Direito Constitucional

Considerações acerca da dimensão material do princípio do devido processo legal

Lauro Tércio Bezerra Câmara[1]

RESUMO

O presente estudo visa a discutir a dimensão substancial do princípio do devido processo legal. Inicia com breve relato histórico acerca do surgimento da norma jurídica na Inglaterra e da ampliação dos seus contornos materiais pela Suprema Corte estadunidense. Descreve as questões levantadas pela doutrina nacional com a incorporação da cláusula do devido processo legal no direito pátrio pela Constituição Federal de 1988. Apresenta o conteúdo do princípio a partir de suas dimensões processual, inclusive propondo a distinção da norma em face do princípio da inafastabilidade da jurisdição, e substancial, apresentando a divergência doutrinária sobre este aspecto. Cuida especificamente da relação entre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e a cláusula do devido processo legal. Ao final, apresenta considerações acerca do tema trabalhado.

Palavras-chave: Devido processo legal; dimensão substancial; razoabilidade; proporcionalidade.

1 INTRODUÇÃO

A formulação acerca do respeito ao devido processo legal surge com a Magna Carta, de 1215, do rei João Sem Terra, como fruto de uma disputa entre a realeza e a nobreza, esta representada pelo Parlamento[2]. O ano de 1066 marca o início desse conflito, quando a invasão de Guilherme, o Conquistador, institucionalizou a estrutura feudal e seus postulados sociais, políticos e econômicos[3]. No topo da pirâmide estava o soberano, que reservava para si a propriedade do solo conquistado, mas distribuía a sua fruição pelos barões normandos, que do mesmo modo o faziam aos seus imediatos[4]. Nesse cenário, a nobreza inglesa, concentrada no Parlamento, buscava defender os seus privilégios, inclusive com a aliança do clero, em face de uma coroa arbitrária, encontrando o seu clímax no governo do rei João sem Terra[5]. Incapaz de resistir às pressões da nobreza, o poder real outorgou a Magna Carta ao baronato[6].

O Texto constituiu o “estatuto fundamental do direito inglês e de outros povos que nela hauriram os princípios básicos de sua estruturação política e jurídica”[7]. Pela Magna Carta, o rei assegurava à nobreza a inviolabilidade de seus direitos referentes à vida, liberdade e propriedade, assegurando a sua supressão somente mediante a “lei da terra” (per legem terrae ou law of the land). Esclarece-se que o documento veiculava limitação dirigida unicamente ao Poder Real – jamais ao Parlamento – e não visava a proteger os direitos individuais do cidadão[8]. Embora a expressão per legem terrae viesse se consagrando no sistema jurídico inglês com as sucessivas confirmações pelos que sucederam o trono, a mesma foi substituída em 1354 pela expressão atualmente conhecida como due process of law[9], pela lei denominada Statute of Westminster of the Liberties of London[10]. A expressão foi reafirmada na Petition of Rights, elaborada por Lord Coke e dirigida ao Rei Carlos I, pela qual se buscava a liberdade de cinco nobres presos arbitrariamente por se recusarem a subscrever um empréstimo compulsório ilegalmente lançado[11].

A cláusula fora recepcionada pelo direito norte-americano ainda durante a colonização, quando vigia implicitamente no Novo Mundo por força das charters reais, as quais asseguravam direitos previstos na Magna Carta aos súditos ingleses no solo da colônia[12]. Registra-se que também algumas Constituições estaduais já consagravam expressamente a garantia, como por exemplo a de Maryland (3/11/1776), protegendo o trinômio vida-liberdade-propriedade[13]. Apesar das primeiras declarações afirmando o princípio em solo estadunidense surgirem no contexto da luta, a Declaração de Independência dos Estados Unidos não agasalhou expressamente a norma[14]. Foi apenas pela Emenda V à Constituição americana, ante a necessidade de proteger a esfera privativa dos direitos individuais em face da União federal recém-organizada, que se positivou a norma do devido processo legal, “em sua forma mais pura e exata”[15]. Passada a Guerra de Secessão, sob a necessidade de se observar a igualdade dos negros, em especial pelos estados do Sul, em 1868 foi aprovada a Emenda XIV com idêntica redação, agora voltada especificamente aos Estados federativos[16].

Assim restou consagrada pelo direito norte-americano a “simplest and most far-reaching of constitucional phrases”[17]. Acrescenta Nery Jr. (2010, p. 82) que a reconhecida reputação do direito constitucional do common law, em especial devido à respeitabilidade e eficácia da incidência das prescrições constitucionais, deve-se à firmeza com que vem agindo a Suprema Corte na interpretação da cláusula due process. Explica o jurista que a Corte Constitucional Norte-Americana vem interpretando a cláusula de forma analítica, declarando a solução conforme o equacionamento do problema, “de sorte a solucionar o caso concreto que lhe foi submetido a julgamento ao tempo que fixa regras e padrões para os casos semelhantes futuros”, pensamento esse que não encontrou semelhante respaldo na dogmática dos países do civil law por causa da concepção programática e de eficácia contida/restrita de normas constitucionais[18].

Esse breve esboço histórico já nos permite verificar que o princípio surge na Inglaterra com dimensão exclusivamente processual. Entretanto, o Direito estadunidense empresta-lhe feição substancial, voltada à proteção dos direitos fundamentais. Fatores como a corrente jusfilosófica do realismo jurídico e a teoria dos precedentes contribuíram decisivamente para a ampliação do conteúdo do princípio. No direito nacional, embora tenha sido positivada a norma com a redação semelhante àquela constante da Constituição americana, essa dimensão substantiva ora é questionada, ora é concebida como a positivação do princípio da proporcionalidade.

No presente estudo, abordamos a norma do devido processo legal, buscando situar o sentido, o conteúdo e o alcance desse importantíssimo princípio, com especial destaque para a divergência doutrinária acerca de sua dimensão substancial. Para tanto, incialmente buscamos desenvolver um sentido da norma principiológica a partir do direito positivo pátrio; na sequência, abordamos o seu conteúdo, em função das possíveis dimensões em que atua a cláusula; em complementação, traçamos discussão acerca dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade em cotejo com a doutrina nacional; e, por fim, apresentamos as conclusões.

2 DEVIDO PROCESSO LEGAL NO DIREITO PÁTRIO

A concepção de devido processo legal, conforme esclarece Mendes (2013, p. 429), foi desenvolvida nas diversas ordens constitucionais até sua incorporação “ao conjunto de axiomas fundamentais do constitucionalismo contemporâneo”, sendo um princípio consagrado no pensamento constitucional atual, na condição de norma fundamental de toda ordem jurídica de um Estado Democrático de Direito, calcada na legalidade e voltada à proteção das liberdades. Não por acaso, o princípio é a “maior contribuição do common law para a civilidade do direito e hoje certamente representa o novo jus commune em matéria processual”[19], restando positivado nas Constituições da Itália, nos arts. 24 e 111; da Espanha, art. 24; da Alemanha, art. 103; e de Portugal, art. 20; além da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), arts. 8º e 10; da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (1950), art. 6º; do Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos (1966), art. 14; e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), art. 8º.

Segundo Nino (2002, p. 446, apud MENDES, 2013, p. 429), existem basicamente duas justificativas para a exigência de um devido processo legal como anteparo da privação da liberdade. A primeira consiste no valor intrínseco de proteger o indivíduo de uma possível manipulação estatal quando da restrição de sua liberdade, havendo a necessidade de se estabelecer prévio diálogo para que possa ser convencido – ou o contrário, convencer – acerca da legitimidade da coação, valorizando a dignidade da pessoa pelo reconhecimento de sua capacidade de valorar e participar da busca conjunta da verdade (processual). A segunda, na concepção de devido processo legal como valor instrumental, isto é, como um instrumento adequado de aplicação da lei de forma imparcial e equânime. Segundo o jurista, ambos os valores – intrínseco e instrumental – complementam-se mutuamente para fundamentar essa garantia central da democracia, pois exige a necessária justificação da coação e oportuniza a participação do indivíduo no debate legislativo e processual.

Do nosso direito não constou a cláusula do devido processo legal de forma explícita até a Constituição Federal de 1988, restando positivado no art. 5º, inc. LIV, com redação semelhante à que deu a Emenda V à Constituição americana. Consoante Mendes (2013, p. 429), tratou o constituinte de 1988 de positivar um princípio já implícito em ordens constitucionais anteriores (art. 179, XI, da Constituição de 1824; art. 72, § 15, da Constituição de 1891; art. 102, § 8º, da Constituição de 1934; art. 141, § 27, da Constituição de 1946), possivelmente pela vontade de “romper com a ordem política do período anterior (1964-1985), notoriamente caracterizada pelos abusos do Estado ditatorial contra a liberdade dos indivíduos”.

Acerca da natureza da norma, Claro (2005) anota que a norma configura (a) direito fundamental, em sentido formal porque positivado na Constituição Federal e em sentido material porque “a própria força vinculativa dos demais direitos fundamentais depende de estar aberta a via processual adequada”; (b) princípio constitucional, “irradiando seu conteúdo para todas as normas do ordenamento jurídico”, pois “não se aplicam ao estilo tudo-ou-nada, mas mediante um método de prevalência de uns sobre os outros nos casos concretos”, em função do seu grau de abstração e de determinabilidade, do caráter de fundamentalidade, da proximidade da ideia de direito e da natureza normogenética, com “capacidade de tornar ótimo (Alexy) o processo civil brasileiro”; e (c) cláusula aberta (open-ended clause), ou norma de textura aberta (open texture), pois constitui disposição com alto grau de abstração, muito embora assinale que o constitucionalismo pátrio já preveja alguns dos “direitos fundamentais que complementam e facilitam a interpretação da cláusula do devido processo legal”, definindo-os como princípios-guias.

Como dito, a disposição constitucional nacional causa divergência doutrinária acerca de seu alcance, em razão das possíveis dimensões que o princípio pode compreender. Parte da doutrina vê na norma as acepções procedimental e substancial. É o caso de Nery Jr. (2010, p. 81) ao afirmar que o princípio se caracteriza pela proteção do trinômio vida-liberdade-propriedade, implicando que tudo o que disser respeito à tutela desses bens jurídicos, em seu sentido mais amplo, está sob a proteção da due process clause. Parece concordar com isso Mendes (2013, p. 429) ao assentar que a ideia mais geral da cláusula consiste em, no Estado Democrático de Direito, “entre o indivíduo e a coação estatal incidente sobre os seus bens e sua liberdade deve sempre se interpor um processo, devidamente conduzido por um juiz”. Sob outra perspectiva, Marinoni e Mitidiero (2014, p. 703) entendem pela dimensão unicamente processual da norma constitucional, ao definir o princípio como “direito fundamental ao processo justo” (fair trial), entendido como princípio fundamental “para organização do processo no Estado Constitucional”, ou seja, um “modelo mínimo de atuação processual do Estado e mesmo dos particulares em determinadas situações substanciais”, cuja observação é “condição necessária e indispensável para a obtenção de decisões justas”[20].

Apresentados esses conceitos, as discussões acerca das dimensões da norma são abordadas abaixo.

3 DIMENSÕES DO PRINCÍPIO

A cláusula do devido processo legal, em sua origem inglesa (law of the land ou per legem terrae), tinha caráter nitidamente processual[21], porque estabelecia “garantias processuais que, alargadas no decorrer dos séculos, impedissem interferência do arbítrio na supressão de direitos fundamentais à vida, liberdade e propriedade” aos súditos da coroa[22]. Na primitiva concepção exigia-se apenas processo judicial formalizado, no sentido de um processo ordenado (orderly proceedings), vindo a enriquecer-se ao longo do tempo e do aperfeiçoamento das instituições políticas e jurídicas inglesas, passando a compreender também as necessidades da prévia citação para a demanda e da oportunização da defesa, resumidas na fórmula notice and hearing[23]. Sob a ótica jusnaturalística, a cláusula foi concebida como aphoristic expression of the soul of due process, alcançando na Petition of Rights, de 1628, a garantia de que ninguém poderia ser preso “sem a evidência de uma justa causa (without any cause showed)”[24].

No direito estadunidense, até a edição da Emenda XIV foi analisado apenas um caso acerca da aplicação da norma pela Suprema Corte, versando sobre a constitucionalidade da lei que permitia ao Fisco a venda de bens de contribuinte faltoso, para satisfação do seu crédito tributário[25]. Entretanto, foi em solo norte-americano que brotou a semente da substantivação da cláusula, muito embora plantada na Inglaterra sob a doutrina de Edward Coke, ao defender a necessidade de impor limites (também) ao Parlamento pelos seus atos desarrazoados[26], o que a magistratura britânica o fazia apenas veladamente – sem resistir frontalmente à tirania do Parlamento –, a pretexto de interpretar as leis[27]. Na Constituição norte-americana forjou-se o primeiro governo limitado em todas as esferas (Executiva, Legislativa e Judiciária), em função da estrutura política (federação/república), da tripartição dos poderes e das garantias dos direitos individuais, consagrando a supremacia da Lei Maior sobre a legislação ordinária e atribuindo ao Judiciário o protagonismo da sua guarda[28], elementos que mais tarde fundamentariam a dimensão substantiva do due process of law.

Fundada nessas premissas, a corrente jusfilosófica do realismo jurídico que se fez marcante no direito norte-americano, aliada ao pensamento da interpretação dinâmica da Constituição, encontrou na expressão positivada do due process of law o “veículo de atuação a todo um indefinido e indefinível corpo de ‘leis naturais”[29]. Apesar de concebida sob uma ótica unicamente processual, a vagacidade da expressão e a referência à proibição da infringência dos direitos fundamentais relacionados à liberdade, vida e propriedade, corroboraram a utilização da cláusula do devido processo legal como o “instrumento hábil a amparar a expansão das limitações constitucionais ao exercício do poder legislativo federal e estadual”[30]. Nesse sentido, Mendes (2013, p. 430) leciona que a cláusula tornou-se o enunciado normativo suficiente “para o reconhecimento e proteção de garantias constitucionais materiais ou substantivas não expressamente positivadas no texto constitucional”. Nessa lógica, o dispositivo foi aos poucos sendo alargado para permitir a interpretação elástica, o mais amplamente possível, em nome dos direitos fundamentais do cidadão e, paralelamente, os diplomas legais dos países do common law foram positivando desdobramentos processuais da garantia[31].

A Suprema Corte norte-americana, a despeito da prática de invalidação de leis em face das Constituições (estaduais) levada a cabo por Cortes provincianas, somente veio a realizar o controle das legislaturas com fundamento na cláusula do devido processo legal a partir de 1878 (Davidson v. New Orleans, 96 US 97, 24 L. Ed. 616), precedente seguido por outros dois para consagrar o princípio[32]. Não obstante a sua aplicação por mais de um século, aquela Corte Constitucional ainda não formulou um conceito preciso acerca da cláusula, alternando-se os juízes entre a fluidez do Direito Natural e o não menos impreciso standard de razoabilidade das leis[33]. Essa recusa da Suprema Corte americana de definir o que seria due process of law também é registrada por Nery Jr (2010, p. 86), que informa que a Corte “aplicava os ‘princípios fundamentais da liberdade e justiça’ como justificadores da cláusula constitucional”, determinando a natureza do processo (civil ou penal) o alcance do postulado.

3.1 Dimensão processual

O procedural due process é como foi concebida a norma originalmente, no direito inglês. Pela chamada process oriented theory, ou “teoria do processo devido por qualificação legal”, a “tônica dessa concepção está, por conseguinte, na observância ou inobservância do processo (ou procedimento) criado por lei para a satisfação do ideal de uma proteção jurídica efetiva”[34]. Com efeito, a dimensão processual da cláusula do devido processo legal “nada mais é do que a possibilidade efetiva de a parte ter acesso à justiça, deduzindo pretensão e defendendo-se do modo mais amplo possível”[35]. Frisa-se que, a par do entendimento preliminar de que o princípio impõe seja a jurisdição efetivamente prestada conforme procedimentos ditados pela lei, a norma tem por objetivo assegurar a satisfação de um ideal de justiça[36].

Por oportuno, destaca-se que, apesar do enorme desenvolvimento da dimensão substancial da cláusula pela jurisprudência norte-americana, a Suprema Corte estadunidense “não tem tido uma colaboração muito grande na exata definição do alcance do devido processo legal procedimental”. Tal fato “desestimula os advogados a levarem tais questões ao conhecimento da Suprema Corte, criando um círculo vicioso” a impedir o desenvolvimento da dimensão processual do princípio. Consoante registra Claro (2005), o conteúdo procedimental da cláusula limita-se ao teste do notice and hearing, no sentido de que “cada um tenha seu dia perante a Corte”, em síntese calcado nas premissas de (a) informação, (b) defesa e (c) imparcialidade e competência do juízo.

No Brasil, Nery Jr (2010, p. 86) denomina essa dimensão de “devido processo”, apenas, aludindo a garantias processuais recorrentes na doutrina. Mendes (2013, p. 431) afirma que o devido processo legal assume, em sua dimensão processual, “uma amplitude inigualável e um significado ímpar como postulado que traduz uma série de garantias hoje devidamente especificadas e especializadas nas várias ordens jurídicas”. Dentre os princípios-guia compreendidos na norma, os quais densificam a cláusula geral, estão os (a) positivados explicitamente no art. 5º, incluindo o acesso à Justiça (inc. XXXV), o contraditório e a ampla defesa (LV), a inadmissibilidade de utilização de provas ilicitamente obtidas (LVI), a publicidade dos atos processuais (LX), o juiz natural (XXXVIII e LIII) e a razoável duração do processo (LXXVIII), além da obrigatoriedade de motivação das decisões judiciais (art. 93, IX); e (b) os implícitos no sistema jurídico, compreendendo a imparcialidade do juiz, a igualdade de armas, o direito à prova e o duplo de grau de jurisdição[37].

Com efeito, os subprincípios têm eficácia direta, ou seja, independem de intermediação legislativa, proporcionando a integração do procedimento, criando ritos necessários e impedindo aqueles desnecessários “à satisfação do ideal de um acesso efetivo à Justiça”[38]. Nesse sentido, Marinoni e Mitidiero (2014, p. 705) ensinam que o direito ao processo justo impõe “modelo mínimo de conformação do processo”, possibilitando a sua expansão, a sua variação e o seu aperfeiçoamento, trazendo “deveres organizacionais ao Estado na sua função legislativa, judiciária e executiva”. Assim a cláusula constitui “um tipo de garantia com caráter subsidiário e geral (Auffanggrundrecht) em relação às demais garantias”, configurando “um sobreprincípio que articula e alimenta diversas garantias fundamentais processuais previstas na Constituição de 1988”, atuando como “vetor interpretativo e norma de integração de outras garantias processuais constitucionais”[39].

Por último, faz-se necessário estabelecer a diferença entre o princípio do acesso à justiça e o do devido processo legal, porque aquele é pressuposto (acesso) e objetivo (justiça) deste último, enquanto o devido processo contempla o conteúdo (processual) da jurisdição, não podendo ser o primeiro o conteúdo do segundo, consoante a lição de Mattos (2005):

Por um lado, o devido processo legal pressupõe o acesso à jurisdição, entendido como princípio definidor do direito de provocar a atuação dos órgãos do Poder Judiciário. Com J. J. Gomes Canotilho, “o direito de acesso aos tribunais implica o direito ao [devido] processo”. Isto é, a garantia do acesso à Justiça “tem como conteúdo o direito ao processo, com as garantias do devido processo legal”.

Por outro lado, o acesso à Justiça, compreendido como princípio definidor do direito de obter, em prazo razoável, uma decisão justa e eficaz, ou seja, uma proteção jurídica efetiva, é o objetivo final do devido processo legal. Para Cândido Rangel Dinamarco, o processo justo se configura como “autêntico instrumento de condução à ordem jurídica justa”.

Aliás, segundo a lição de Michele Taruffo, a observância do devido processo legal é um dos três requisitos necessários de uma decisão justa – os outros dois são “a correção da escolha e da interpretação da norma jurídica aplicável ao caso” e a “reconstrução, tão completa quanto possível, dos fatos relevantes do caso”.

Assim já se pronunciou o STF: o princípio do due process of law significa, in verbis, “a garantia plena de um julgamento imparcial, justo, regular e independente” (Tribunal Pleno, Extr. 633-República da China, rel. Min. Celso de Mello, j. 29.08.1996, DJ 06.04.2001, p. 67).

Como se vê, o acesso à Justiça, na medida em que impõe que “o sistema deve ser igualmente acessível a todos” e, além disso, “produzir resultados que sejam individual e socialmente justos”, revela-se, a um só tempo, como pressuposto e objetivo final do devido processo legal. Por isso, naturalmente não pode ser um dos elementos estruturais do princípio do devido processo legal, como os subprincípios da igualdade de armas, do contraditório e da ampla defesa, do juiz natural etc.

Também Claro (2005) aponta que o direito ao processo justo corresponde tecnicamente ao devido processo legal, e não à garantia do acesso à jurisdição. Explica que as duas grandes virtudes do acesso à Justiça (art. 5º, XXXV, da CF) são a garantia da inafastabilidade (direito de ação) e a possibilidade de prevenção, resumindo que “não se pode enxergar justo processo onde só existe inafastabilidade”. E, conclui, com fundamento na doutrina italiana, que “quem atua como cláusula aberta é o devido processo legal, e não a inafastabilidade”.

3.2 Dimensão substancial

Para a doutrina do value oriented theory, ou “teoria substantiva”, o devido processo legal “não é apenas um processo (ou procedimento) legal ou ordenado, mas, além disso, um processo justo ou adequado, que tem por objeto, naturalmente, a realização do ideal de protetividade dos direitos”[40]. Claro (2005), citando Farber, Eskridge e Frickey (1993, p. 386), indica o raciocínio da teoria: “The theory behind ‘substantive’ due process is that someone is deprived of their property without due process of law if the deprivation is based on arbitrary legislative fiat”. Mendes (2013, p. 430) resume que, na realidade norte-americana, o devido processo legal substantivo constitui “fundamento principal para o reconhecimento de vários direitos e liberdades ‘substantivas’ (substantive rights and liberties)”, servindo para controle de constitucionalidade dos atos estatais violadores desses direitos. Complementa que a dimensão substantiva da cláusula consolidou-se, a despeito das críticas, na prática constitucional estadunidense como o “fundamento da judicial review dos atos estatais (legislativos) em seu aspecto material ou substantivo, a denominada substantive due process review of legislation”. Sobre a aplicação da concepção substantiva do devido processo legal no direito estadunidense, Nery Jr (2010, p. 85) traz exemplos:

Vamos encontrar outros exemplos de incidência do substantive due process no direito americano, o que nos dá a dimensão do alcance do preceito: a) a liberdade de contratar, consubstanciada na “cláusula de contrato”, afirmada no caso Fletcher v. Peck (1810) em voto de Marshall; b) a garantia do direito adquirido (vested rights doctrine); c) a proibição de retroatividade da lei penal; d) a garantia do comércio exterior e interestadual (commerce clause), fiscalizados e regrados exclusivamente pela União (CF 22 VIII; art. 1.º , Secção 8.ª, n. III, da Constituição norte-americana); e) os princípios tributários da anualidade, da legalidade, da incidência única (non bis in idem) etc.; f) a proibição de preconceito racial; g) a garantia dos direitos fundamentais do cidadão.

Porém, parte da doutrina nacional questiona a existência da dimensão substancial do princípio do devido processo legal no direito interno, da maneira como praticada na doutrina americana: ou porque se nega a relação de conteúdo que se estabelece entre esse aspecto e o postulado da razoabilidade/proporcionalidade (ÁVILA, 2008, p. 59), ou porque a natureza do princípio é exclusivamente procedimental, no sentido de estabelecer ampla protetividade aos direitos fundamentais apenas sob a perspectiva do processo (Marinoni; Mitidiero, 2014, p. 704), ou porque não se deve trazer para o Brasil a amplitude do controle de mérito dos atos estatais numa perspectiva jusnaturalista (CLARO, 2005).

Ávila (2008, p. 57) argumenta que a cláusula do devido processo legal compreende uma única feição: a procedimental. Aduz que a norma consiste num “dever de proteção de realização dos princípios”, traduzindo-se no ideal de protetividade de direitos fundamentais mediante a garantia de um processo justo e compatível com o ordenamento jurídico. Aduz que para alcançar esse “ideal de protetividade” o constituinte fez constar outros princípios específicos, como o juiz natural (art. 5º, XXXVII) e imparcial (art. 95), a ampla defesa e o contraditório (art. 5º, LV), a necessidade de motivação das decisões (art. 93, IX) etc. Nesse quadro constitucional, cabe ao princípio do devido processo legal as funções (a) integrativa, criando elementos outros não enunciados, mas necessários à promoção do ideal de protetividade; (b) interpretativa, das regras expressas para otimização da protetividade; (c) bloqueadora, da eficácia das normas incompatíveis com a proteção; e (d) rearticuladora, dos elementos específicos já previstos na Constituição[41]. Diante disso, sustenta ser equivocado cogitar de devido processo legal na dimensão “substancial”, como faz a doutrina brasileira ao associar tal vertente aos postulados da razoabilidade e proporcionalidade, porque estes encontram fundamento no dever de realização dos princípios da liberdade e da igualdade[42].

Marinoni e Mitidiero (2014, p. 704) criticam que a dimensão substantiva do princípio do direito norte-americano não se enquadra no Brasil, onde “inexiste necessidade de pensa-la para além de sua dimensão processual”. Acrescem aos ensinamentos de Ávila que até mesmo no direito estadunidense o entendimento de que razoabilidade corresponde à dimensão substancial do devido processo legal “não se afigura correto”. Além disso, sustentam que o reconhecimento de princípios jurídico-constitucionais implícitos prescinde de se recorrer ao conceito de devido processo legal substantivo, porquanto a Constituição Federal conte com um catálogo aberto de direitos fundamentais com cláusula explícita no art. 5º, § 2º. Por isso esses eminentes juristas referem-se ao princípio positivado no art. 5º, inc. LIV, da Constituição Republicana como direito ao processo justo (giusto processo, procès èquitable, faires Verfharen, fair trial), com caráter puramente processual, o qual visa a assegurar a obtenção de decisão justa, constituindo o meio pelo qual se exerce uma pretensão à justiça (Justizanspruch) e pretensão à tutela jurídica (Rechtsschutzanspruch)[43].

Claro (2005) critica que tentar enxergar no art. 5º, LIV, da Constituição Federal uma “autorização para o amplo controle do mérito da legislação é tomar parte numa visão típica do direito natural, bem como aceitar a tese de que vivemos numa sociedade na qual os juízes têm a mesma função que os legisladores”. Propõe que a cláusula do devido processo legal refira-se apenas a questões processuais, de modo a deixar a “responsabilidade” pela razoabilidade dos atos estatais a cargo de outros princípios, tais como o da igualdade e da proporcionalidade. Indica que a dimensão substancial da norma recebe críticas inclusive da doutrina estadunidense, bem como boa parte das decisões da Suprema Corte “não têm aptidão para explicar o funcionamento da rule of reason em casos de judicial review”. Assevera que no direito estrangeiro a dimensão substantiva da norma fundamenta a revisão judicial dos atos estatais pelo Judiciário, mas que no Brasil a Constituição já estabelece um sistema misto de controle de constitucionalidade, o que já acontecia sob a égide dos Textos anteriores. Acentua que seria absurdo imputar ao princípio em tela “a pedra angular do controle da constitucionalidade, bem como é absurdo supor que as idéias de igualdade e proporcionalidade num senso substancial também encontram fundamento no devido processo legal”. E conclui que “acolher a tese do devido processo substancial é dar uma carta em branco ao Judiciário para que assuma toda e qualquer função do legislador, retomando as posições extremistas do realismo jurídico e de todas as outras formas de voluntarismo judicial”, quando em verdade o direito brasileiro “goza de instrumentos mais aptos e confiáveis para realizar as mesmas funções”.

Diante desses fundamentos, enxerga-se a dimensão substancial da norma no âmbito do sistema jurídico brasileiro com outros contornos, que não aqueles produzidos na jurisprudência norte-americana, mais afinados, isto sim, com a doutrina europeia do civil law. Theodoro Júnior (2016, p. 48) entende que a dimensão substantiva da cláusula, bem como o seu aspecto procedimental, está contida na ideia de devido processo legal como processo justo. Com efeito, há um dever do processo “adequar-se a realizar o melhor resultado concreto, em face dos desígnios do direito material”, para se alcançar justiça, em especial pela via da interpretação jurídica em consonância com as normas fundamentais. Isso porque no Estado Democrático de Direito da atualidade impõe-se, além das garantias de ordem processual, a aplicação do direito com observância da supremacia da Constituição, não se limitando o juízo a meramente reproduzir os enunciados determinados pelo legislador, mas devendo alcançar provimento jurisdicional substancialmente compatível com os direitos fundamentais. É nesse sentido que o renomado jurista entende a dimensão substancial do devido processo legal, sob um viés interpretativo desenvolvido no processo que faz prevalecer o direito material à luz das normas e dos valores constitucionais. Mas adverte o Professor que não se tratam as dimensões processual e substancial do devido processo legal de realidades jurídicas distintas, porque o princípio em destaque liga indissociavelmente as garantias processuais à função de se obter provimento materialmente justo, sendo este o objetivo substancial do “processo justo”[44].

Mais especificamente, Mendes (2013, p. 430) relaciona a dimensão substancial do princípio do devido processo legal à proteção da dignidade da pessoa humana, positivada no art. 1º, III, da CF, e à ideia de Estado Democrático de Direito. Considera que “a aplicação escorreita ou não dessas garantias processuais é que permite avaliar a real observância dos elementos materiais do Estado de Direito”, voltado à garantia e proteção dos direitos fundamentais. Assim é que o princípio da dignidade da pessoa humana “impede que o homem seja convertido em objeto dos processos estatais”, concebendo a dimensão substancial do princípio como “processo estabelecido de forma adequada e proporcional à garantia efetiva dos direitos e liberdades básica dos indivíduos”, vinculando também a legislação.

4 princípios da razoabilidade e da proporcionalidade

Para analisar o princípio da proporcionalidade, vamos primeiramente ao direito comparado, considerando que essa norma adquiriu forte projeção na comunidade europeia – “europeização do princípio” –, devido ao cruzamento de várias culturas jurídicas do velho mundo: na Inglaterra, adotou-se a rule of reasonableness desde o século XVIII, a qual influenciou a jurisprudência do common law por causa da regra do precedente; na Prússia, Verhältnismässigkeit; na França, détournment du povoir; e na Itália, eccesso di potere[45].

Com efeito, há diversos entendimentos acerca do princípio: no common law, o conceito de princípio do devido processo legal, inicialmente concebido na condição de garantia puramente processual, foi ampliado para constituir uma feição substantiva, incluindo o teste de racionalidade e o padrão de razoabilidade para aferição da legalidade da legislação[46]; na França, construiu-se a teoria do desvio de poder (desvio de finalidade), incialmente para atos administrativos e posteriormente para atos legislativos, configurando o desvio a ação de órgãos estatais que “vai além da medida, constrangendo ou inviabilizando o fluxo regular de garantias e direitos individuais ou coletivos”[47]; na Itália, a ideia de razoabilidade “está estreitamente ligada à discricionariedade”, encontrando-se o ato “a meio-caminho entre uma situação de absoluta vinculação (vinculabilidade) à observância de uma norma e uma situação de completa liberdade” quanto à determinação do comportamento[48]; na Espanha, o princípio da razoabilidade encontra sinônimo na proibição de arbitrariedade, como decorrência do próprio Estado de Direito, a indicar a “adequação de meios a fins […] sem se sobrepor totalmente à ideia de oportunidade, mérito ou conveniência da medida adotada, que cai dentro do âmbito político”[49]; e, em Portugal, refere-se ao princípio da proibição do excesso, que impõe, além da proibição do arbítrio, a observância dos postulados da exigibilidade, da adequação e da proporcionalidade[50].

A doutrina nacional associa o princípio da proporcionalidade à dimensão substantiva do devido processo legal. Em especial porque a experiência estadunidense influenciou a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que passou a reconhecer na dimensão substancial do princípio “a finalidade de realizar o controle de razoabilidade e de proporcionalidade das leis”, tornando-se a cláusula insculpida no art. 5º, LVI, da CF o fundamento constitucional para os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, em especial para aplicação do controle de constitucionalidade dos atos legislativos [51]. Outrora, a jurisprudência do STF assentou que “transgride o princípio […] – na perspectiva material ou substantiva […] – o ato estatal considerado irrazoável ou violador do princípio da proporcionalidade”[52]. Ocorreu que, embora a proibição do excesso já fosse aplicada no direito pátrio antes mesmo da Constituição Federal de 1988, a jurisprudência nacional encontrou na novel cláusula do devido processo legal o fundamento positivado do princípio da proporcionalidade.

Ao que tudo indica, há uma confusão entre as dimensões substanciais de ambos os princípios, que se voltam em última instância ao valor justiça. Canotilho (2003, p. 268) explica que, no seu surgimento, o princípio da proibição do excesso já trazia uma noção substancial de justiça, mas de forma eminentemente voltada à mera “revelação de sintomas de patologias administrativas – arbitrariedade, exorbitância […] – do que de um princípio material de controlo das atividades dos poderes públicos”. Aduz que somente no pós-guerra o instituto expande suas possibilidades, com o comprometimento da “radicação de um direito materialmente justo”: na Inglaterra, busca-se o sentido substantivo pela manifest unreasonableness; na França, pelo erreur manifest d’apréciation; na Alemanha, pela übermassverbot; na Itália, pela manifesta illogicità, congruità e ragionevolezza; e, em Portugal, pelo princípio da proibição do excesso. Resume o autor acerca da dimensão substancial do princípio da proporcionalidade: 

Trata-se, afinal, de um controlo de natureza equitativa que, não pondo em causa os poderes constitucionalmente competentes para a prática de actos autoritativos e sem afectar a certeza do direito, contribui para a integração do ‘momento de justiça’ no palco da conflitualidade social”.

[…]

As medidas restritivas dos direitos fundamentais devem ser proporcionais ao fim visado e jamais atingirem a substância do direito.

Também Hovarth (2002, p. 57) afirma a dimensão substancial do princípio da razoabilidade ao conceber que a norma “leva implícita a contraposição com referência à discricionariedade”, razão pela qual deve atender a três tipos de regras: (a) procedimento, por meio do qual o poder é exercido; (b) legitimação, do órgão para adotar a decisão; e (c) substância da decisão, isto é, se ela buscou razoavelmente “os objetivos da legislação que lhe conferiu o poder”[53].

Nesse cenário, a associação entre devido processo legal (art. 5º, LIV) e o princípio da proporcionalidade não escapam às críticas da doutrina, embora haja acentuada divergência quanto à concepção da última norma: (a) ora vendo como “sobreprincípios de interpretação de normas” (Hovarth, 2002, p. 57), (b) ora como decorrentes do “próprio sistema de princípios protegido constitucionalmente” (ÁVILA, 2008, p. 56), (c) ora como dever implícito do próprio Estado de direito (CANOTILHO, 2003, p. 267), de qualquer forma prescindindo de enunciado legal expresso.

Canotilho (2003, p. 267) elucida que na doutrina portuguesa o princípio da proibição do excesso ora se fundamenta no Estado de direito, ora como conexa aos direitos fundamentais. Hovarth (2002, p. 53), a seu turno, concebe a razoabilidade como princípio constitucional implícito, sendo um conceito aplicável a todos os “ramos” do direito, permeando a interpretação jurídica. Nessa linha, “a Administração, ao atuar no exercício de discrição, terá de obedecer a critérios aceitáveis do ponto de vista racional”, aplicando-se à discricionariedade administrativa, legislativa e judicial, porque a conveniência e a oportunidade estão limitadas pela Constituição[54]. O professor segue o ensinamento de longa data de Tácito (1996, p. 07), para quem “A rigor, o princípio da razoabilidade filia-se à regra da observância da finalidade da lei que, a seu turno, emana do princípio da legalidade”, cuja noção pressupõe a “harmonia perfeita entre os meios e os fins, a comunhão entre o objeto e o resultado do ato jurídico”.

Ávila (2008, p. 52) critica a associação entre dimensão substancial do princípio do devido processo legal e os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, afirmando que estes se tratam de consectários lógicos de realização dos princípios; com efeito, o professor nega a própria dimensão material do princípio do devido processo legal. Sobre o postulado da proporcionalidade, o jurista associa-o ao dever de realização dos princípios como forma de proteção da liberdade, pois a própria adoção de um princípio pelo direito “já impõe a adoção daquelas condutas adequadas e indispensáveis à sua promoção”, pois não há a proteção da liberdade “mais” os deveres de adequação, de necessidade e de proporcionalidade. Nessa lógica, a realização um princípio exige, por si só, que seja feita (a) de modo adequado, porquanto “com condutas inadequadas à sua promoção ela não se realiza”; (b) na medida do necessário, considerando que há mais de um princípio protegido pelo sistema jurídico, para que minimamente se restrinja outro fim; e (c) de forma a proporcionar a ordem jurídica, numa visão de conjunto, de modo a produzir efeitos que mais a promova do que a restrinja. Conclui que esses postulados não têm conteúdo normativo próprio, mas sim constituem “deveres implicados na sua própria positivação e […] estruturam a própria realização dos princípios”[55]. Sobre o dever de razoabilidade, o professor o deduz a partir do critério de igualdade, considerando que “a mera instituição do dever de igualdade já impõe a escolha de critérios razoáveis”, assim considerando aqueles que têm “uma relação fundada e conjugada de pertinência com a finalidade da diferenciação”, concluindo que o dever de razoabilidade decorre da própria positivação do princípio da igualdade, integrando o seu conteúdo normativo[56]. Nessa esteira, distinguindo os princípios da proporcionalidade, da razoabilidade e do devido processo legal, o professor fundamenta o último no dever de proteção da realização de princípios, atuando o processo tanto para promover os princípios da liberdade e da igualdade quanto para obstar condutas inadequadas, desnecessárias ou desproporcionais à sua promoção, posto ser da própria instituição dos princípios que surge o direito a um processo justo ou adequado, pois “onde há um direito, deve haver um instrumento adequado à sua proteção”, cuja aferição de justeza é feita também pelos deveres da razoabilidade e proporcionalidade[57]. Com base nessas premissas, Ávila (2008, p. 56) conclui que os deveres de proporcionalidade e razoabilidade não decorrem da norma do devido processo legal (substancial) porque (a) encontram fundamento no dever de realização dos princípios da liberdade e igualdade; (b) podem ser aplicados mesmo fora do âmbito processual; (c) eram aplicados mesmo antes da positivação do princípio em destaque pela Constituição Republicana de 1988, assim como é aplicado em culturas jurídicas outras sem tal enunciado constitucional; e (d) entendimento diverso ensejaria a conclusão de que não estão presentes tais deveres no “devido processo legal procedimental”, o que não se afigura correto.

Com base nessas lições, independentemente da concepção acerca de natureza dos deveres de razoabilidade e de proporcionalidade, não vemos a correspondência exata entre a dimensão substancial do princípio do devido processo legal – voltado ao ideal de proteção jurídica justa – e os postulados em destaque – de aplicação das normas restritivas de direitos fundamentais.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A par do exposto, o princípio do devido processo legal pressupõe a inafastabilidade da Jurisdição e determina o conteúdo procedimental e organizacional da atuação Estatal, nas esferas Legislativa, Executiva e Judiciária, a fim de que se possa lograr proteção jurídica justa, funcionando especialmente como sobreprincípio de articulação, integração e interpretação das normas que lhe densificam.

Certamente há uma dimensão substancial do princípio do devido processo legal. Porque a cláusula consiste em consectário do princípio do Estado de Direito, o qual contém dimensões substancial e formal, buscando “conformar as estruturas do poder político e a organização da sociedade segundo a medida do direito”, com “profunda imbricação entre forma e conteúdo no exercício de atividades do poder público”[58]. Logo, assim como o sobreprincípio que lhe fundamenta, também compreende ambas as dimensões, consistindo o aspecto material no ideal de proteção jurídica materialmente justa, intimamente relacionada com a proteção dos direitos fundamentais.

Todavia, é necessário perceber a sutileza de que “um princípio jurídico é inconcebível em estado de isolamento”, figurando “sempre relacionado com outros princípios e normas, que lhe dão equilíbrio e proporção e lhe reafirmam a importância.”[59]. Por isso as mais diversas alusões que se fazem à dimensão substancial da norma – (a) enquanto fundamentação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, (b) na condição de cláusula de abertura dos direitos fundamentais e ainda (c) como autorização para controle dos atos estatais – apenas a corroboram, não se confundindo com ela. Não obstante, considerando que as normas se relacionam reciprocamente, inclusive podendo haver reafirmação de uma por outra, é necessário precisar cada vez mais cada uma delas – seu sentido, conteúdo e alcance –, o que propicia a maior especialização do seu conteúdo jurídico.

REFERÊNCIAS

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CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Portugal: Almeidina, 2003.

CARRAZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 31 ed. São Paulo: Malheiros, 2017. 1328 p.

CLARO, Roberto del. Devido processo legal: direito fundamental, princípio constitucional e cláusula aberta do sistema processo civil. Revista de Processo, São Paulo, v. 126, p.260-294, ago. 2005. Mensal.

DÓRIA, Antonio Roberto Sampaio. Direito constitucional tributário e “due process of law”. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986. 215 p.

HOVARTH, Estevão. O princípio do não-confisco no direito tributário. São Paulo: Dialética, 2002. 159 p.

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 38 ed. São Paulo: Malheiros, 2017. 560 p.

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MATTOS, Sérgio Luís Wetzel de. O princípio do devido processo legal revisitado. Revista de Processo, São Paulo, v. 120, p.263-288, fev. 2005. Mensal.

MENDES, Gilmar Ferreira. Art. 5o, LIV. In: CANOTILHO, J. J. Gomes et al (Org.). Comentários à Constituição do Brasil. 1 ed, 4 tir.São Paulo: Saraiva/almedina, 2013. p. 427-432.

NERY JR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal. 10 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. 416 p.

TÁCITO, Caio. A razoabilidade das leis. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 204, p.01-07, abr.-jun. 1996. Trimestral. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/download/46749/46375. Acesso em: 1º de maio 2018.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 57. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. Vol I. 1244 p.



[1] Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Pós-Graduado Lato Sensu em Direito e Processo do Trabalho e em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera – Uniderp. Mestrando em Direito Constitucional e Processual Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Procurador do Estado de São Paulo. E-mail: laurotbcamara@gmail.com.

[2] Dória, 1986, p. 10.

[3] Ibid., loc. cit.

[4] Ibid., loc. cit.

[5] Ibid., loc. cit.

[6] Ibid., p. 09.

[7] Ibid., p. 10.

[8] Ibid., loc. cit.

[9] Ibid., p. 12.

[10] Nery Jr, 2010, p. 80.

[11] Dória, op. cit., p. 12.

[12] Ibid., p. 14. No mesmo sentido: Claro, 2005.

[13] Nery Jr, 2010, p. 81.

[14] Dória, op. cit., p. 15.

[15] Ibid., p. 16.

[16] Ibid., p. 17.

[17] Mott, 1958, p. 25, apud Dória, 1986, p. 14.

[18] Nery Jr, op. cit., p. 83.

[19] Marinoni e Mitidiero, 2014, p. 703.

[20] Marinoni e Mitidiero (2014, p. 704) criticam o termo “legal”, pois remete ao contexto do “Estado de Direito”, em que o processo era concebido unicamente como “anteparo ao arbítrio estatal”, enquanto atualmente, no “Estado Constitucional”, o processo tem por missão “colaborar na realização da tutela efetiva dos direitos mediante a organização de um processo justo”.

[21] Nery Jr, op. cit., p. 83.

[22] Dória, op. cit., p. 12.

[23] Ibid., p. 13.

[24] Ibid., p. 14.

[25] Ibid., p. 19.

[26] Ibid., p. 21.

[27] Ibid., p. 23.

[28] Ibid., p. 24.

[29] Ibid., p. 30.

[30]Ibid., loc. cit.

[31] Nery Jr, op. cit., p. 83.

[32] Dória, op. cit., p. 31. Precedentes: Barbier v. Connolly, 113 US 27, 28 L. Ed. 923 (1885) e Allgeyer v. Louisiana, 165 US 578, 41 Ed. 832 (1897).

[33] Ibid., p. 32.

[34] Mattos, 2005.

[35] Nery Jr, op. cit., p. 87.

[36] Mattos, op. cit.

[37] Mattos, op. cit. Adverte-se de que o Supremo Tribunal Federal refuta o princípio do duplo grau de jurisdição obrigatório (Pleno, RHC 79.785-RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 29/03/2000, DJ 22/11/2002, p. 57).

[38] Ibid.

[39] Mendes, 2013, p. 431.

[40] Mattos, 2005.

[41] Ávila, 2008, p. 58. No mesmo sentido: Marinoni e Mitidiero, 2014, p. 710.

[42] Ávila, op. cit., p. 59.

[43] Marinoni e Mitidiero, 2014, p. 706. Acerca da doutrina que enxerga a cláusula do devido processo legal como “justo processo” (fair procedure), negando ao princípio a dimensão substancial, Nery Jr (2010, p. 88) esclarece que se trata de influência de doutrina italiana, que não se aplica ao direito pátrio porque o art. 111 da Constituição da Itália denomina a “parte processual” do instituto do due process of law de giusto processo, enquanto a Constituição brasileira “trata não só do aspecto processual, mas do instituto do devido processo legal em sua inteireza, material e processual” (art. 5º, LIV), concluindo que o direito à tutela jurisdicional adequada (justa) está garantido na ordem jurídica nacional pelo art. 5º, inc. XXXV, da CF (Nery Jr, 2010, p. 90).

[44] Theodoro Júnior, 2016, p. 50.

[45] Canotilho, 2003, p. 267.

[46] Hovarth, 2002, p. 55.

[47] Tácito, 1996, p. 02.

[48] Pizzorusso, 1986, p. 795, apud Hovarth, 2002, p. 56. Vipiana (1993, p. 10, apud Hovarth, 2002, p. 56) explica que a ideia de razoabilidade é bastante utilizada como sinônimo dos conceitos de racionalidade e de logicidade na jurisprudência administrativa italiana, embora se possa estabelecer uma distinção entre esses termos: racionalidade é “a coerência lógica com um princípio preestabelecido” e razoabilidade, “a adequação de um valor de justiça”.

[49] Naveira, 1997, p. 264, apud Hovarth, 2002, p. 55.

[50] Canotilho, 1998, p. 1.039, apud Hovarth, 2002, p. 57.

[51] Mendes, 2013, p. 430.

[52] Ibid., p. 431.

[53] Vipiana, 1993, p. 42-43, apud Hovarth, 2002, p. 57.

[54] Hovarth, 2002, p. 53.

[55] Ávila, 2008, p. 52.

[56] Ibid., p. 53.

[57] Ibid., p. 54.

[58]Canotilho, 2003, p. 255.

[59] Carraza, 2017, p. 51.

Como citar e referenciar este artigo:
CÂMARA, Lauro Tércio Bezerra. Considerações acerca da dimensão material do princípio do devido processo legal. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2019. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/consideracoes-acerca-da-dimensao-material-do-principio-do-devido-processo-legal/ Acesso em: 29 mar. 2024