Direito Constitucional

Parte Seis: A morte lenta e gradual de uma era constitucional

Ao olharmos com atenção para os recentes acontecimentos desencadeados desde o início da operação “LAVA JATO”, observamos um aspecto extremamente doloroso e doentio relacionado diretamente com o Republicano e também com as bases nas quais assenta-se o Princípio Constitucional; digo doloroso porque tais acontecimentos, quando analisados à luz da História Social denuncia às escâncaras, um evidente sinal de que as instituições além de não funcionarem como deveriam, também encontram-se abaladas, sofrendo um grave processo de deterioração que dói no tecido social, reverberando em todas as classes, em todos os níveis e sob todos os cidadãos que depositaram toda a sua confiança na capacidade dos legisladores, membros do executivo e do judiciário, em atender aos seus anseios e expectativas.

Além do mais, trata-se também de um processo doentio, tal uma patologia que contamina e afeta toda a estrutura social, deixando o cidadão comum tão estupefato que acaba por ser tomado por um estado de letargia, incompreensão e frustração que torna suas ações inócuas, fazendo-o sentir-se verdadeiro refém daqueles que são os responsáveis pela condução do país e de seu povo.

Ensejamos iniciar esta nova etapa de nossa digressão, analisando detidamente o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, pedra angular do Direito Constitucional e também do princípio Republicano. Sua formulação clássica, nasce pelas mãos do filósofo alemão, Immanuel Kant, em sua obra: “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, na qual defendia que as pessoas deveriam ser tratadas como um fim em si mesmas, e não como um meio (objetos), e através desse conceito, formulou tal princípio nos seguintes termos: “No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade”.[1]

Eis aqui, encerrada neste conceito, a fundamentação para que todos nós sejamos dignos e assim reconhecidos, como também reconhecendo aos nossos semelhantes, enterrando qualquer possibilidade de acolhimento de comportamentos extremos, sejam aqueles destinados à discriminação étnica, racial, religiosa, social, ou ainda comportamental. Extrai-se ainda a ideia de que é digno aquele que é tratado com respeito, tolerância e valor.

No esteio do acima assinalado, preceitua Ingo Wolfgang Sarlet ao conceituar a dignidade da pessoa humana:

[…] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”. [2]

Insta salientar que o reconhecimento da dignidade implica em reconhecimento de valores inalienáveis tais como liberdade, justiça, paz e desenvolvimento social, sem os quais ainda estaríamos nos digladiando nas florestas pela posse de alimento e água. Deflui-se, pois, que todos, sem distinção, devem ser tidos (e vistos) como seres dignos, merecedores de respeito em sentido amplo, observada a limitação estabelecida dentro do âmbito de cada indivíduo, ou seja, a dignidade de um indivíduo conhece como limite a dignidade de outrem, sendo que, ultrapassá-la, ou aviltá-la, significa ferir ou ameaçar ferir um direito que não pode ser objeto de qualquer injunção.

Aliás, é o que dispõe É o que dispõe o art. 1º, III da Constituição Federal:

“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

III – a dignidade da pessoa humana.”

Ainda sobre dignidade da pessoa humana afirma Gustavo Tepedino[3]:

Com efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, e de redução das desigualdades sociais, juntamente com a previsão do § 2º do art. 5º no sentido da não exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo que não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior, configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento (…)

Feito tais considerações, é preciso aferir como este princípio é visto pela sociedade, no sentido de o clamor popular e a opinião pública não apenas compreenda, mas aceite que tal princípio vige em todos os dispositivos políticos e de Estado, com vistas a assegurar que possa ser não apenas sentido e sim usufruído como algo palpável em todas as relações entre a cidadão e seus dirigentes.

Todavia, não é isto que se vê no cotidiano social; notícias ilustrativas de tal evidência não faltam, porém abstenho-me de exibi-las, posto que desnecessário. Os órgãos responsáveis, por exemplo, pela Segurança Pública, limitam-se a publicar estatísticas, como se elas fossem suficientes para aplacar o clamor popular por um convívio pacífico e seguro. E tais estatísticas encontram-se baseadas no pressuposto pífio de que “se a cabeça estiver no forno, e os pés na geladeira, a temperatura do corpo é ambiente” (sic).

Tal constatação também se verifica na Saúde Pública, onde médicos são obrigados a fazerem a “Escolha de Sofia”, entre centenas de pacientes à espera de um milagre que jamais virá. Considero aqui, também desnecessária a demonstração por meio de noticiosos e dados estatísticos, pois a realidade em que nos encontramos inseridos fala por si.

Deste modo, podemos afirmar, com certo temor de cometer exageros, que o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é mais letra morta do texto constitucional que um princípio efetivo que se congrega com o cotidiano do assim chamado “homem médio”.

No que consideramos um magistral trabalho científico formulado por Thiago M. Minagé[i], cujo currículo apresentaremos ao final, ele nos brinda com a seguinte ponderação:

Nesse sentido, reflita sobre: Como querer a prevalência de uma lei que tenha utilidade social em detrimento da própria pessoa que integra a sociedade? Como justificar a violação de um direito cuja finalidade seria proteger “os direitos”, mas a norma viola para proteger, então se protege violando? Afinal, não estaríamos protegendo apenas quem queremos e na verdade esquecendo todo o “resto”? Será mesmo que as leis são feitas por humanos, para proteger seres humanos, ou os seres humanos devem e estão a proteger as leis? Talvez fosse melhor mudarmos para “dignidade da lei”. Assim, assumiríamos de uma vez por todas que a sociedade serve a lei e não o contrário. Deixaríamos de ser hipócritas e mostraríamos que é impossível defender direitos humanos sem ao menos uma vez ser humano. O que é ser, humano?[4]

E é neste cenário desolador que concluímos, com pesar, que a dignidade foi rebaixada a um produto de mercado, que se encontra sujeito à lei econômica da oferta pela procura. A medida que a procura aumenta, a oferta diminui, deixando à míngua aqueles que mais dela necessitam.

Uma mercadoria tão cara e também tão rara, que sua aquisição fica obstacularizada, porque apenas aqueles que tem condições sociais e econômicas para obtê-las (por qualquer meio), a conservam longe daqueles que não apenas dela carecem, mas a merecem.

Os recentes acontecimentos noticiados pela imprensa na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, com a evidente incapacidade do Estado em lidar com energia contra a organização criminosa, vemos de forma cristalina como o princípio da Dignidade perdeu sua razão de ser, já que o cidadão que deveria ser o objetivo da Carta Constitucional, está dela esquecido, colocado ao alvedrio de sua própria sorte.

Deste modo, há de se concluir que, por mais que os hermeneutas constitucionais, insistam em afirmar que os princípios consagrados em nossa Carta Magna estão à disposição dos cidadãos, a realidade insiste em demonstrar e comprovar o contrário, razão pela qual, afirmo, com enorme aflição na alma, que estamos presenciando e testemunhando a morte lenta e gradual do Direito Constitucional, e também dos princípios por ele consagrados. E mesmo que vozes se levantem contra minha afirmação, lamento dizer-lhes que sua irresignação e revolta não encontrarão eco na dura realidade que hoje presenciamos, vivenciamos e experimentamos no nosso doloroso cotidiano.

Torna-se impossível crer em dignidade quando dignatários são flagrados transacionando propinas que esvaziam os cofres públicos e, ao mesmo tempo, esvaziam esperanças de reversão de um quadro tão perverso. Como pressupor dignidade quando uma mera sentença de concessão de cautela relativamente a um tema tão delicado quanto a opção de gênero, possa desencadear uma fúria descontrolada que desperta o pior de todos?

É lamentável que estejamos neste estágio evolutivo sem que tenhamos, de fato, evoluído; inexiste chance de termos um avanço, muito menos um retrocesso, pois o que temos é apenas uma triste letargia, cujos efeitos ainda sentiremos por muito tempo.

Registre-se ainda que o Estado de Direito consiste na limitação do poder político, submetendo o Estado ao Direito através do texto constitucional, sendo legitimado pelo elemento democrático; se é o texto constitucional o limitador e, ao mesmo tempo, regulador da atividade do Estado, com a legitimação democrática, deveria esperar-se que assim funcionasse o sistema e também as instituições.

Todavia, como podem as instituições estar funcionando, se o sistema constitucional e também o princípio Republicano foram corrompidos ou encontram-se em constante choque? Se em todos os momentos que o Legislativo precisa tomar uma decisão, havendo movimentações politico partidárias em rota de colisão ou de dissenção, a chamada do Poder Judiciário para resolver algo que é, via de regra, interna corporis, não se pode concluir que tais instituições estejam, de fato, funcionando.

Temos, atualmente, a constatação de que os elementos instituidores do Direito Constitucional estão por demais distantes da realidade do povo, que fica, literalmente, alijado em um universo muito distorcido aos olhos do Direito. Tomemos, como exemplo, o direito do cidadão à saúde. Diz a nossa Carta Constitucional:

“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução dos riscos de doença e de outros agravos e o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. (grifos nossos)

Tal preceito é complementado pela lei 8.080/90, em seu artigo 2º:

“A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”. (grifos nossos)

Alguém seria capaz de afirmar que os preceitos acima são fielmente observados pelo Estado para cobertura de todos os cidadãos? E, caso afirmativo, haveria um único exemplo de sistema público de saúde que, efetivamente, funcione em sua plenitude com atendimento aos mais necessitados.

Quantas são as ações que desaguaram no Judiciário, exigindo pleno acesso a medicamentos, tratamentos, cirurgias? Não há como se conceber que isso seja a melhor forma de ação, mas, sem dúvida, é a única que resta aos desvalidos.

Neste sentido, destacamos o seguinte excerto:

O fenômeno da judicialização da saúde, que se intensificou nos últimos anos, ocasionando a expedição mensal de milhares mandados em todo o país, tornou-se preocupante para o Estado. De acordo com Miriam Ventura (2007), em reportagem publicada pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, a judicialização envolveria a eterna dicotomia entre o individual e o coletivo, sendo que, ao mesmo tempo em que o Judiciário evitaria violações de direito por parte do Estado, favoreceria o individualismo e a noção de que o Sistema Único de Saúde não funciona.

André da Silva Ordacgy (2007) pondera que “os entes públicos muito têm criticado a “judicialização” da Saúde, principalmente sob a alegação de que essa intromissão “indevida” do Judiciário irá acarretar, num futuro próximo, na inoperância total do sistema público de saúde, haja vista os representativos gastos financeiros disponibilizados para a cobertura das decisões judiciais, que consomem uma boa parte do orçamento da Saúde”. E, no mesmo sentido, Morton Scheinberg (2009) assevera que, embora os entes públicos afirmem que o orçamento estaria prejudicado com as liminares concedidas, não se atentam que o imbróglio é causado justamente em razão da excessiva lentidão na incorporação de avanços médicos pelo sistema básico.[5]

Não é nossa pretensão adentrar na discussão deste tema em especial; o que pretendemos é apenas elucidar e salientar comprovações fáticas de que o Direito Constitucional assegurado na Carta Magna vigente, não encontram eco no tecido social, e, por conseguinte, perde sua efetividade, independentemente de uma eficácia relativizada pelo elemento politico que não está mais limitado pela própria Carta Constitucional, com uma legitimação Democrática que, na maior parte das vezes, responde apenas pelos interesses de poucos em detrimento de todos.

Sem darmos cabo do tema, vemos a necessidade de somar a ele outra discussão no que diz respeito ao Princípio Republicano, cuja cerne encontra eco dentro do Direito Constitucional, eivando ainda o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, que também está morrendo lenta e gradualmente.

Pelo que foi exposto, vemos, com sofrimento, que a dignidade não encontra respostas aos seus anseios, vendo-se em uma triste limitação fática, já que o cidadão não tendo acesso à saúde, educação, moradia, segurança e pleno emprego vê-se subjugado por um jogo político que desconhece sua essência que é a representação digna daqueles que o elegeram; assim como também desconhece sua essência o Executivo que administra sob a égide de interesses que podem ser resumidos à liberação de emendas parlamentares (que nada mais são empenhos para pagamento futuro!). E, neste cenário, temos ainda o Judiciário sendo convocado para intervir em questões que poderiam (ou, pelo menos, deveriam) ser resolvidas pelas vias adequadas.

Não nos esqueçamos de que a dignidade é um valor inestimável que precisa ser preservado a todo custo, sob pena de caminharmos na direção do lado escuro a essência humana.

Deixo o poema abaixo de Eduardo Alves da Costa que é um poeta e dramaturgo carioca e está vivo, e escreveu um poema, na década de 60, que se transformou em um hino na luta contra a ditadura militar, no Brasil. Chama-se “No Caminho, com Maiakóviski”:

Na primeira noite eles se aproximam

e roubam uma flor

do nosso jardim.

E não dizemos nada.

Na segunda noite, já não se escondem;

pisam as flores,

matam nosso cão,

e não dizemos nada.

Até que um dia,

o mais frágil deles

entra sozinho em nossa casa,

rouba-nos a luz, e,

conhecendo nosso medo,

arranca-nos a voz da garganta.

E já não podemos dizer nada. (…)

Thiago M. Minagé é Doutorando e Mestre em Direito. Professor de Penal da UFRJ/FND. Professor de Processo Penal da EMERJ. Professor de Penal e Processo Penal nos cursos de Pós Graduação da Faculdade Baiana de Direito e ABDConst-Rio. Professor de Penal e Processo Penal na Graduação e Pós Graduação da UNESA. Coordenador do Curso de Direito e da Pós Graduação em Penal e Proceso Penal da UNESA/RJ unidade West Shoping.. Autor da Obra: Prisões e Medidas Cautelares à Luz da Constituição publicado pela Lumen Juris no ano de 2013. Autor de inúmeros artigos jurídicos. Advogado Criminalista.



[1]     KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 65.

[2]     SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p.62.

[3]     TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil, Rio de janeiro: Renovar, 1999, pág. 48



[i]    Thiago M. Minagé é Doutorando e Mestre em Direito. Professor de Penal da UFRJ/FND. Professor de Processo Penal da EMERJ. Professor de Penal e Processo Penal nos cursos de Pós Graduação da Faculdade Baiana de Direito e ABDConst-Rio. Professor de Penal e Processo Penal na Graduação e Pós Graduação da UNESA. Coordenador do Curso de Direito e da Pós Graduação em Penal e Proceso Penal da UNESA/RJ unidade West Shoping.. Autor da Obra: Prisões e Medidas Cautelares à Luz da Constituição publicado pela Lumen Juris no ano de 2013. Autor de inúmeros artigos jurídicos. Advogado Criminalista.

Como citar e referenciar este artigo:
TROVÃO, Antonio de Jesus. Parte Seis: A morte lenta e gradual de uma era constitucional. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2017. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/parte-seis-a-morte-lenta-e-gradual-de-uma-era-constitucional/ Acesso em: 25 abr. 2024