas disciplinares, os quais não foram devidamente explicados. Acrescentaram ainda informando que ela possuía crises de abstinência graves, uma vez que era usuária de crack. E, ademais, relataram que a mesma já havia sido encaminhada para o Hospital Penal Psiquiátrico Roberto de Medeiros, por duas vezes, porém o psiquiatra da referida instituição não havia encontrado indícios de transtornos psíquicos na detenta.

As internas da Penitenciária em tela, presentes na situação acima narrada, informaram que apesar dos pedidos de ajuda realizados pelas outras detentas ao ouvir os gritos de dor vindo do isolamento, não houve qualquer preocupação na realização de atendimento médico de urgência. Relatam ainda, que, posteriormente, a interna foi levada ao hospital ligada ainda pelo cordão umbilical ao filho que acabara de dar à luz.

Conclusão.

O presente trabalho de conclusão de curso objetivou, mesmo que de forma singela, expor as diversas situações que envolvem o sistema carcerário no país e principalmente no Estado do Rio de Janeiro com relação à mulher grávida.

A apresentação exposta não visa esgotar o tema dada a tamanha complexidade que envolve o caso e seus inúmeros desdobramentos. São diversos Órgãos Públicos, Entidades, Associações, ONGs e familiares envolvidos que buscam posicionamento do Estado.

Diversos modelos e tentativas de apoio são analisados e implantados, porém, somente o devido enquadramento legal por parte do Estado Maior é capaz de sanar a absurda realizadade vivenciada pelas internas como exposto ao longo do trabalho.

Os Direitos Humanos são fundamentais para poder equilibrar a relação conturbada entre a sociedade, o sistema carcerário e seus internos. Porém, não é possível lograr êxito se o próprio detentor do poder soberano responsável não possuir o interesse de respeitá-los e aplicá-los na sua integralidade.

Por fim, é possível constatar o total desisnteresse do Estado ante o exposto, haja vista encontrar-se arquivado o procedimento especial protocolizado sob nº 2012/0181213-6, instaurado pelo Núcleo do Sistema Penitenciário da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro em novembro de 2012, à respeito das situações de esquecimento a que se submetiam as internas da Penitenciária em tela, sob alegação de se tratar de política pública, a qual não compete ao poder Judiciário, mas sim ao poder Executivo.

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Autora:

Juliana Magalhães Lima

Universidade Estácio de Sá

Advogada

e-mail: jmlimaadvocacia@yahoo.com.br

Como citar e referenciar este artigo:
LIMA, Juliana Magalhães. Responsabilidade Estatal no Sistema Carcerário: contexto atual vivenciado por mulheres gestantes na Penitenciária Talavera Bruce do Estado do Rio de Janeiro. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2020. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/responsabilidade-estatal-no-sistema-carcerario-contexto-atual-vivenciado-por-mulheres-gestantes-na-penitenciaria-talavera-bruce-do-estado-do-rio-de-janeiro/ Acesso em: 29 mar. 2024