Direito Constitucional

A harmônia entre o Princípio da Soberania Econômica e a Cooperação Internacional

THE HARMONY BETWEEN THE PRINCIPLE OF ECONOMIC SOVEREIGNTY AND INTERNATIONAL COOPERATION

Nathalia Teixeira Feitosa Curvina[1]

RESUMO: Este artigo tem como objetivo conceitualizar o princípio da soberania, em especial da soberania econômica nacional e estabelecer uma conexão entre ela e as relações internacionais, que ocorre por meio da cooperação internacional. Partindo de uma análise teórica, com o estudo de doutrinas, artigos, jurisprudências e legislações, o trabalho explanará as noções gerais sobre a soberania, estudando tal princípio de acordo com a atualidade e, posteriormente, abordará as principais concepções a respeito da cooperação internacional, aprofundando-se na cooperação jurídica e na sua instrumentalização. Usando do método qualitativo, ter-se-á a conclusão a respeito da relação entre a soberania nacional versus a cooperação internacional e seus desmembramentos.

Palavras-chave: Ordem Econômica. Soberania Nacional. Cooperação Internacional.

ABSTRACT: This article aims to conceptualize the principle of sovereignty, especially national economic sovereignty and establish a connection between it and international relations, which takes place through international cooperation. Starting from a theoretical analysis, with the study of doctrines, articles, jurisprudences and legislations, the work will explain the general notions about sovereignty, studying this principle according to the present time and, later, will approach the main conceptions regarding international cooperation, deepening legal cooperation and its instrumentalization. Using the qualitative method, the conclusion will be reached on the relation between national sovereignty versus international cooperation and its dismemberment.

Keywords: Economic Order. National Sovereignty. International cooperation.

1 INTRODUÇÃO

A ordem econômica, que teve sua primeira manifestação na Constituição de 1934, nasceu do embate entre o liberalismo e o socialismo, com o objetivo de assegurar a todos a existência digna e a justiça social. O Estado Liberal adotava uma política de liberdade econômica onde o governo não deveria intervir nas relações do mercado, sendo assim uma “mão invisível”. O liberalismo surgiu contra o Estado Absolutista, onde a burguesia, já possuidora de bastante poder econômico, almejava que a intervenção do rei na vida socioeconômica fosse mínima.

Porém, a busca pela liberdade econômica gerava uma desigualdade social gigantesca e altos índices de pobreza absoluta. A burguesia, que já detinha toda a supremacia econômica desde o Absolutismo, continuou a frente do poder e o proletariado sofria cada vez mais. Diante dessa problemática, o Estado começou a se preocupar com as questões sociais que antes eram ignoradas. Com isso, nasce o Estado Social, preocupando-se com os direitos fundamentais sociais.

Só que, com o passar do tempo, os gastos públicos feitos em busca dessa assistência social se tornou insustentável. Com isso, era necessário buscar um equilíbrio entre o liberalismo econômico e o bem estar social, instituindo-se o Estado Neoliberal, de onde nasceu as preocupações de ordem econômica e social. As constituições passaram a adotar o modelo capitalista ao tratar da ordem econômica, mas não deixou de preservar os direitos sociais e de observar seus principais objetivos. De acordo com o art. 1º, IV e o art.170, caput da CF/88, são fundamentos da República Federativa do Brasil e, mais especificadamente, da ordem econômica a valorização do trabalho e a livre iniciativa.

O art. 170 da CF/88 elenca os princípios de ordem econômica que devem ser observado para que a existência digna e a justiça social sejam alcançadas. O primeiro deles é a soberania nacional (inciso I), objeto de estudo deste trabalho, que também é um fundamento da República Brasileira, de acordo com o art. 1º, I, CF/88. Além disso, o art. 4º, I, traz a independência nacional (sinônimo de soberania) como um dos princípios a serem observados nas relações internacionais do Brasil. Só que, em contraposição à soberania, há o princípio da cooperação internacional. Leila Arruda Cavallieri afirma que:

As constantes trocas internacionais, consequência direta de um mundo que se constata realmente globalizado, exigem que os Estados mantenham canais de auxílio mútuo eficazes para que todos possam usufruir de maiores benefícios. No atual cenário, uma relevante forma de fazer parte deste universo transnacional é através de mecanismos de cooperação internacional. (2015, p. 197. Grifo nosso).

Assim, este artigo irá abordar como e se a soberania nacional econômica consegue conviver em harmonia com essas intensas relações internacionais de Estados Soberanos, por meio da cooperação internacional.

2 A SOBERANIA NACIONAL

A Constituição Brasileira de 1988 foi promulgada para instituir um Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais do povo. O seu primeiro fundamento é a soberania, que também é fundamento da ordem econômica, tema aqui estudado, e está disposto no art. 170, I, da CF/88, que diz:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I – soberania nacional; […]

A soberania é um princípio essencial para a manutenção de qualquer Estado e a professora Amarolina Ribeiro[2] traz o seu conceito de forma pontual:

Soberania, em seu sentido político ou jurídico, é o exercício da autoridade que reside em um povo e que se exerce por intermédio dos seus órgãos constitucionais representativos. A soberania é uma autoridade superior que não pode ser restringida por nenhum outro poder e, portanto, constitui-se como o poder absoluto de ação legítima no âmbito político e jurídico de uma sociedade.

O professor José Alfredo de Oliveira Baracho explica, de forma abreviada, o conceito de soberania econômica, dizendo que “é a atribuição de determinar seu sistema econômico e de dispor de seus recursos naturais”. (BARACHO apud AGUIAR, 2013, p.01). É mister citar a observação feita por José Afonso da Silva a respeito do princípio econômico da soberania:

Se formos ao rigor dos conceitos, teremos que concluir que, a partir da Constituição de 1988, a ordem econômica brasileira, ainda de natureza periférica, terá de empreender a ruptura de sua dependência em relação aos centros capitalistas desenvolvidos. […] Com isso, a Constituição criou as condições jurídicas fundamentais para a adoção do desenvolvimento autocentrado, nacional e popular, que, não sendo sinônimo de isolamento ou autarquização econômica, possibilita marchar para um sistema econômico desenvolvido, em que a burguesia local e seu Estado tenham o domínio da produção, do mercado e a capacidade de competir no mercado mundial, dos recursos naturais e, enfim, da tecnologia. (2005, p. 792 e 793. Grifo nosso).

A soberania possui três características fundamentais: ela deve ser una, inalienável e imprescritível. É uma forma de poder superior a todos os demais, não havendo a possibilidade de existir duas soberanias ao mesmo tempo, ou seja, é indivisível. Além disso, esse poder não pertence a uma pessoa física, ele pertence ao povo, portanto, aquele que o administra desaparece quando fica sem ele, devido a inalienabilidade da soberania. Por fim, o poder soberano tende a existir permanentemente, não possuindo prazo para sua existência, sendo imprescritível.

José Geraldo Filomeno destaca ainda que não se pode confundir a soberania com o governo:

Governo nada mais é do que o conjunto dos órgãos do Estado que colocam em prática as deliberações dos órgãos legislativos. Ou seja, é a face visível do Estado e expressão da sua própria soberania, enquanto poder supremo existente nos limites de seu território. Pode-se ainda conceituá-lo como a organização necessária para o exercício de poder político do Estado. Já soberania é a forma suprema de poder: é o poder incontestável e incontrastável que o Estado tem de, dentro de seu território e sobre uma população, criar, executar e aplicar o seu ordenamento jurídico visando ao bem comum. (FILOMENO, 2009, p. 86).

Assim, o Estado necessita do governo para conduzir seu poder soberano, administrando a vida social, econômica, jurídica e política. O Brasil, como qualquer outro estado em desenvolvimento, vem buscando aperfeiçoar essa relação soberania-governo-sociedade, para que possa se tornar, de fato, independente das outras nações. Contudo, o desenvolvimento do homem trouxe a globalização, que vem intensificando cada vez mais as relações internacionais, tanto de forma positiva, como negativa, dando novos contornos à soberania.

2.1 A soberania sob a nova ordem internacional

Bernardo Augusto Aguiar (2015, p. 02) ao lecionar sobre a soberania nacional econômica afirma que as informações acerca dessa matéria valem para “a grande maioria dos países que ainda não atingiram um nível satisfatório de desenvolvimento”, devido a globalização e as relações internacionais. Essa afirmação decorre do principal obstáculo para a efetivação da soberania: o mundo globalizado e a desigualdade entre países desenvolvidos versus países subdesenvolvidos. Como exemplo disto, temos os países europeus e os EUA vivenciando a Era Liberal, enquanto o Brasil ainda estava sob regime de escravidão.

Destarte, os países atrasados perante o desenrolar da história se tornaram, de certa forma, dependentes daqueles que estavam “um passo à frente”. O Brasil acabou suprimindo o Estado de bem estar social, saindo do liberalismo econômico direto para o estado mínimo do Neoliberalismo, que buscava atender às necessidades públicas, mas economizar nos gastos que estavam em déficit. Só que, no nosso país, esse déficit não chegou a ocorrer por causa da grande assistência social do Estado Intervencionista, que foi suprimido. Ou seja, o governo não conseguiu, na época, diminuir a desigualdade social, que se alastra até hoje. Bernardo aponta que:

[…] é patente que a realidade econômica reflete uma dominação do capitalismo, situação essa agravada ainda mais com o fenômeno da aceleração da globalização. As políticas econômicas adotadas pelo nosso país sofrem, de modo incessante, as difusões provocadas por variados fatores externos, ainda mais quando o socorro dos constantes colapsos nas suas economias é realizado em dólar, recrudescendo cada vez mais o nível de dependência. (2015, p. 04. Grifo nosso).

Como disse o autor, a Constituição de 1988 tem uma predominância do capitalismo e do Estado Neoliberal, sob influência dos países desenvolvidos, onde o governo deve ter uma atuação reduzida na economia e se preocupar mais com a assistência social (saúde, educação, segurança e etc). Atestando isso, o art. 173 diz que: “[…] a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo […].”

Essa consequência gerada pelo obstáculo à efetivação da soberania já era esperada, até porque a convivência de vários países soberanos no mundo globalizado, na prática, não é tão simples. Lênio Streck e José de Morais explicam que:

Pela teoria da autolimitação, diz-se que o Estado pode assumir, espontaneamente, limitações externas, a partir de compromissos assumidos perante outros poderes congêneres. Modernamente, esta questão ganha novos contornos diante do processo de reforço de poderes diversos, muitas vezes com capacidade decisória igual ou superior à dos Estados, como ocorre, e. g., com a construção das nominadas comunidades supranacionais. (STRECK; MORAIS, 2010, apud BOMTEMPO, 2011, p. 4)

Com essa nova ordem internacional, os Estados possuem dupla soberania: externa e interna. A soberania externa é a independência de outros países, que também pode ser atribuída a um caráter de coordenação, enquanto a soberania interna se dá pelo poder absoluto do Estado dentro daquele território. Os países têm igualdade jurídica entre si no plano externo, onde deve haver respeito recíproco e convivência pacifica entre si, sempre empenhando-se para assegurar os direitos humanos e a paz mundial. Ratificando isso, o art. 4º da Constituição Federal de 1988 trouxe um rol de princípios que devem ser respeitados pelas relações internacionais que o Brasil mantiver:

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

I – independência nacional;

II – prevalência dos direitos humanos;

III – autodeterminação dos povos;

IV – não-intervenção;

V – igualdade entre os Estados;

VI – defesa da paz;

VII – solução pacífica dos conflitos;

VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo;

IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;

X – concessão de asilo político.

Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

Ademais, Bernardo Augusto Aguiar traz como superação do entrave para a concretização da soberania o amplo acesso ao Poder Judiciário, “com variados instrumentos tanto para fiscalizar as políticas econômicas como para implementar os direitos fundamentais de ordem econômica.” (2015, p. 04). Nesse sentido, ele destaca a observação feita pelo professor Rosemiro Pereira Leal, que diz:

Para o exercício da soberania popular plena, há de se democratizar o Poder Judiciário para que a população se defenda, pela ampliação da cidadania, de modo direto e indelegável, do abuso, descaso, omissão, protecionismos, confiscos e discriminações do poder econômico (público e privado) através de medidas e ações judiciais previstas e reguladas em legislação especial. (LEAL, 1999, apud AGUIAR, 2015, p.04).

Dessa forma, Bernardo cita dois instrumentos principais para isso: o mandado de injunção (MI) e a ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão (ADIN por omissão). Ambas as ações constitucionais têm o mesmo objetivo de sanar a falta de normas que tornem inviável o exercício de direitos constitucionais. Tais instrumentos são essenciais devido ao caráter programático das normas contidas no Título da Ordem Econômica. Como exemplo, tem-se o art. 172 da CF/88 que regula o capital estrangeiro de acordo com o interesse social dos brasileiros, fixando: “Art. 172. A lei disciplinará, com base no interesse nacional, os investimentos de capital estrangeiro, incentivará os reinvestimentos e regulará a remessa de lucros.” (Grifo nosso).

O Supremo Tribunal Federal (STF) já tinha firmado uma tese[3] de que o MI tinha auto aplicabilidade e não necessitava de uma norma que o regulasse, mas hoje ele é regulado pela nova Lei nº 13.300/2016. Ele tem vantagem sobre a ADIN por omissão devido a legitimidade para propor a ação: o MI pode ser impetrado por qualquer pessoa que se sinta prejudicada pela omissão legislativa (art. 3º da lei nº 13.300/16), enquanto o ADIN por omissão tem o rol taxativo de legitimados no art. 103, CF/88. O autor ainda critica outro entendimento do STF do qual afirma que, após o reconhecimento da omissão legislativa, o Supremo deve apenas comunica-la ao Poder Legislativo, sem a imposição de prazo para sanar tal prejuízo. Com isso, Bernardo diz que:

O entendimento do STF acerca das referidas ações constitucionais acaba por inviabilizá-las como instrumentos democráticos e efetivos para que os cidadãos ou as pessoas legitimadas possam propô-las (como no caso da ADIN por omissão, criando mais um obstáculo para que o nosso país alcance a tão esperada e sonhada soberania nacional econômica, para que finalmente a nossa população possa gozar dos direitos fundamentais. (2015, p. 06).

Perpassada as críticas, é importante salientar que a ordem internacional hoje demanda um pensamento global, na atuação que um Estado se relaciona com o outro por uma necessidade de interdependência. A soberania não é mais vista como um poder absoluto e “todo poderoso”, atualmente ela se transforma em uma ordem de compromisso, para manter a ordem mundial e assegurar os direitos de sua nação. Como exemplo dessa relação internacional, temos a Organização das Nações Unidas (ONU), que foi formada para manter a paz e a segurança no mundo, fomentar relações amistosas entre as nações, promover o progresso social, melhores padrões de vida e direitos humanos. A respeito da ONU, Tiago Bomtempo fala que:

Apesar de não ser um Estado, o poder exercido pela ONU sobre os Estados, inclusive àqueles que não a integram, é de inteligência e de império, na medida em que esta organização pode sancionar desde medidas restritivas de ordem econômica até o uso da força coercitiva, em nome da paz e da ordem mundial, por meio de medidas aprovadas pelo Conselho de Segurança, órgão que compõe a ONU. (2011, p. 7).

Além da ONU, diversas organizações mundiais entre países soberanos foram sendo formados ao longo do tempo. O mercado hoje em dia é considerado mundial, onde um país produz a material prima, o outro industrializa e o outro revende o produto final. E isso não descaracteriza o conceito de soberania, apenas agrega uma flexibilização voltada para a evolução global, que se aperfeiçoa através da cooperação internacional entre as soberanias.

3 A COOPERAÇÃO INTERNACIONAL

Como já foi dito, as relações externas entre países soberanos vêm se intensificando crescentemente por causa da globalização e a cooperação internacional é um mecanismo essencial para isso. Horácio Eduardo Vale conceitua a cooperação internacional como sendo um “ato de mútua ajuda entre dois ou mais Estados-Nação para a finalidade de um objetivo comum, que pode ser das mais diversas espécies: políticos, culturais, estratégicos, humanitários, econômicos.” (2014, p.1). Esse princípio internacional de ajuda mútua deve ser respeitado pelo direito à liberdade e à soberania de um Estado, como afirma Valério Mazuolli: “[…] nenhum Estado pode ser considerado como tal sem que seja livre para atuar com independência no cenário internacional, afastadas quaisquer coações ou interferências externas.” (2015, p. 557).

A cooperação internacional ocorre entre os Estados como pessoas jurídicas de direito internacional. Mas vai além do Estado-Nação, voltando-se também para a criação de blocos internacionais e organizações não-governamentais. A cooperação pode ser bilateral, entre dois países, ou plurilateral, entre mais de dois países. Também como espécie deste princípio, existe a cooperação jurídica ou judiciária, que ocorre quando há uma demanda judicial que dependa da ajuda de outro(s) país(es). Pode se acionar com fins de produção de atos processuais, tanto para a atividade de conhecimento como para atos executórios.

Assim, no plano internacional, os países não mantém apenas contato de caráter econômico ou político, mas também pode ocorrer a cooperação jurídica. Atualmente, existe uma demanda intensa pelo cumprimento de atos processuais em um Estado, que são derivados de outro país. Dessa forma, Leila Arruda Cavallieri diz que:

Os atos oficiais de caráter jurisdicional ou administrativo, expedidos por um Estado e que necessitam de cumprimento em outro Estado, a fim de que se obtenha a prestação jurisdicional de forma rápida e com eficácia, demandam regulamentação própria, seja convencional ou legal. (2015, p. 197).

Frente a isso, percebe-se que a cooperação judiciária internacional alcança maior ênfase para repressão de ilícitos, principalmente os relacionados ao tráfico de drogas, de armas, seres humanos e lavagem de dinheiro. De acordo com Horácio Vale (2014, p. 7), o tema mencionado não é alheio ao Supremo Tribunal Federal, que assim apreciou a questão no processo extradicional 633[4]:

A essencialidade da cooperação internacional na repressão penal aos delitos comuns não exonera o Estado brasileiro – e, em particular, o STF – de velar pelo respeito aos direitos fundamentais do súdito estrangeiro que venha a sofrer, em nosso Pais, processo extradicional instaurado por iniciativa de qualquer Estado estrangeiro. O fato de o estrangeiro ostentar a condição jurídica de extraditando não basta para reduzi-lo a um estado de submissão incompatível com a essencial dignidade que lhe é inerente como pessoa humana e que lhe confere a titularidade de direitos fundamentais inalienáveis, dentre os quais avulta, por sua insuperável importância, a garantia do ‘due process of law’. Em tema de direito extradicional, o STF não pode e nem deve revelar indiferença diante de transgressões ao regime das garantias processuais fundamentais. É que o Estado brasileiro – que deve obediência irrestrita à própria Constituição que lhe rege a vida institucional- assumiu, nos termos desse mesmo estatuto político, o gravíssimo dever de sempre conferir prevalência aos direitos humanos (art. 4°, lI).

No que diz respeito à cooperação jurídica, o STF já decidiu:

Carta rogatória – Colaboração – Inexistência de tratado. A inexistência de tratado entre o país no qual situada a Justiça rogante e o Brasil não obstaculiza o cumprimento de carta rogatória, implementando-se atos a partir do critério da cooperação internacional no combate ao crime C.)” (CR-AgR 9854/UK – Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, ReI. Min. Marco Aurélio, j. 28.05.2003, DJ 27.06.2003).

Desse modo, a ajuda mútua entre os Estados para a eficaz prestação jurisdicional é irrecusável. Tratando-se de cooperação jurídica, a evolução de sua regulamentação é gradual, porém é muito importante. Não se discute apenas uma civilidade entre os países, mas reveste-se de uma obrigação moral, baseando-se no respeito entre as Nações. Além disso, o exercício da jurisdição de cada Estado tem seu limite territorial e, portanto, a autoridade estrangeira não pode ultrapassa-lo. E é mister destacar que essa jurisdição só pode ser exercida pelas autoridades locais. Ratificando isso, Leila Cavallieri cita Carmen Tibúrcio quanto ao conceito de jurisdição: “A jurisdição, um dos princípios decorrentes da soberania do Estado, é o poder exercido por este sobre todos os bens e pessoas em seu território.” (TIBÚRCIO apud CAVALLIERI, 2015, p. 198).

3.1 A cooperação internacional a partir do CPC/2015

“Muito se ganharia com a adoção do auxílio direto mútuo – ativo e passivo – como regra principal de solução de conflitos envolvendo jurisdições de dois ou mais países”, diz Eduarda Chacon (2015, p.01) sobre a cooperação. O Código de Processo Civil disciplina os limites da jurisdição nacional e a cooperação jurídica internacional, por meio do Título II, arts. 21 ao 41. O art. 26 disciplina como esta ajuda mútua funcionará:

Art. 26.  A cooperação jurídica internacional será regida por tratado de que o Brasil faz parte e observará:

I – o respeito às garantias do devido processo legal no Estado requerente;

II – a igualdade de tratamento entre nacionais e estrangeiros, residentes ou não no Brasil, em relação ao acesso à justiça e à tramitação dos processos, assegurando-se assistência judiciária aos necessitados;

III – a publicidade processual, exceto nas hipóteses de sigilo previstas na legislação brasileira ou na do Estado requerente;

IV – a existência de autoridade central para recepção e transmissão dos pedidos de cooperação;

V – a espontaneidade na transmissão de informações a autoridades estrangeiras.

Marco Gasparetti e Manuela Capp Ribeiro explicam que: 

No Brasil, a cooperação jurídica internacional adota modelo padronizado internacionalmente, por meio do qual cada Estado-Parte possui uma “autoridade central” que será responsável pelo trâmite burocrático dos pedidos de assistência em face de outro Estado-Parte (cooperação ativa e passiva). Ou seja, exige-se a intermediação de duas autoridades centrais, não havendo, portanto, a comunicação direta entre o juiz brasileiro e a autoridade estrangeira. (2016, p. 1).

De acordo com o art. 27 do CPC/2015, a cooperação terá como objeto: a) citação, intimação e notificação judicial e extrajudicial; b) colheita de provas e obtenção de informações; c) homologação e cumprimento de decisão; d) concessão de medida judicial de urgência; e e) assistência jurídica internacional. O CPC traz três instrumentos para realização eficaz dessa cooperação: a ação de homologação de sentença estrangeira, o auxílio direito e a carta rogatória. A homologação de sentença estrangeira é uma ação que tem por finalidade dar executoriedade para sentenças proferidas em outro país. Já o auxílio direto é cabível quando a medida não decorrer diretamente da decisão de autoridade jurisdicional estrangeira a ser submetida a juízo de deliberação no Brasil, nos termos do art. 28 do CPC.

Assim, no auxílio direto não há a comunicação entre o juiz brasileiro e a autoridade estrangeira, sendo a autoridade central brasileira responsável pela cooperação, observado os arts. 31 ao 34, CPC:

Art. 31.  A autoridade central brasileira comunicar-se-á diretamente com suas congêneres e, se necessário, com outros órgãos estrangeiros responsáveis pela tramitação e pela execução de pedidos de cooperação enviados e recebidos pelo Estado brasileiro, respeitadas disposições específicas constantes de tratado.

Art. 32.  No caso de auxílio direto para a prática de atos que, segundo a lei brasileira, não necessitem de prestação jurisdicional, a autoridade central adotará as providências necessárias para seu cumprimento.

Art. 33.  Recebido o pedido de auxílio direto passivo, a autoridade central o encaminhará à Advocacia-Geral da União, que requererá em juízo a medida solicitada.

Parágrafo único.  O Ministério Público requererá em juízo a medida solicitada quando for autoridade central.

Art. 34.  Compete ao juízo federal do lugar em que deva ser executada a medida apreciar pedido de auxílio direto passivo que demande prestação de atividade jurisdicional.

Por conseguinte, a carta rogatória é um mecanismo processual internacional pelo qual um país requer o cumprimento de um ato judicial ao órgão jurisdicional de outro país. Quando o CPC/2015 ainda era um projeto de lei, ele continha o art. 35 que conceituava a carta rogatória:

Art. 35. Dar-se-á por meio de carta rogatória o pedido de cooperação entre órgão jurisdicional brasileiro e órgão jurisdicional estrangeiro para prática de ato de citação, intimação, notificação judicial, colheita de provas, obtenção de informações e cumprimento de decisão interlocutória, sempre que o ato estrangeiro constituir decisão a ser executada no Brasil.

Porém, esse artigo foi vetado pela Presidência e Eduarda Chacon explica que isso ocorreu por medo de que se tornasse obrigatório a prática de determinados atos somente por meio da carta rogatória, “o que afetaria a celeridade e efetividade da cooperação jurídica internacional que, nesses casos, poderia ser processada pela via do auxílio direto.” (2015, p. 01). A carta rogatória deve ser encaminhada para o Superior Tribunal de Justiça, onde Marco Gasparetti e Manuela Capp Ribeiro, baseando-se na jurisprudência[5], apontam que:

Em relação ao processamento da Carta Rogatória perante o STJ, é importante destacar, também, que, apesar da emenda regimental 18, de 2014, editada pelo Superior Tribunal de Justiça, consoante ao que estabelece a Constituição Federal (“Aos juízes federais compete processar e julgar: X- os crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro, a execução de carta rogatória, após o “exequatur”…”), determinar que “após a concessão do exequatur, a carta rogatória será remetida ao Juízo Federal competente para seu cumprimento”; o Superior Tribunal de Justiça, nos casos em que a finalidade da Carta Precatória se restringe a citação, intimação e/ou notificação judicial e extrajudicial do Requerido, vem decidindo que a apresentação de impugnação ao pedido de concessão do exequatur, pelo Requerido, seria equivalente ao seu comparecimento espontâneo nos autos, e, portanto, a Carta Rogatória teria cumprido a sua finalidade, não havendo necessidade de remetê-la à Justiça Federal competente, após a concessão do exequatur, para que, nova citação, intimação e/ou notificação fosse realizada.

Por fim, é mister destacar o §3º do art. 26 c/c o art. 39 do CPC estabelecendo que a cooperação jurídica internacional não será admitida quando o ato contrariar as normas fundamentais, principalmente a soberania, e a ordem pública que regem a República Brasileira. Assim, o Código de Processo Civil cuidou em ditar as regras processuais para a efetivação da cooperação internacional, sem que ela se tornasse mais uma forma de morosidade no Poder Judiciário, mas respeitando os fundamentos constitucionais e as boas relações entre os países.

4 CONCLUSÃO

Levando-se em consideração o que foi exposto, podemos conceituar a soberania econômica nacional como a forma de poder absoluto de um Estado, que o dá independência para administrar suas finanças e coordenar o mercado econômico de seu país, sem se sujeitar a qualquer coação estrangeira. Mas é importante a observação feita por Valério Mazuolli:

A conotação, porém, que modernamente se atribui à expressão “soberania” é limitativa, estando mais ligada à sua atuação positiva, ou seja, ao direito que o Estado tem de se autogovernar, sem a ingerência indevida de qualquer outro Estado. Nesse sentido, nenhum Estado ou grupo de Estados têm o direito de intervir, direta ou indiretamente, seja qual for o motivo, nos assuntos interiores ou exteriores de qualquer outro. (2015, p. 557).

O conceito de soberania sofreu interferência da globalização, mas deve ser considerada uma influência positiva para os países e para a população. A globalização ampliou o mercado econômico dos países, aumentando as relações internacionais, o que acabou por contribuir, também, nas relações políticas, sociais, culturais e até nas relações jurídicas. Essa união internacional trouxe a “diminuição” do espaço-tempo, facilitando a interação social entre pessoas de diversos países, fomentando bastante a economia, como destaca o professor Rodolfo Alves Pena[6]:

No campo financeiro, a Globalização também apresenta aquilo que podemos considerar como vantagens. Destacam-se, nesse ínterim, os investimentos mais facilitados e que podem difundir-se por todo o globo; a maior disponibilidade de meios para gerir empresas e governos; a possibilidade de maiores e mais amplos tipos de financiamentos de dívidas fiscais; a integração do sistema bancário mundial, entre outros aspectos.

Além do benefício econômico trazido pela globalização, como já foi explanado, houve uma ajuda importantíssima no âmbito jurídico: a cooperação jurídica internacional. O legislador brasileiro já instituiu mecanismos internos e externos para assegurar que o princípio da soberania seja respeitado, sem gerar um obstáculo para a evolução das relações internacionais. Internamente, tem-se o Mandado de Injunção e a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade por Omissão, que protegem a sociedade brasileira contra a lesão aos seus direitos fundamentais causados pela omissão legislativa.

E, externamente, existem a ação de homologação de sentença estrangeira, o auxílio direito e a carta rogatória, geridos pelo Código de Processo Civil em consonância com os regulamentos estrangeiros. Esses três instrumentos são utilizados pela autoridade brasileira ou estrangeira para processar atos judiciais que necessitam da participação de dois ou mais países. Apesar das regras trazidas pelo CPC/2015 não serem bem completas, elas já ajudam a nortear como o Brasil deve portar em suas relações externa.

Assim, verifica-se que o relacionamento entre os países, por meio da cooperação internacional, não prejudica a sua soberania. Mas essa relação ocorre de forma harmoniosa, onde há um benefício mútuo para ambas as partes dessa união. Ou seja, a cooperação internacional respeita a liberdade e independência dos países.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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VALE, Horácio Eduardo Gomes. Princípio da cooperação internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3864, 29 jan. 2014. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/26542>. Acesso em: 01/11/2017.



[1] Graduanda do 9º período do curso de Direito na Universidade Estadual do Maranhão – UEMA.

[2] RIBEIRO, Amarolina. Soberania. Mundo Educação – Geografia. Disponível em: <http://mundoeducacao.bol.uol.com.br/geografia/soberania.htm>. Acesso em: 30/10/17.

[3] STF – MI: 107 DF, Relator: Min. MOREIRA ALVES, Data de Julgamento: 23/11/1989, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 21-09-1990 PP-09782 EMENT VOL-01595-01 PP-00001.

[4] STF, Ext 633, ReI. Min. Celso de Mello, j. 28.08.1996, DJ 06.04.2001.

[5] (AgRg na CR n° 2.498 –US, Ministro Relator HUMBERTO GOMES DE BARROS; AgRg na CR n° 544, Ministro Relator BARROS MONTEIRO; AgRg na CR n° 327, Ministro Relator BARROS MONTEIRO; AgRg na CR n° 8820, Ministro Relator FRANCISCO FALCÃO).

[6] PENA, Rodolfo F. Alves. “Vantagens e desvantagens da Globalização”; Brasil Escola. Disponível em <http://brasilescola.uol.com.br/geografia/pos-contras.htm>. Acesso em 04/11/17.

Como citar e referenciar este artigo:
CURVINA, Nathalia Teixeira Feitosa. A harmônia entre o Princípio da Soberania Econômica e a Cooperação Internacional. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2019. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/a-harmonia-entre-o-principio-da-soberania-economica-e-a-cooperacao-internacional/ Acesso em: 19 abr. 2024