Direito Constitucional

O controle social-democrático da Administração Pública: uma proposta para regulamentação do art.74, § 2º da Constituição Federal de 1988

Erick Beyruth de Carvalho [1]

Alexandre Castro Sousa [2]

SUMÁRIO: Introdução; 1. Premissas para um direito administrativo (e) constitucional; 2. Administração Pública e a fórmula política do Estado Democrático de Direito; 3. Um novo direito administrativo?; 4. O Controle social-democrático e a necessidade de regulamentação do art.74, § 2º; Considerações Finais

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo apresentar uma proposta de regulamentação do art.74, § 2º da Constituição Federal de 1988 que trata do controle externo das contas públicas pelo cidadão. A hipótese é de que a Constituição, ao prever esse direito, o condicionou a edição de lei complementar. O fato de não haver lei complementar, no entanto, não obsta por completo o direito do cidadão de denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União. Segundo a doutrina, o cidadão pode se valer das ações constitucionais como a ação popular e o direito constitucional de petição. Porém, o direito constitucional de petição é pouco utilizado e não possui balizas muito claras sobre o prazo de resposta, a vinculação da denúncia, a forma em que deve se apresentado e a citação do Ministério Público. Tendo em vista essa omissão legislativa, busca-se a apresentação dos parâmetros para uma possível regulamentação do instituto via lei complementar.  

Palavras chave: direito constitucional – democracia participativa – direito administrativo – controle popular .

ABSTRACT:

The purpose of this article is to present a proposal for the regulation of art.74, § 2 of the Federal Constitution of 1988, which deals with the external control of public accounts by the citizen. The hypothesis is that the Constitution, in predicting this right, conditioned the edition of complementary law. The fact that there is no complementary law, however, does not completely impede the citizen’s right to report irregularities or illegalities before the Court of Audit of the Union. According to the doctrine, the citizen can use constitutional actions such as popular action and constitutional right of petition. However, the constitutional right of petition is little used and does not have very clear markings on the deadline for reply, the linkage of the complaint, the form in which it should be presented and the citation of the Public Prosecution Service. In view of this legislative omission, it is sought to present the parameters for a possible regulation of the institute through complementary law at the federal level

Keywords: constitutional law – participatory democracy – administrative law – popular control.

INTRODUÇÃO

Em seu conto A sereníssima República, Machado de Assis – pela boca do Cônego Vargas – faz uma crítica aos sistemas político-eleitorais – usando como alegoria a criação de um sistema social – uma República nos moldes de Veneza – para um grupo de aranhas. Para cultivar esse sistema de governo, o Cônego Vargas se vale do emprego da língua das aranhas (era uma espécie diferente de aracnídeo que tinha o dom da fala) e o medo que lhes infligia. As aranhas achavam que Vargas era o Deus delas. A proposta ao restaurar a república de Veneza como forma de governo era a de ter um sistema imune aos vícios, paixões, corrupções e desejos a que está submetido um sistema eleitoral guiado pelo voto popular. Na sereníssima república, os candidatos são escolhidos por um sorteio. As bolas com os nomes são jogadas dentro de um saco urdido pelas aranhas e de lá sai o vencedor. O sistema que se queda perfeito, pois imune aos defeitos do homem, mostra-se vulnerável. Uma série de fraudes, contratempos e debates ideológicos leva a constante reforma do sistema. Sem sucesso. “Infelizmente senhores, o comentário da lei é a eterna malícia” anunciou Vargas diante das eternas mudanças a que se submetia o sistema da sereníssima república.

Em suma, em que pesem as diversas interpretações dos contos machadianos, na Sereníssima República pode-se extrair uma crítica aos sistemas políticos e, em especial, a conduta humana diante do poder. Por mais perfeito que seja um sistema político, ele é formado por humanos e estes, por sua vez, tendem a se corromper – e corromper à lei – na busca e manutenção do poder e dos interesses privados.

A literatura muito contribui para compreensão das estruturas políticas, sociais e humanas. É com um conto machadiano – grande intérprete do homem e suas angústias – que pretendemos introduzir o estudo de um tema que, ainda que distante da literatura, muito pode aprender com ela.

A crise das democracias contemporâneas e a necessidade de uma reforma administrativa para oxigenar a estrutura burocrática estatal é um tema que há tempos permeia os debates no campo do ciência e da prática jurídica. Porém, o que se entende por reforma administrativa? Pode-se dizer que a reforma está ligada intimamente com a necessidade de modernização da Administração. Nesse sentido, alguns pontos devem ser levados em conta como, por exemplo: uma Administração eficiente para atender adequadamente às necessidades da população, bem como uma Administração que preze pelos resultados e pela publicidade dos atos (MEDAUAR, 2003). Entre as mais diversas medidas que podem ser tomadas para se alcançar esse objetivo, o presente estudo vai dar ênfase a implantação dos controles de resultados e gestão e a democratização da Administração Pública, através daquilo que nomeamos “controle social-democrático”.  

1. Premissas para um direito administrativo (e) constitucional

Apesar de não ter a mesma notoriedade que o direito constitucional, o direito administrativo é tão importante quanto. É o “Direito Público do quotidiano”, nas palavras de Caio Tácito citando Benoit. É a ciência que estuda a Administração Pública e seus institutos, esses, que por sua vez, se manifestam através do Estado e seus órgãos na consecução do interesse público, da prestação de serviços e da produção de bens. Ademais, a Administração Pública centraliza-se no Poder Executivo, sem excluir, é claro, uma atuação em menor escala nos Poderes Legislativo e Judiciário.

O direito constitucional concentra os debates mais acalorados sobre os direitos fundamentais, os direitos humanos, as liberdades individuais entre outras categorias de grande importância no cenário jurídico. Porém, o direito administrativo está mais próximo dos cidadãos. É o ramo do direito que vai regular atividades que afetam diretamente o dia-dia, como procedimentos para retirada de carteira de motorista, licenças para pequenos negócios, obras públicas, serviços públicos, o acesso a repartições entre outros, de modo que alguns autores advogam que o direito administrativo é mais “constitucional” do que o próprio direito constitucional, por conta da sua importância cotidiana (GINSBURG, 2010). [3]

No entanto, apesar de serem estudados como disciplinas autônomas, o direito constitucional e o administrativo compartilham da mesma matriz originária: o liberalismo político, mais especificamente o fenômeno que adveio com ele chamado constitucionalismo e a sua manifestação política que é o Estado de Direito.

O liberalismo, muito mais que um conceito jurídico, é um conceito político que advoga na limitação do poder estatal. Conjuga em si mesmo uma vertente política e econômica. A política, como vimos, se implementa através do Estado de Direito e a garantia das liberdades negativas. O liberalismo econômico, por sua vez, manifesta-se através da ingerência mínima do Estado na economia. Não é de se surpreender pois tratam-se de conceitos forjados no bojo das Revoluções Liberais, principalmente a Revolução Francesa, capitaneada pela classe burguesa que necessitava de um cenário mais favorável para os negócios, o que incluía liberdade para contratar e segurança jurídica.

Isto posto, é a partir do liberalismo político que se pode falar em “uma autonomia cientifica da Administração Pública e do Direito Administrativo”. Essa nova realidade contrasta com aquilo que ocorria nos Estados Absolutos, aonde a Administração Pública era mero instrumento a serviço do soberano, sem que a esse se opunha qualquer limitação legal. (TÁCITO, 1997)

No entanto, apesar de existir um ponto comum entre aqueles Estados que se declaram “Constitucionais” ou “de Direito”, qual seja a existência de uma Constituição – escrita ou não – que define as competências estatais e consequentemente limita a sua própria atuação, inexiste um consenso quanto ao seu desenvolvimento prático pois este se dá em diferentes cenários. Até mesmo no que toca a denominação “Estado de Direito”, pode-se notar que não existe um acordo. Etimologicamente, a palavra deriva do termo germânico Rechtsstaat – Recht (Direito) e Staat (Estado), desenvolvida na primeira metade do século XIX para se referir ao Estado moderno sob o prisma da “racionalização jurídica da vida”, bem como garantidor dos direitos fundamentais de primeira dimensão, quais sejam as liberdades públicas, como o direito à liberdade pessoal, direito de ir e vir, o governo constitucional, direitos de cidadania entre outros (BÖCKENFORDE, 2000).

Dessarte, vem do Direito Público francês uma contribuição importante para se compreender o papel da Administração Pública a partir do constitucionalismo moderno. Trata-se da diferenciação proposta pelo publicista Carré de Malberg, que contrapõe o Estado de Direito a outro modelo: o Estado de Polícia. O debate gira em torno do papel da Administração Pública – em especial o Poder Executivo – e sua vinculação à lei.

Por Estado de Polícia entende-se aquele Estado que tudo regula, no qual a autoridade administrativa atua de maneira discricionária, arbitrária e com poder decisório, sem prévia consulta aos indivíduos, impondo as medidas que considera necessárias para alcançar os fins estatais e, até mesmo, toma para si a busca da felicidade dos súditos, fazendo valer a máxima de que os fins justificam os meios (MALBERG, 2013; CANOTILHO, 2000).

Por sua vez, o conceito de Estado de Direito desenvolvido por Carré de Malberg passa diretamente pelo papel da Administração Pública, dado que este, nas suas relações com os cidadãos, submete-se ele mesmo a um regime de direito, o qual deverá observar tanto as garantias individuais quanto as regras que determinam os meios pelo qual ele deverá buscar os fins estatais, assim “em sua relação com os administrados, a autoridade administrativa não deve somente abster-se de atuar contra legem, como também está obrigada atuar somente secundum legem, ou seja, em virtude de habilitações legais”. Soma-se a isso fato de que é assegurado aos cidadãos o direito subjetivo de acionar a autoridade jurisdicional para obter à anulação, reforma ou aplicação de atos administrativos que descumpram a lei, consagrando assim o direito de ação em face do Estado. É o que contemporaneamente tem sido classificado como controle jurisdicional da Administração Pública (MALBERG, 2013).   [4]

Logo, a noção do direito administrativo como uma ciência autônoma pressupõe uma organização política prévia, que vai se dar com o direito constitucional e a Constituição como fonte e essência do poder político. Eis ai o laço constitutivo entre o direito administrativo e o constitucionalismo: a autolimitação estatal, o controle da Administração Pública, a organização política e o reconhecimento de deveres do Estado perante o cidadão.

2. Administração Pública e a fórmula política do Estado Democrático de Direito

O Estado de Direito liberal se viu diante de um grande dilema no século XIX: a incapacidade de lidar com as novas demandas sociais que advinham da Revolução Industrial e o modo de produção capitalista. Para garantir o equilíbrio das relações sociais no âmbito do trabalho, da economia e do direito, o Estado passa adotar uma posição ativa, não mais se limitando a um “não-fazer” mas tomando uma atitude positiva, um facere. Naquilo que ficou conhecido como Estado Social, representado principalmente pela Constituição do México (1917) e a Constituição de Weimar (1919), a Administração Pública começa a ter um papel mais importante.

A partir da segunda metade do século XX o mundo já havia experimentado duas Grandes Guerras e se deparado com os horrores das ideologias políticas fascista e nazista, principalmente esta última, que teve origem no centro da República de Weimar que, até então, pretendia a instalação de um Estado Social na Alemanha. O pós-Guerra mudou a maneira de se pensar o direito, principalmente na Alemanha, aonde os direitos fundamentais e os direitos humanos passam a ter um papel central na ciência – e na prática – jurídica.

Inspiração essa que, pelo menos teoricamente, foi importada para o Brasil na abertura democrática após vinte e um anos de ditadura civil-militar. A Constituição Federal de 1988 foi clara em consagrar o Título II para os Direitos e Garantias Fundamentais – sem, no entanto, esgotar aí o rol dos direitos fundamentais – demonstrando um compromisso em não repetir a sua recente história autoritária.

Contudo, ganha especial relevo a previsão do art.1º da Constituição Federal de 1988 que enuncia o modelo do Estado Democrático de Direito que, nas palavras de Willis Guerra Filho, em referência a Pablo Lucas Verdù, é a sua fórmula política [5][6]. Esse modelo legitima dois princípios: o Princípio Democrático e o Princípio do Estado de Direito. A legitimidade e a legalidade, respectivamente. O Princípio Democrático está ligado ao elemento legitimador do poder, que é o povo entendido como o conjunto de cidadãos. Por sua vez, o Princípio do Estado de Direito tem suas raízes na legalidade, na segurança jurídica e, principalmente, na observância da Constituição.

Trata-se, portanto, de dois princípios diferentes, mas não antagônicos. Um regime puramente majoritário, dissociado do império da lei, pode degenerar-se em uma ditadura da maioria, somado ao fato de que também não haveria segurança jurídica, posto que suscetível a mudanças ao sabor dos movimentos majoritários. O mesmo acontece com um regime que prescinde da legitimidade na conformação das decisões políticas e jurídicas, pois o poder seria imposto de cima para baixo, o que não difere muito de uma ditadura ou de regimes autoritários. A legitimidade e a legalidade são, portanto, complementares, essências para a formação de um regime político comprometido com os direitos fundamentais.

Entre os mais diversos direitos consagrados notam-se, com atenção, os direitos políticos e, sobretudo, o princípio da soberania popular que, pela primeira vez na história constitucional brasileira, pode ser exercida diretamente conforme o disposto no art. 1.º, parágrafo único, da Constituição.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 está no particular contexto latino-americano do século XX, rompendo com a tradição das Cartas Constitucionais fundacionais do século XIX que derivavam de um pacto entre liberais e conservadores e que, portanto, previam liberdades políticas limitadas, em contraposição a liberdades econômicas mais amplas. As novas Constituições trazem reformas com uma maior ênfase na proteção e efetivação dos direitos sociais, bem como a expansão da cidadania e, desse modo, também da democracia por meio do Texto Constitucional (GARGARELLA, 2015).

Estudos apontam que de 1978 a 2008, na América Latina, foram promulgadas cerca de 15 novas Constituições – entre elas a Constituição brasileira de 1988 –, enquanto podem-se distinguir três eventos que induzem a criação e a reforma de Constituições no contexto latino-americano. São eles: mudança no âmbito de regime político (transição de regimes autoritários para democráticos), crises políticas e mudanças nas preferências ou distribuição de poder entre os principais atores políticos (NEGRETTO, 2009, 2010).

A Constituição brasileira de 1988 surge no momento de transição à democracia, pois rompe com o regime ditatorial (LOEWENSTEIN, 1970) [7] que se estabeleceu após o Golpe de Estado de 1964 e, por conseguinte, prevê em seu texto uma série de novos direitos e garantias, tais como a liberdade de opinião e de imprensa, a diminuição da concentração de poderes no Poder Executivo, o fortalecimento do Poder Judiciário, bem como a ampla proteção aos direitos individuais e coletivos conferidos pelo art. 5.º da Constituição Federal de 1988 e também de maneira esparsa no Texto Constitucional. É imperioso mencionar, também, a previsão das ações constitucionais, tais como o mandado de segurança, o habeas data, o mandado de injunção, a ação direta de inconstitucionalidade – por ação e por omissão –, bem como a ação popular (ROSEN, 1990).

A nova fórmula política enunciada pela Constituição e a sua dimensão democratizante, no entanto, parecem não ter se estendido para a prática na Administração Pública. Em regra, quando existe a transição de um regime ditatorial para um regime constitucional e democrático, é comum que também se substituam as bases da burocracia estatal para aumentar a eficiência, bem como os controles e participação da sociedade civil – o que não houve no Brasil.

Essas são as considerações de Gilberto Bercovici que, citando a célebre frase do administrativista alemão Otto Mayer – “o direito constitucional passa, o direito administrativo fica” – afirma que a aparato burocrático criado no período ditatorial (1964-1985) continuou após a promulgação da Constituição de 1988. O marco inicial utilizado pelo autor é o Decreto 200/1967 que instituiu o PAEG (Plano de Ação Econômica e Governo) que, em linhas gerais, estabeleceu um novo padrão para as empresas Estatais pautado em uma “lógica empresarial” tendo em vista o desafio combater o déficit público, a inflação, recuperar a economia de mercado, atuar com maior eficiência, maximizar o lucro da empresa estatal ao invés da consecução do interesse público e, principalmente, a descentralizar as atividades estatais. A reforma não contemplou novas formas de controle democrático sobre o Estado, se atendo apenas a dar uma áurea de modernidade (BERCOVICI, 2010).

3. Um novo direito administrativo?

Cumpre mencionar que no século XXI a Administração Pública vai ganhando novos contornos. Se o Estado Democrático de Direito é uma “superação dialética” dos modelos liberal e social de Estado (GUERRA FILHO, 2010), a Administração do século XXI também deve ir além da mera limitação do poder estatal ou de um feitio centralizador e interventor.

Entre os diversos fatores que impulsionam uma nova abordagem do direito administrativo (pós) moderno – e consequentemente da Administração Pública também – encontram-se a globalização, a constitucionalização, as privatizações e, principalmente, a descentralização estatal. Esse conjunto de fatores levou a doutrina divergir quanto ao estado da arte do direito administrativo: estaria o direito administrativo chegando ao fim ou estaria se modernizando? (CASSESE, 2012).

Sabino Cassese trabalha com a hipótese de que estaria havendo uma modernização no direito administrativo – em especial na Europa – diante das demandas do que hoje pode-se denominar uma “sociedade global”. Uma das características inerentes ao fenômeno da modernização é o da aplicação de novas técnicas de accountability, entendido como controle, fiscalização e prestação de contas do Poder Público. A fiscalização e o controle podem ser realizados pelos próprios órgãos públicos, como também pela sociedade.

Nesse quesito, o accountability está ligada diretamente com a democracia, e no Brasil, com a fórmula política do Estado Democrático de Direito. O modelo de participação da antiga democracia liberal, no qual o cidadão se manifestava somente no momento do voto – democracia representativa – hoje soma-se a participação nas mais diversas esferas, seja através do exercício da soberania popular (iniciativa popular de lei, plebiscito, referendo e recall) ou através dos conselhos, orçamentos participativos e audiências públicas. A própria democracia ganhou novos qualitativos, como democracia participativa, democracia deliberativa, democracia semidireta e democracia comunitária.

Pode-se dizer que a ordem constitucional pós-88 inaugurou o regime da democracia participativa ou democracia semidireta no Brasil porque mescla mecanismos de participação direta com elementos da democracia representativa. Ademais, o princípio republicano, decorrente da própria fórmula política adotada pela Constituição, caracteriza-se pela responsabilidade dos mandatários, a eletividade e a alternância do poder. (ATALIBA, 1985).

Isto posto, o controle, a fiscalização e a prestação de contas por parte dos (e para os) cidadãos e da Administração Pública direta e indireta faz parte de uma sociedade que se queda democrática e republicana.

4. Parâmetros para a regulamentação do art.74, §2º da Constituição Federal de 1988

Nos interessa, no entanto, desenvolver o tema do controle social da Administração Pública, em especial o controle externo que pode ser exercido pelo cidadão. O Estado de Direito, como já vimos, pressupõe o império da lei e vincula não só os cidadãos como também a própria Administração. Nesse sentido, a Constituição e legislação infraconstitucional estabeleceram uma série de mecanismo de controles que a própria Administração deve exercitar para impedir ou corrigir comportamentos indevidos e contrários ao interesse público. A doutrina divide-os em controles em internos e externos. O controle interno é aquele exercido por órgãos da própria Administração – integrantes do aparelho Executivo e o controle externo é aquele exercido por órgãos alheios à Administração. (BANDEIRA DE MELLO, 2011; MEIRELLES, 2010).

Dentre os vários artigos que tratam do controle e fiscalização da Administração, o art.74, § 2º da Constituição Federal prevê a possibilidade de qualquer cidadão, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União. Partindo do caput do art.74 da Carta Maior, nota-se que se trata de controle interno integrado exercido pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, porém o §2º está ligado ao controle externo exercido pelo cidadão em conjunto com o Tribunal de Contas da União, configurando o que se convencionou chamar “controle social da Administração Pública”. (DA SILVA, 2006).

Por sua vez, o § 2º do referido artigo confere legitimidade ativa para qualquer cidadão oferecer denuncias perante o Tribunal de Contas da União, desde que na forma da lei. Ocorre que não há lei específica sobre o tema, sendo apontado pela doutrina a possibilidade do cidadão se valer do direito constitucional de petição previsto no art.5º, XXXIV, “a” da Constituição Federal de 1988, bem como da ação popular ou do mandado de segurança (DA SILVA, 2006; SCAFF, 2014).

É compreensível o entendimento, por parte da doutrina, de que a falta de regulamentação do art.74, § 2º da Constituição Federal de 1988 não obsta o controle social a ser exercido pelo cidadão. Porém, ao mesmo tempo que não obsta, também não estimula, pois não dá as balizas de como pode ocorrer esse controle. A título de exemplo, questiona-se: existe prazo de resposta para os Poderes se manifestarem sobre a denúncia do cidadão? O que se entende por qualquer cidadão? A denuncia do cidadão vincula o Tribunal de Contas da União a apurar as ilegalidades ou irregularidades? Em qual prazo? O que se entende por “irregularidades” ou “ilegalidades”?  

Buscar-se-á lançar as linhas gerais para uma possível regulamentação do art.74, § 2º. Os quesitos serão: (i) legitimidade; (ii) o objeto; (iii) o prazo de resposta; (iv) a citação do Ministério Público.

 São legítimos para denuncia das ilegalidades ou irregularidades, qualquer cidadão, entendido como os detentores de direitos políticos, na forma do art.14 da Constituição Federal. A cidadania deve ser entendida além do mero ato de votar e ser votado, mas sim como direito fundamental que garante ao indivíduo a possibilidade de participar das decisões de Estado e Governo, seja para legitima-las ou fiscaliza-las. A legitimidade se estende a todos os nacionais que deverão comprovar, mediante documentação, a sua condição.

O objeto da denuncia são as irregularidades e ilegalidades previstas no art.74 e incisos da Constituição Federal. Da leitura dos incisos, extrai-se que o controle recai sobre a probidade da Administração Pública, a regularidade e guarda dos bens, valores e dinheiros públicos, bem como a fiel execução do orçamento. Trata-se, portanto, de “um controle político de legalidade contábil e financeira” (MEIRELLES, 2010). Isto posto, qualquer cidadão que se depare com o mal emprego do dinheiro público – obras públicas abandonadas ou com suspeitas de superfaturamento, má execução do orçamento público ou a deterioração de bens – veículos, imóveis etc – e valores, poderá denuncia-las ao Tribunal de Contas da União (em se tratando do Governo Federal) ou ao Tribunal de Contas do respectivo ente federativo.

O estabelecimento de um prazo de resposta para o Tribunal de Contas prestar informações para o cidadão é fundamental porque o vincula a responder a denúncia. Entende-se por razoável o prazo de 30 dias para que o Tribunal emita uma resposta sobre conduta denunciada sob pena de responsabilização dos servidores encarregados.  

E por último, assim que receber a denúncia, o Tribunal de Contas deve citar o Ministério Público para acompanhar o andamento do feito pois trata-se de instituição essencial na defesa dos interesses individuais e sociais.

Logo, defende-se a regulamentação do art.74, § 2º da Constituição Federal de 1988 tendo em vista – infelizmente – à pouca importância que os órgãos públicos dão ao direito constitucional de petição. A necessidade do estabelecimento de um prazo de resposta, a citação do Ministério Público e a delimitação do objeto da denúncia são essenciais para que o cidadão obtenha uma resposta e providências concretas sobre possíveis ilegalidades ou irregularidades.

Considerações Finais

Ao final do conto A sereníssima República, desiludido com os rumos tomados pela sociedade de aracnídeos e o seu sistema político, Vargas narra o que foi dito por Erasmus, um dos seus mais sábios cidadãos, ao notificar às dez damas incumbidas de urdir o saco eleitoral. Erasmus, ao retomar a fábula de Penélope, que fazia a desfazia a famosa teia enquanto esperava Ulisses, disse:

“Vós sois a Penélope da nossa República […] tendes a mesma castidade, paciência e talentos. Refazei o saco, amigas minhas, refazei o saco até que Ulisses, cansado de dar às pernas, venha tomar entre nós o lugar que lhe cabe. Ulisses é a sapiência”.

A mensagem deixada por Machado de Assis é a de que podem haver infinitas reformas na busca de um sistema social que se pretende perfeito. Porém, se não houver sapientia, ou seja, sabedoria na condução da vida pública, vamos terminar como a república do conto, em eterna reforma.

Isto posto, conclui-se que o controle social-democrático da Administração Pública decorre da sua própria matriz originária: o liberalismo político e o Estado de Direito. A Administração submetida ao império da lei também está sujeita à fiscalização e controle por parte dos cidadãos.

Com o advento da Constituição Federal de 1988 houve a consagração da fórmula política do Estado Democrático de Direito que é uma “superação dialética” dos modelos sociais e liberais de Estado. Diante desse novo elemento caracterizador da Constituição e vetor de interpretação para as normas constitucionais e infraconstitucionais, estão presentes o Princípio do Estado de Direito e o Princípio Democrático, a legalidade e a legitimidade, o império da lei e a participação popular. Tratam-se de princípios complementares que devem ser interpretados em conjunto, evitando a prevalência completa de um sobre o outro.

Houve também a ressignificação do conceito de cidadania. A Constituição Federal de 1988 alçou a cidadania à princípio fundamental (art.1º, II) e os cidadãos como detentores dos direitos políticos. Ocorre que não se trata mais da cidadania moldada no liberalismo, na qual o indivíduo se manifestava apenas no momento do voto. A cidadania deve ser compreendida como o direito fundamental de participar das decisões de Estado e Governo, dotando-as de legitimidade.  

Assim, discutir o papel da cidadania no Estado Democrático de Direito requer abandonar o antigo dogma do Estado Liberal – o que não comporta abandonar as suas contribuições –, no qual a cidadania era concebida apenas como “liberdade negativa”, ou seja, como instrumento jurídico de resistência ao poder político arbitrário.

Hannah Arendt concebe a liberdade como a “razão de ser” da política e afirma que “os homens são livres – diferentemente de possuírem o dom da liberdade – enquanto agem, nem antes, nem depois: pois ser livre e agir são uma mesma coisa” (ARENDT, 2011). A cidadania, por isso, deve ser pautada, muito mais, no agir do indivíduo do que nas liberdades individuais e civis – sem prejuízo destas –, ao passo que o Estado deve prover condição de realização do direito à participação por meio de instituições políticas apropriadas e de instrumentos que permitam ao cidadão intervir diretamente nas tomadas de decisão de governo e de Estado, dado que a restrição da cidadania tem sido historicamente pautada em um “medo” do poder revolucionário do povo.

Logo, a busca de uma Administração Pública moderna e em consonância com o Estado Democrático de Direito deve privilegiar – ou pelo menos criar as condições para – o controle social-democrático a ser realizado pelos cidadãos.

É a partir dessa constatação que se propôs à regulamentação do art.74, § 2º da Constituição Federal de 1988. Ainda que a sua eficácia não esteja de todo comprometida pois, segundo a doutrina, o cidadão pode se valer do direito constitucional de petição para se dirigir ao Tribunal de Contas da União, existe um vazio de caráter técnico que obsta qualquer esperança de resposta sobre a denúncia apresentada, pois sem prazo, vinculação, delimitação do objeto e acompanhamento por parte do Ministério Público.

A reforma da administração, portanto, passa principalmente pela sua adequação à fórmula política do Estado Democrático de Direito que, não acompanhada por uma educação política emancipadora, corre riscos de se tornar mais uma entre tantas – que vieram e hão de vir -, na nossa sereníssima república.

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[1] Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP – Bolsista CNPq. Advogado.

[2] Doutorando e Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP – Bolsista Capes. ServidorPúblico Federal. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Finance Code 001.

[3] É imperioso mencionar a corrente do administrative constitucionalism desenvolvida nos Estados Unidos. Para uma abordagem que pretende aproximar a corrente americana dos debates constitucionais brasileiros, recomenda-se a leitura de: BAPTISTA, Patrícia; CAPECCHI, Daniel. Se o direito administrativo fica o direito constitucional não passa: perspectivas do direito público contemporâneo sobre uma velha questão. Revista de Direito da Cidade, Vol.08, nº 4. ISSN 2317-7721 pp. 1938-1960.

[4] “Por conseguinte en sus relaciones con los administrados, la autoridade administrativa no solamente debe absternerse de actuar contra legem, sino que además está obligada a actuar solamente secundum legem, o sea en virtude de habilitaciones legais” (MALBERG, Carré de. Teoría General del Estado. Trad. José de Lion Deperte. 2. ed. México: FNC, 2013. p. 450).

[5] Sobre a fórmula política do Estado Democrático de Direito, é imperioso mencionar as lições de Willis Guerra Filho, para quem o Estado Democrático de Direito representa “uma forma de superação dialética da antítese entre os modelos liberal e social ou socialista de Estado”. Cabendo a este uma harmonização dos interesses de três esferas diferentes da sociedade: “a esfera pública, ocupada pelo Estado, a esfera privada, em que se situa o indivíduo e a esfera coletiva, em que se tem interesse de indivíduos enquanto membros determinados grupos” (GUERRA FILHO, Willis Santiago. Autopoiese do direito na sociedade pós-moderna: introdução a uma teoria social sistêmica.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 35).

[6] O conceito de fórmula política empregado aqui é resgatado por Willis S. Guerra Filho, fazendo referência direta a Pablo Lucas Verdú, o qual entende por “o elemento caracterizador da Constituição, principal vetor de orientação para a interpretação de suas normas e, através delas, de todo ordenamento jurídico”. A fórmula política da Constituição Federal de 1988 é a sua definição de Estado Democrático de Direito. Ver: GUERRA FILHO, Willis Santiago Processo constitucional e direitos fundamentais.7. ed. São Paulo: SRS Editora, 2017. p. 16.

[7] Empregamos a expressão “ditadura” conforme os ensinamentos de Karl Loewenstein, ou seja, de que os governos ditatoriais operam, em certa medida, com as regras do jogo constitucional no seu exercício de poder, ainda que o respeito a essas regras se dê apenas formalmente, por exemplo, a confirmação formal de uma decisão pelo Parlamento que é “dócil” ao Poder Executivo (LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la constitución. Barcelona: Ariel, 1970., p. 35). Ver também: ROCHA, Antônio Sérgio. Genealogia da constituinte: do autoritarismo à democratização.São Paulo: Lua Nova, 2013. p. 29-87.

Como citar e referenciar este artigo:
CARVALHO, Erick Beyruth de; SOUSA, Alexandre Castro. O controle social-democrático da Administração Pública: uma proposta para regulamentação do art.74, § 2º da Constituição Federal de 1988. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2018. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/o-controle-social-democratico-da-administracao-publica-uma-proposta-para-regulamentacao-do-art74-s-2o-da-constituicao-federal-de-1988/ Acesso em: 19 abr. 2024