Direito Constitucional

A demarcação das terras indígenas sob o enfoque do caso Raposa Serra do Sol e da PEC 215

Brenda Monteiro Piancó

Dyhelle Christina Campos Mendes

Kenya Robertina Filgueira Fonseca

Graduandas do curso de Direito da UEMA

RESUMO

Diante da Constituição da República de 1988 ampliaram-se os direitos indígenas, dando-lhes espaço para sua diversidade étnica, cultural, linguística, por exemplo. No que tange aos direitos demarcatórios indígenas, apesar de garantidos na norma constitucional, ainda são frutos de impasses, conflitos, discordâncias, como será visto, durante o presente trabalho, em que as terras por conterem riquezas naturais, solos, recursos hídricos, potenciais para investimentos, empreendimentos externos, são motivos de discussões como a questão da demarcação das terras em comento, caso emblemático a respeito foi sobre Serra Raposa do Sol, além da PEC 215.

Palavras-chave: Demarcação. Raposa Serra Raposa do Sol. PEC 215.

ABSTRACT

Before the Constitution of the Republic of 1988 the indigenous rights were extended, giving them space for their ethnic, cultural, Linguistic, for example. Regarding indigenous rights, although guaranteed by the constitutional norm, they are still fruit of impasses, conflicts, disagreements, as it will be seen, during the present work, in which lands because they contain natural wealth, soil, water resources, potential for Investments, external ventures, are reasons for discussions such as the issue of demarcation of the lands in question, emblematic case was about Serra Raposa do Sol, besides the PEC 215.

INTRODUÇÃO

Indubitavelmente, o problema acerca da demarcação das terras indígenas possui aspecto antigo, consiste desde a chegada dos colonizadores às terras Brasilis, os quais reduziram o espaço dos índios, suas reservas, diante do processo de dominação.

A primeira constituição a preocupar-se com essa questão demarcatória foi a de 1934, no artigo 29, ao se referir sobre serem as terras ocupadas pelos silvícolas. A carta de 1937 incluiu no artigo 4º inciso IV, como bens da União essas terras, por exemplo.

No caso da constituição de 1988, destina capítulo específico aos índios, no artigo 231§1º menciona sobre os direitos originários dos índios as terras tradicionalmente ocupadas, cabendo a União demarcá-las¸ tratando-se do caráter de posse não no sentido do direito privatista, mas sim, levando em consideração questões como culturais, tradições e linguísticas.

Segundo estudos do Instituto Socioambiental (2015), “existem 698 Terras Indígenas ocupando uma área total de 113.599.277 hectares, o equivalente a 13% do território nacional,” situando-se inclusive na Amazônia Legal, ou seja, percebe-se que as terras indígenas localizam-se em áreas propícias a exploração de matéria-prima, recurso natural, depreendendo interesses e conflitos no que tange ao processo demarcatório, sendo que atividades como essas exemplificadas só poderão ocorrer com a aprovação do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades a priori. Além de serem terras inalienáveis, imprescritíveis e indisponíveis.

Diante dos fatos expostos, percebe-se as nuances do processo demarcatório, os motivos escusos contrários, os porquês dos litígios decorrentes, como em relação ao caso da Serra Raposa do Sol e a proposta de mudança de competência da União ao Congresso Nacional nesta demarcação, objetivo da PEC 2015, assuntos que serão pormenorizadamente explicados durante o presente artigo.

1. O DIREITO DOS INDÍGENAS ÀS TERRAS ANTES DE 1988

O reconhecimento constitucional do direito às terras aos povos indígenas é recente no sentido de que, apesar de propriamente ocupados, os territórios não eram devidamente atribuídos a eles. Diante dessa insegurança jurídica, em 1º de abril de 1680 fora determinado mediante Alvará o caráter originário e imprescritível dos direitos dos indígenas sobre suas terras, assim descrito em seu parágrafo 4:

“…E para que os ditos Gentios, que assim descerem, e os mais, que há de presente, melhor se conservem nas Aldeas: hey por bem que senhores de suas fazendas, como o são no Sertão, sem lhe poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhe fazer molestia. E o Governador com parecer dos ditos Religiosos assinara aos que descerem do Sertão, lugares convenientes para neles lavrarem, e cultivarem, e não poderão ser mudados dos ditos lugares contra sua vontade, nem serão obrigados a pagar foro, ou tributo algum das ditas terras, que ainda estejão dadas em Sesmarias e pessoas particulares, porque na concessão destas se reserva sempre o prejuízo de terceiro, e muito mais se entende, e quero se entenda ser reservado o prejuízo, e direito os Índios, primários e naturaes senhores dellas(…)” (Grifo nosso) (Disponível em: < http://www.funai.gov.br/index.php/2014-02-07-13-26-02>. Acesso em 11/11/2016)

Percebe-se que, ao denominar os indígenas de “senhores primários e naturais”, ocorre o reconhecimento ao direito à posse dessas terras ocupadas, instituto esse chamado de “indigenato”.

Nesse período, embora reservada a posse territorial, não havia garantia à proteção desses direitos, uma vez que o Brasil não possuía um órgão que impusesse o cumprimento das determinações relacionadas ao indigenato, principalmente quando se tratava da ocupação por colonizadores.

Apenas com a Constituição 1934 voltou-se a abordar o tema com algumas particularidades, precisamente nos artigos 129, no qual dispõe “Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las.” Além de atribuir à União a competência para legislar acerca da “incorporação dos silvícolas à comunhão nacional”. Essas disposições foram mantidas pelas Constituições de 1937 e 1946, que não fizeram quaisquer modificações significativas.

A Constituição de 1967 estabeleceu as terras indígenas dentre os bens da União (Art. 4º,VI), o que reserva caráter permanente ao território ocupado pelas comunidades indígenas. Em seu artigo 186 dispõe que: “é assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes”. Nota-se, portanto uma ampliação das garantias constitucionais perante o uso dessas terras, impedindo que se gerasse prejuízo causados por terceiros aos indígenas.

De acordo com o site oficial da FUNAI (Fundação Nacional do índio), até a Constituição de 1988, não se considerava o modo de subsistência determinados povos, implicando na maneira como a terra ocupada era utilizada:

“Todavia, até os anos 1970, a demarcação das terras indígenas, amparada na Lei 6001/73 (Estatuto do Índio) pautava-se pelo modelo da sociedade dominante, qual seja, a moradia fixa associada exclusivamente ao trabalho agrícola, desconsiderando que a subsistência de vários povos baseia-se na caça, na pesca e na coleta, atividades que exigem extensões mais amplas que o contorno imediato das aldeias. Desse modo, a perspectiva etnocêntrica e assimilacionista vigorou na tradição do direito até 1988 quando, devido à luta do movimento indígena e de amplos setores da sociedade civil, em meio ao processo de redemocratização do país, foi sancionado na nova Constituição o princípio da diversidade cultural como valor a ser respeitado e promovido, superando-se definitivamente o paradigma da assimilação e a figura da tutela dos povos indígenas.” (Disponível em: < http://www.funai.gov.br/index.php/2014-02-07-13-26-02> Acesso em 11/11/2016)

2. DIREITOS INDÍGENAS DIANTE DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

De forma comparativa com as constituições anteriores, percebe-se grande avanço em relação a constituição de 1988, preocupando-se não com uma integralização no sentido de aculturação, sob uma perspectiva etnocêntrica, mas sim, dando um tratamento ao povo indígena reconhecendo e tentando criar formas de preservar sua diversidade étnica, cultural e linguística, como forma “de somatório de mundividências. Uma soma, e não uma subtração. Ganho, e não perda. Relações interétnicas de mútuo proveito, a caracterizar ganhos culturais incessantemente cumulativos” (Pet 3.388, rel. min. Ayres Britto, j. 19?3?2009, P, DJE de 1º?7?2010).

A constituição vigente trata a priori no artigo 20, inciso XI, sobre os bens da União, mencionando se enquadrarem “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”, sendo conforme observável no artigo 231, §4º “[terras] inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”. Carlos Ayres Britto, Ministro do Supremo Tribunal Federal, ao mencionar sobre o presente artigo, diz que:

Todas as “terras indígenas” são um bem público federal (inciso XI do art. 20 da CF), o que não significa dizer que o ato em si da demarcação extinga ou amesquinhe qualquer unidade federada. Primeiro, porque as unidades federadas pós-Constituição de 1988 já nascem com seu território jungido ao regime constitucional de preexistência dos direitos originários dos índios sobre as terras por eles “tradicionalmente ocupadas”. Segundo, porque a titularidade de bens não se confunde com o senhorio de um território político. Nenhuma terra indígena se eleva ao patamar de território político, assim como nenhuma etnia ou comunidade indígena se constitui em unidade federada. Cuida-se, cada etnia indígena, de realidade sociocultural, e não de natureza político-territorial. (…) A vontade objetiva da Constituição obriga a efetiva presença de todas as pessoas federadas em terras indígenas, desde que em sintonia com o modelo de ocupação por ela concebido, que é de centralidade da União. Modelo de ocupação que tanto preserva a identidade de cada etnia quanto sua abertura para um relacionamento de mútuo proveito com outras etnias indígenas e grupamentos de não índios [grifo nosso]. A atuação complementar de Estados e Municípios em terras já demarcadas como indígenas há de se fazer, contudo, em regime de concerto com a União e sob a liderança desta. Papel de centralidade institucional desempenhado pela União, que não pode deixar de ser imediatamente coadjuvado pelos próprios índios, suas comunidades e organizações, além da protagonização de tutela e fiscalização do Ministério Público (inciso V do art. 129 e art. 232, ambos da CF). Pet 3.388, rel. min. Ayres Britto, j. 19?3?2009, P, DJE de 1º?7?2010.

O artigo 22, inciso XIV da Constituição em comento, menciona sobre a competência privativa de legislar da União “sobre terras indígenas”; no artigo 49, XVI, explana acerca da competência exclusiva do Congresso Nacional em “autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais”; e o inciso XI do artigo 109, trata da competência dos juízes federais para processar e julgar disputas sobre terras indígenas.

Pensando no respeito a diversidade presente no país, foi positivada no artigo 210, §2º, e 215, §1º, assegurando o ensino da língua materna e métodos de aprendizagem próprios, além de o Estado garantir a manifestação das culturas, em destaque, a indígena, respectivamente.

A constituição ainda traz um capítulo específico dedicado ao presente assunto, Capítulo VIII, intitulado “Dos índios”, artigos 231 e 232.

O artigo 231 trata do reconhecimento da cultura indígena, da sua “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” além dos “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente [grifo nosso] ocupam”, preocupando-se com a questão demarcatória, a qual terá tópico específico a ser abordado.

Cabe destacar que as terras tradicionalmente ocupadas consistem nas “utilizadas para suas atividades produtivas [dos índios], as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (artigo 231, §1º), ou seja, o constituinte teve a preocupação de ser minucioso, taxativo, analítico, em sua descrição.

Interessante comentário do ministro Carlos Ayres Brito sobre o assunto tange a questão das palavras terra e território, sendo a opção escolhida “terras indígenas” pelo legislador, remetendo a ideia de grupos, comunidade, pois território remeteria a “uma categoria jurídico-política” e terras já concerne a viés “sociocultural e não política”.

A Constituição teve o cuidado de não falar em territórios indígenas, mas, tão só, em “terras indígenas”. A traduzir que os “grupos”, “organizações”, “populações” ou “comunidades” indígenas não constituem pessoa federada. Não formam circunscrição ou instância espacial que se orne de dimensão política. Daí não se reconhecer a qualquer das organizações sociais indígenas, ao conjunto delas, ou à sua base peculiarmente antropológica a dimensão de instância transnacional. Pelo que nenhuma das comunidades indígenas brasileiras detém estatura normativa para comparecer perante a ordem jurídica internacional como “Nação”, “País”, “Pátria”, “território nacional” ou “povo” independente. Sendo de fácil percepção que todas as vezes em que a Constituição de 1988 tratou de “nacionalidade” e dos demais vocábulos aspeados (País, Pátria, território nacional e povo) foi para se referir ao Brasil por inteiro. (…) Áreas indígenas são demarcadas para servir concretamente de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas, mais as “imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar” e ainda aquelas que se revelarem “necessárias à reprodução física e cultural” de cada qual das comunidades étnico-indígenas, “segundo seus usos, costumes e tradições” (usos, costumes e tradições deles, indígenas, e não usos, costumes e tradições dos não índios). (…) A Constituição de 1988 faz dos usos, costumes e tradições indígenas o engate lógico para a compreensão, entre outras, das semânticas da posse, da permanência, da habitação, da produção econômica e da reprodução física e cultural das etnias nativas (grifo nosso). O próprio conceito do chamado “princípio da proporcionalidade”, quando aplicado ao tema da demarcação das terras indígenas, ganha um conteúdo peculiarmente extensivo. Pet 3.388, rel. min. Ayres Britto, j. 19?3?2009, P, DJE de 1º?7?2010.

Ainda diante do artigo 231, §1º, é relevante acrescentar a súmula 650 do STF, a qual menciona “Os incisos I e XI do art. 20 da CF não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”.

Já explicitado o artigo 20, inciso XI anteriormente, cabe mencionar que o inciso I, diz que são bens da União os que já lhe pertencem ou que vierem a ser atribuídos, ou seja, não se trata nesse parágrafo de terras indígenas nessa situação descrita, devendo “para se evitar abusos na discussão da propriedade de terrenos que em tempos remotos tinham sido aldeamentos indígenas, principalmente se eles não são mais locais em que costumes ou tradições indígenas estão sendo desenvolvidos.” (NOHARA,2011. p. 679)

“As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo (grifo nosso) das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”, menciona o parágrafo 2º do artigo 231, sendo interessante o comentário acerca de posse, que aqui não se enquadra o conceito empregado no direito civil, pois é preciso levar em consideração que “não se trata de ocupação para mera exploração, ao contrário, há uma interação de elementos ecológicos e humanos, naturais e culturais, que são relevantes na compreensão do que é a posse indígena” (MOTA e GALAFASSI, ANO, p. 5), trazendo a expressão posse permanente, uma garantia aos indígenas sobre o futuro nessas terras, habitar para sempre, algo indisponível, inalienável, imprescritível, direito originário dessas comunidades.

Destaca-se também a expressão usufruto exclusivo, na qual “a exclusividade do usufruto (…) enquanto habitat dos índios [leva em conta] seus costumes, crenças e tradições”. (BULOS, 2014, p.719)

Sobre essa questão da exclusividade do usufruto, o Ministro Carlos Ayres Britto, menciona que:

A exclusividade de usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nas terras indígenas é conciliável com a eventual presença de não índios, bem assim com a instalação de equipamentos públicos, a abertura de estradas e outras vias de comunicação, a montagem ou construção de bases físicas para a prestação de serviços públicos ou de relevância pública, desde que tudo se processe sob a liderança institucional da União, controle do Ministério Público e atuação coadjuvante de entidades tanto da administração federal quanto representativas dos próprios indígenas. Pet 3.388, rel. min. Ayres Britto, j. 19?3?2009, P, DJE de 1º?7?2010.

Foi vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo ad referendum do Congresso Nacional, em situações como catástrofe ou epidemia, as quais ponham em risco a sua população, ou caso haja interesse da soberania do País, desde que haja deliberação do Congresso Nacional, garantindo o retorno após o incidente ocasionador do risco (artigo 231, §5º).

Sobre aproveitamento de recursos hídricos, tratando-se de potenciais energéticos, pesquisa, riquezas minerais nas terras indígenas, além de ouvir essas comunidades da área afetada, é preciso a autorização do Congresso Nacional, assegurando participação nos lucros, conforme determina o artigo 231 § 6º.

O constituinte também se preocupou com os atos que tenham por objeto a ocupação, domínio, posse, exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e lagos existentes nas terras indígenas, mencionando serem nulos e extintos tais atos, ressalvando o interesse público da União, o qual não irá gerar direito a indenizações e nem ações contra a União, salvo, no que diz respeito às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé (artigo 231, §6º).

“(…) ninguém pode tornar-se dono de uma terra ocupada por índios. Todas as terras ocupadas por indígenas pertencem à União, mas os índios têm direito à posse permanente dessas terras e a usar e consumir com exclusividade todas as riquezas que existem nelas. Quem tiver adquirido, a qualquer tempo, mediante compra, herança, doação ou algum outro título uma terra ocupada por índios, na realidade não adquiriu coisa alguma, pois estas terras pertencem à União e não podem ser negociadas. Os títulos antigos perderam todo o valor, dispondo a Constituição que os antigos titulares ou seus sucessores não terão direito a qualquer indenização”. DALLARI, 1984, p. 54-55 apud MOTA e GALAFASSI, ANO, p.7

Por fim, no artigo 232, menciona que “os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.”

3. A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS

Sabe-se que terra indígena é uma porção do território nacional, habitada por um ou mais povos indígenas, de propriedade da União, utilizada pelos silvícolas para desenvolver suas atividades e preservar seus usos, costumes e tradições. Trata-se, portanto, de um importante fator de identificação que contribui para a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas, o que torna inadmissível a separação entre o índio e a sua terra.

Diante disto, cabe salientar que a terra indígena possui natureza originária e coletiva, logo, o direito dos índios em relação às suas terras é declaratório, ou seja, a Constituição Federal garante o reconhecimento deste direito, obrigando o Poder Público a promovê-lo. De acordo com a Fundação Nacional do Índio, a FUNAI, existem aproximadamente 698 terras indígenas no Brasil ocupando uma área total de 113.599.277 hectares, ou seja, 13% do território nacional. E desse total, 98, 39% estão localizadas na Amazônia Legal (Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/2014-02-07-13-24-32. Acesso em 16/11/2016).

Ademais, ressalta-se que existem algumas modalidades de terras indígenas. Com base na legislação vigente (Constituição Federal de 1988, Lei 6.001/73 – Estatuto do Índio e o Decreto nº 1.775/96), as terras indígenas são classificadas em: terras indígenas tradicionalmente ocupadas, reservas indígenas, terras dominiais e terras interditadas. As terras indígenas tradicionalmente ocupadas são aquelas disciplinadas no artigo 231 da Carta Magna, o qual ratifica o direito originário dos povos indígenas perante suas terras, existem no país 545 terras indígenas nesta condição, ocupando uma área de 112.362.100, 4361 hectares. Ao passo que as reservas indígenas são terras doadas por terceiros, adquiridas ou desapropriadas pela União, sendo assim, se destinam à posse permanente dos povos indígenas, porém não se confundem com as ocupadas tradicionalmente, desse modo, existem 31 reservas indígenas no Brasil ocupando uma área de 41.014, 7811 hectares. Por conseguinte, as terras dominiais são as terras de propriedade das comunidades indígenas, que foram obtidas por qualquer meio de aquisição, estima-se que existem 6 terras dominiais no país, com área total de 31.070, 7025 hectares. E as terras interditadas são aquelas que estão sob a vigilância da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) para garantir a proteção dos povos e grupos indígenas isolados, cujo acesso e trânsito de terceiros por tais terras é restrito, são 6 terras interditadas no Brasil, ocupando uma área de 1.084.049,0000 hectares. (Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/c/terras-indigenas/introducao/o-que-sao-terras-indigenasAcesso em: 16/11/2016).

Nesse contexto, surge a demarcação das terras indígenas, um ato administrativo que confere certeza e segurança ao exercício do direito originário de posse dos silvícolas. Por esse motivo, o ato de demarcar tem como objetivo principal garantir o direito dos índios à terra, estabelecendo a real extensão da posse indígena, visando a proteção dos limites demarcados e impedindo a ocupação por terceiros. (FERRAZ JÚNIOR, 2004, P.696).

No que se refere à demarcação das terras indígenas, o Estatuto do Índio (Lei 6.001/73) estabelece que tal processo será feito por iniciativa e supervisão do órgão federal de assistência ao índio, que atualmente é a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), através de um processo administrativo estabelecido em decreto do Poder Executivo, conforme disposto no Decreto nº 1.775/96.

O processo administrativo de demarcação das terras indígenas, regulamentado pelo Decreto nº 1.775/96, compreende as seguintes fases:

Estudos de identificação e delimitação (art. 2º, §§ 1º a 7º): nesta etapa a FUNAI nomeia um antropólogo com qualificação reconhecida para elaborar um estudo antropológico de identificação da terra indígena em questão, com prazo determinado. Em seguida, este estudo será utilizado como base por um Grupo Técnico, cujo chefe será um antropólogo, que realizará estudos complementares. Consequentemente, o Grupo apresenta um relatório especificando e delimitando a terra indígena a ser demarcada. O relatório deve ser aprovado pelo presidente da FUNAI e publicado no Diário Oficial da União (DOU) e no Diário Oficial da unidade federada. As terras que se encontram nesta fase são denominadas “terras em identificação”.

Contraditório administrativo (art. 2º, §§ 8º e 9º): desde o início do procedimento até 90 dias após a publicação do relatório aprovado pela FUNAI, todo interessado, inclusive Estados e Municípios, poderá se manifestar à FUNAI apresentando suas razões, acompanhadas de provas pertinentes, a fim de pleitear indenização e demonstrar vícios presentes no relatório. O Decreto nº 1.775/96 elenca como provas os títulos dominiais, os laudos periciais, os pareceres, entre outros. Ao fim do prazo para as contestações, a FUNAI tem 60 dias para elaborar parecer sobre as razões de todo interessado e encaminhar o mesmo para o Ministro da Justiça.

Declarações do limite da terra indígena (art. 2º, § 10): ao receber o parecer, o Ministro da Justiça tem 30 dias para decidir. Diante disto, poderá: a) expedir portaria, declarando quais os limites da área e determinando a sua demarcação física; b) prescrever diligências a serem cumpridas em 90 dias; ou c) desaprovar a identificação, publicando decisão fundamentada no parágrafo 1º do artigo 231 da Constituição Federal. Caso o Ministro declare a posse permanente, a terra que se encontra nesta fase será denominada “terra declarada”.

Demarcação física e levantamento fundiário: declarados os limites da área, a FUNAI realiza a sua demarcação física, e em caráter prioritário, o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) faz o reassentamento de ocupantes não índios. As terras analisadas nesta fase são as “terras reservadas”.

Homologação (art. 5º): após a portaria do Ministério da Justiça, ocorre a homologação da demarcação da terra indígena, trata-se da confirmação da posse permanente dos índios perante suas terras. Nesses termos, o Presidente da República garante por meio de um decreto tal direito. Logo, as terras aqui em comento são chamadas de “terras homologadas”.

Registro (art. 6º e art. 9º): com a terra demarcada e homologada, a FUNAI deve realizar o registro em cartório de imóveis da comarca correspondente e na Secretaria do Patrimônio da União (SPU) do Ministério da Fazenda. Desse modo, as terras nesta fase são as “terras regularizadas”.

Conforme o exposto, observa-se que o processo demarcatório é de extrema importância, pois garante a preservação do patrimônio cultural e histórico brasileiro, e ademais, ao resguardar o direito territorial dos povos indígenas, contribui para a construção de uma sociedade pluriétnica e multicultural.

4. A DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS RAPOSA SERRA DO SOL

A terra indígena Raposa Serra do Sol está localizada ao norte do estado de Roraima, junto à fronteira do Brasil com a Venezuela e Guiana, tendo como limites o Monte Roraima e o Monte Caburaí. Possui uma área de 1,74 milhões de hectares, composta por áreas de campos e serras. (Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/2014-02-07-13-24-32. Acesso em 16/11/2016).

A seguir, procede-se à análise do processo de demarcação da terra Raposa Serra do Sol, embasada pela matéria do Jornal O Estadão intitulada “A reserva Raposa Serra do Sol”, a qual destaca que a área indígena em comento é composta por povos indígenas de etnias variadas, são eles: Taurepang, Macuxi, Wapixana, Ingarikó e Patamona. Os municípios que compõem a terra indígena em comento são Normandia, Uiramutã e Pacaraima. Os conflitos na região da Raposa Serra do Sol surgiram devido a construção geográfica e a estrutura social desta área. Cabe ressaltar que tais conflitos ocorrem porque se trata de uma região fronteiriça, cujo agronegócio predomina, com grande incidência de estradas, rodovias e equipamentos públicos, dentre os quais se destacam as linhas de produção de energia. Além disso, é uma região com alto índice de ocupação por posseiros, na qual a pecuária encontra-se em expansão, e cuja monocultura do arroz é predominante.

Diante do exposto, a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol foi necessária para proteger os indígenas e o seu usufruto exclusivo da região. O processo demarcatório da reserva indígena supracitada iniciou-se em 1997, com um processo administrativo que pleiteava o reconhecimento da posse permanente dos povos indígenas que compõem atualmente a presente reserva indígena. Entretanto, apenas em 1998 o Ministério da Justiça publica portaria, a Portaria nº 820, que declara como de posse permanente indígena a terra Raposa Serra do Sol, nesse momento, a FUNAI e o INCRA iniciam o levantamento das benfeitorias realizadas pelos ocupantes da região. (Disponível em: https:// infograficos.estadao.com.br/politica/roraima-raposa-serra-do-sol/a-reserva.html. Acesso em: 16/11/2016).

A seguir, em 1999, a homologação da Raposa Serra do Sol foi objeto de reivindicação judicial entre o Estado de Roraima e a União. Nesse cenário, o Ministério Público Federal (MPF) pede ao Supremo Tribunal Federal (STF) que se declare competente para julgar as ações de fazendeiros locais contra a portaria que declarava a posse definitiva de reserva aos índios. (Disponível em: https:// infograficos.estadao.com.br/politica/roraima-raposa-serra-do-sol/a-reserva.html. Acesso em: 16/11/2016).

Em meados de 2004, o Supremo Tribunal Federal (STF) mantém a decisão da vice-presidente, Ellen Gracie, que excluiu da demarcação a fronteira com a Guiana e a Venezuela, o Parque Monte Roraima, alguns municípios, vilas, rodovias e plantações. Em seguida, o Ministério Público interpõe recurso defendendo a demarcação contínua das terras Raposa Serra do Sol, mas o mesmo é rejeitado. (Disponível em: https:// infograficos.estadao.com.br/politica/roraima-raposa-serra-do-sol/a-reserva.html. Acesso em: 16/11/2016).

Nesse contexto, em 2005, o presidente Luís Inácio Lula da Silva assina decreto que homologa a terra indígena Raposa Serra do Sol mediante a Portaria nº 534, a qual determina a posse permanente dos grupos indígenas perante as terras Raposa Serra do Sol e autoriza a delimitação dos limites da terra indígena em questão. Além disso, tal portaria ordena a saída dos ocupantes não índios no prazo de um ano, dando origem à operação realizada pela Polícia Federal denominada “Operação Upatakon”. Com a publicação desta nova portaria, o Supremo Tribunal Federal (STF) estingue todas as ações que contestavam a demarcação das terras da reserva sob o argumento de mudança de objeto, visto que as ações pleiteadas eram contra a portaria anterior. Nesse mesmo ano, a FUNAI edita a Portaria nº 671, com a finalidade preservar os direitos indígenas. Diante desse clima de instabilidade e insegurança jurídica, a Portaria nº 534 é alvo de uma ação popular, a Ação Popular nº 3388, cujo objetivo era decretar a nulidade da Portaria nº 534. Tal ação será analisada posteriormente, em momento oportuno. (Disponível em: https:// infograficos.estadao.com.br/politica/roraima-raposa-serra-do-sol/a-reserva.html. Acesso em: 16/11/2016).

Consequentemente, no ano de 2006, o Supremo Tribunal Federal (STF) mantém o decreto assinado pelo presidente Lula sobre a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol. Destacando-se que de um lado, os indígenas defendem a validade do decreto que reconhece a demarcação contínua e a posse permanente dos índios, lutando pela proibição da presença de não índios na reserva. De outro lado, os arrozeiros buscam manter as terras onde cultivam seu produto. (Disponível em: https:// infograficos.estadao.com.br/politica/roraima-raposa-serra-do-sol/a-reserva.html. Acesso em: 16/11/2016).

Em 2007, o Supremo determina a saída dos ocupantes não índios da terra Raposa Serra do Sol, logo em seguida, chefes indígenas e representantes do governo federal assinam carta-compromisso, onde afirmam que mais se envolver em conflitos. Em novembro, rizicultores pedem para que o Ministério da Justiça esperem até a colheita da safra de arroz para deixarem a terra indígena, entretanto, após a colheita eles não cumprem o acordo. Nesse cenário, o INCRA o começa a realizar o reassentamento dos não índios da reserva, cuja meta é reassentar 180 famílias. (Disponível em: https:// infograficos.estadao.com.br/politica/roraima-raposa-serra-do-sol/a-reserva.html. Acesso em: 16/11/2016).

Por conseguinte, em 2008, o procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, encaminha recomendação ao presidente da República e ao ministro da Justiça para que seja realizada a retirada imediata de não índios da área demarcada. Em seguida, o Supremo suspende toda e qualquer retirada de ocupantes não índios, paralisando a Operação Upatakon. Posteriormente, a Polícia Federal prende o prefeito de Pacaraima e líder dos arrozeiros, Paulo César Quartiero, por tentativa de homicídio, formação de quadrilha e porte de artefato explosivo. Em meio a esse cenário, o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a reserva indígena é interrompido duas vezes, devido um pedido de vistas dos ministros Carlos Alberto Direito e Marco Aurélio Mello. (Disponível em: https:// infograficos.estadao.com.br/politica/roraima-raposa-serra-do-sol/a-reserva.html. Acesso em: 16/11/2016).

Em 2009, o Supremo mantém a reserva contínua, ordena a saída imediata de arrozeiros e fixa regras para as futuras demarcações de terras indígenas. Criam-se as chamadas condicionantes, ao todo foram criadas dezenove condicionantes para o caso Raposa Serra do Sol. (Disponível em: https:// infograficos.estadao.com.br/politica/roraima-raposa-serra-do-sol/a-reserva.html. Acesso em: 16/11/2016).

Em 2010, ocorre uma mudança de cenário nas terras indígenas Raposa Serra do Sol. Os arrozais são transformados em campos de pastos pelos indígenas que ocupam as fazendas, após a saída dos rizicultores. (Disponível em: https:// infograficos.estadao.com.br/politica/roraima-raposa-serra-do-sol/a-reserva.html. Acesso em: 16/11/2016).

No ano de 2013, ao julgar os recursos pendentes no caso Raposa Serra do Sol, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabelece que as condicionantes impostas para a reserva em 2009 não atingem obrigatoriamente outros processos de demarcação, visto que, segundo o relator, o ministro Luís Roberto Barroso, o processo de ocupação daquela área ocorreu sob condições específicas. (Disponível em: https:// infograficos.estadao.com.br/politica/roraima-raposa-serra-do-sol/a-reserva.html. Acesso em: 16/11/2016).

Em um perfil pós-demarcação, analisando o estado de Roraima no ano de 2015, percebe-se uma queda na produção agrícola, arrozeiros que plantavam 22 mil hectares em 2009, no ano de 2015 plantam 12 mil hectares. Nota-se ainda que quase metade das terras do estado é reserva indígena protegida e que a exportação agrícola do estado, quem em 2006 foi de US$ 16,4 milhões, em 2013 foi de US$ 8 milhões. (Disponível em: https:// infograficos.estadao.com.br/politica/roraima-raposa-serra-do-sol/a-reserva.html. Acesso em: 16/11/2016).

5. ANÁLISE DO VOTO DO MINISTRO AYRES BRITTO NA AÇÃO POPULAR Nº3388

A Portaria 534 não agradou a todos. Em 25 de maio de 2005 fora ajuizada Ação Popular em face da União Federal pelo então Senador da República Affonso Botelho Neto. Pretendia-se declarar a nulidade da Portaria e, sob pedido de medida cautelar, suspender a retiradas dos não índios da área demarcada. Dentre as alegações, estava a de que o laudo pericial antropológico estava minado pela fraude. Nesse sentido, o pedido de suspensão da remoção foi deferido até que a Ação fosse julgada plenamente em seu mérito

O Ministro Ayres Britto votou inicialmente e seus fundamentos serviram de molde para os demais votos. Ele decidiu em favor da Portaria nº 534;

O Ministro ainda reforçou a necessidade de uma demarcação como garantia de cumprimento ao direito às terras, assim descrito:

Só a demarcação pelo formato contínuo atende os parâmetros da Constituição, para assegurar aos índios o direito de reprodução física, de reprodução cultural, de manter seus usos, costumes e tradições. A mutilação, com demarcação tipo queijo suíço, fragmentada, inviabiliza os desígnios da Constituição. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processo. Pet 3338 27 de agosto de 2008. Voto do Min. Relator Ayres Britto).

O Ministro discordou das alegações de fraude no laudo antropológico, não concordou com uma possível miscigenação em massa na região, declarou a nulidade de quaisquer titulações que o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) concedesse a não índios.

Tais discussões têm, obviamente base constitucional, inclusive já ditada nas antigas Cartas e recepcionadas na atual. Uma delas seria a presença dos arrozeiros, os quais interfeririam por meio de suas atividades de agricultura, causando prejuízo ao solo da região. Ele também alegou que a demarcação não representaria prejuízo financeiro para Roraima, visto que a reserva seria pequena em relação ao Estado.

5.1 Algumas decisões marcantes sobre a Ação Popular 3388

A ausência de vícios processuais foi garantida, visto que houve a devida participação do Ministério Público, além do contraditório e da ampla defesa, o que possibilitou às partes interessadas a sua participação.

O processo administrativo obedeceu o disposto no Decreto 1774/96.

O usufruto do território indígena pode ser relativizado, como a própria Carta Magna já determina:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

(…)

§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.(…) (Grifo nosso) Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 11/11/2016.

Algo a ser esclarecido seria o não impedimento de políticas de Defesa Nacional diante do território demarcado. Isso implica dizer que, a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico a critério dos órgãos competentes (o Ministério da Defesa, o Conselho de Defesa Nacional), a atuação das Forças Armadas da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições, fica garantida e se dará independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai.

Caso a reserva possua unidades de conservação, o usufruto indígena será regulado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade e, caso não seja, a FUNAI se responsabilizará.

Outro ponto relevante é o fato de que os indígenas não poderão cobrar tarifas de não índios caso estes venham a adentrar nas terras reservadas, bem como não podem exigir pagamento pela sua permanência. Não podem cobrar também pela utilização de equipamentos e instalações colocadas a serviço do público tenham sido excluídos expressamente da homologação ou não.

Está vedado o arrendamento das terras demarcadas, bem como qualquer outro negócio jurídica que interfira na plena utilização das terras pelos indígenas. É defeso, portanto, aos não índios as atividades de plantio, colheita, caça, pesca. Não se pode também realizar cobranças tributárias aos indígenas.

Único voto dissonante

O Ministro Marco Aurélio Mello foi o único que votou em discordância com os demais ministros, fundamentando pela ilegalidade da Portaria. Ele alega a ausência de citação do Ministro da Justiça e dos demais interessados no caso. Afirma que houve, portanto, prejuízo ao Estado de Roraima.

Para ele, seria necessária reabertura da instrução processual, alegando ausência de abertura de vistas para eventual pedido de produção de provas durante o processo.

6. PEC 215

Diante das informações já expostas acerca de como funciona a demarcação das terras indígenas no Brasil, cabe aqui abordar a PEC 215, cuja proposta consiste em modificar o parágrafo 4º do artigo 231, já explicados, além do acréscimo do inciso XVIII ao artigo 49, que trata sobre a competência exclusiva do Congresso Nacional.

De forma pragmática, a PEC 215 visa tirar da competência da União a questão da demarcação das terras indígenas (artigo 231 §1º) pretendendo-se com isso acrescentar

às competências exclusivas do Congresso Nacional a de aprovação da demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, bem como a ratificação das demarcações já homologadas. Estabelece, ainda, que os critérios e procedimentos de demarcação serão regulados em lei ordinária. (Proposta de Emenda à Constituição nº 215, de 200)

A proposta à emenda foi feita pelo deputado Almir Sá, em 2000, sendo apensados 11 outras, tendo ocorrido avanços em relação ao seu andamento.

A justificativa demonstrada pelos autores da proposta verificada no texto da PEC em comento, é que a competência unilateral da União nessa questão demarcatória não levaria em consideração a opinião dos Estados-membros, e com isso, funcionariam como uma co-validação, evitando que as decisões tomadas ocasionem prejuízos aos Estados-membros pertencentes àquelas reservas.

O relator da presente PEC, o deputado Osmar Serraglio, em seu voto manifestou-se pela sua admissibilidade, destacando-se que em 15/06/2011, foi apresentada à Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania, a Emenda de relator n. 1 CCJC, para que sejam suprimidas as expressões “‘e ratificar as demarcações já homologadas’ do art. 49, XVIII, e ‘ou ratificada’ do art. 231, § 4º, da Constituição Federal, na redação dada pela proposta”.

Em 2015, foi aprovado pela Comissão Especial, proibindo a ampliação das terras indígenas já demarcadas, “indenização aos proprietários de áreas dentro dessas reservas e fixa [a] data da promulgação da Constituição, como marco temporal para definir o que são terras permanentemente ocupadas por indígenas” (OLIVEIRA, 2016), propostas de lei sobre o assunto demarcatório deverão ser tratadas com o rito da medida provisória, para ter tramitação mais rápida, além da questão de abrir as terras indígenas a empreendimentos econômicos, o texto foi aprovado por 21 à 0.

O governo deixa de realizar as demarcações por decreto e deverá enviá-las ao Congresso, na forma de Projeto de Lei (PL), que terá um rito abreviado, semelhante ao das Medidas Provisórias (MPs). O projeto seria submetido a uma comissão mista de deputados e senadores com prazo de 90 dias para apreciá-lo. Segundo o parecer, caso aprovado, o PL será remetido diretamente à sanção presidencial; se rejeitado, deve passar pelos plenários da Câmara e do Senado num prazo de 60 dias, sob pena de trancar a pauta (grifo nosso). SOUZA, 2016

Para que haja aprovação definitiva é preciso ocorrer a votação em dois turnos na Câmara e Senado, com aprovação de 3/5 dos parlamentares, ou seja, 308 deputados e 49 senadores. No entanto, o atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia, disse que não pretende trazer pautas polêmicas à baila, e dentre elas, inclui-se a PEC 2015.

A comunidade indígena não observa com positividade tal proposta, sendo verificável protestos, além de ser considerado um retrocesso à sua história, deixando-os mais vulneráveis, sendo que segundo estudo do Instituto Socioambiental (2015), inviabilizaria processos demarcatórios já em trâmite, como depreende-se:

Segundo o estudo, a transferência da competência de demarcar Terras Indígenas do Executivo para o Legislativo, principal objetivo da PEC, impactaria diretamente os processos de demarcação de 228 Terras Indígenas (TIs) que ainda não foram homologados, os quais devem ser paralisados. Essas terras representam uma área de 7.807.539 hectares, com uma população de 107.203 indígenas. Devem ser afetadas ainda 144 TIs cujos processos de demarcação estão sendo questionados judicialmente e 35 em processo de revisão de limites. Outro aspecto relevante é a abertura das TIs para empreendimentos de alto impacto socioambiental, como estradas e hidrelétricas – o que é proibido na atualidade e pode afetar todas as 698 TIs do país (grifo nosso).

Sônia Guajajara, coordenadora da Articulação dos Povos indígenas do Brasil (APIB) ao se referir ao assunto disse que “representa o genocídio dos povos indígenas do Brasil. Ela retira o direito dos povos indígenas aos nossos territórios”.

Ainda de acordo com o Instituto Socioambiental (2015) “a abertura das Terras Indígenas a empreendimentos econômicos, obras de infraestrutura e atividades de impacto configura grave ameaça a todas as 698Terras Indígenas, inclusive as já demarcadas, anulando os direitos constitucionais” além de que a questão do marco temporal, estabelecendo a data da promulgação da Constituição de 1988, traria impactos desfavoráveis tanto para terras já demarcadas, quanto àquelas já em processo demarcatório.

Retomando a questão da proibição da ampliação das terras já demarcadas, a presente pesquisa ainda aponta que 35 terras indígenas serão afetadas, “com uma área total de 1.556.153 hectares e uma população de 33.603 indígenas”.

“A aplicação retroativa da PEC 215/2000 às Terras Indígenas que estejam 12 sub judice incidiria em pelo menos 144terras indígenas, sendo que 79delas já têm demarcações consolidadas”, também conclui a pesquisa.

CONCLUSÃO

A problemática acerca dos direitos indígenas às terras por eles ocupadas remontam desde o período colonial, quando deles foi tirado o pleno exercício do uso e exploração natural outrora garantidos.

Com a configuração jurídica pós-colonialismo, viu-se necessária a legalização do poderio dessas terras, visto que o direito inerente aos índios não era respeitado. O propósito do artigo, fora, portanto, demonstrar essa evolução constitucional de maneira linear, pautada no caso Serra Raposa do Sol, o qual repercutiu de maneira polêmica e ainda o faz.

De acordo com a fundamentação dos votos apresentados no caso, percebe-se maior proteção ao direito constitucional à terra indígena, incidindo sobre essa discussão a necessidade de preservar tanto os aspectos culturais, quanto o usufruto decorrente das necessidades de sobrevivências das comunidades indígenas.

Com a iniciativa do Projeto de Emenda Constitucional 215, essa discussão tomou novos rumos, necessitando de manifestação de todas as partes interessadas e aguardando votação.

Percebe-se, desse modo, que ainda há muito o que se analisar acerca dos direitos indígenas às terras, tendo em vista a dicotomia entre o interesse do Estado, principalmente no desenvolvimento agropecuário e de energia. Entretanto, do que diz respeito aos legítimos senhores das terras, não há dúvidas de que os indígenas ocupam essa posição.

REFERÊNCIAS

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Como citar e referenciar este artigo:
PIANCÓ, Brenda Monteiro; MENDES, Dyhelle Christina Campos; FONSECA, Kenya Robertina Filgueira. A demarcação das terras indígenas sob o enfoque do caso Raposa Serra do Sol e da PEC 215. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2018. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/a-demarcacao-das-terras-indigenas-sob-o-enfoque-do-caso-raposa-serra-do-sol-e-da-pec-215-2/ Acesso em: 16 abr. 2024