Direito Constitucional

A (in) eficácia da Lei 11.340/2006: Gênero e violação aos direitos humanos da mulher

Leonardo Canez Leite 1

Lucas Gonçalves Conceição 2

Rubens Vicente Rodrigues Vasconcelos 3

INTRODUÇÃO

 A presente pesquisa tem a intenção de contribuir com o estudo da violência doméstica e suas implicações na esfera jurídica. A começar da observação da própria efetividade das normas na prevenção geral e especial do crime de violência doméstica contra a mulher.

A Lei 11.340/2006 – Maria da Penha tem a finalidade norte de coibir e prevenir a violência intentada contra a mulher no seio familiar. Dessa forma, desfruta de uma série de medidas que visam assistir e tutelar às mulheres. Os verbos coibir, prevenir, punir, erradicar, trazem a ideia de que é possível: impedir, evitar e erradicar toda forma de violência contra a mulher. Não obstante a lei assegure esses direitos de guarida às vítimas, o Estado não é capaz de assegurar plenamente devidas condições de tutela, seja na tentativa da ressocialização dos traumas psicológico, físico e moral seja na aplicação da lei.

Indubitavelmente a Lei nº 11.340/2006 surgiu na intenção de cumprir o dispositivo constitucional que conduz adequada assistência à família e conferir legitimidade aos movimentos feministas. Dessa maneira, observa-se a violência doméstica como uma forma de transgredir direitos humanos. A previsão elencada na Constituição Federal, gerou a ideia de que, mesmo esses direitos sendo próprios a todos os cidadãos, não se efetivam sem a participação do Estado, de forma a resguardá-los e preservá-los para um legítimo exercício.

A temática é de fundamental importância, pois o gênero feminino sofre constante violação e a Lei Maria da Penha revelou-se devido ao anseio de tutelar a mulher por sua vulnerabilidade secular. É de igual modo expressivo no que diz respeito ao campo acadêmico, visto que a forma de violência em baila alcança uma vasta parte da sociedade, sobretudo mulheres, jovens e adolescentes. Entende-se crucial o fomento da pesquisa porque se torna um instrumento eficaz para a efetividade dos mecanismos de tutela às mulheres vítimas.

Nesse ínterim, o objetivo do trabalho é demonstrar que a Lei nº 11.340/2006 ainda é ineficaz e não salvaguarda os direitos das mulheres. À vista disso, observaremos essas ocorrências de hostilidade intragáveis pois negam, precipuamente, a prática do direito à vida, à liberdade e ao respeito, mortificando, dessa forma, diretrizes básicas e fundamentais da Carta Magna de 1988. A partir disso, buscar-se-á compreender os fenômenos da violência contra a mulher nos ramos do Direito Penal e Processual Penal, assim como, estimular o desenvolvimento de novas pesquisas que venham a contribuir para o respeito à integridade psicológica, física e moral da mulher.

1.      O TRAJETO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

A sociedade assiste a um estado de pura violência, mergulhada em uma estirpe de vulgarização da violência, que, secularmente, é empregada todos os dias, contra a mulher. Dessa forma:

Compreender a difícil tarefa pretendida pela Lei n. 11.340/2006, denominada Lei Maria da Penha, significa observar que o mundo manteve, secularmente, a legitimidade da violência de gênero, tornando esta, portanto, institucionalizada, com enfoques estigmatizados da cultura e da religião, impondo à mulher, consequentemente, uma vida de subjugação. (CAMPOS, 2010, p. 37).

Nesse ponto de vista, a crueldade de gênero é atribuída a outras gerações, caracterizando formas patriarcaisde família, onde o sexo masculino é superior ao sexo feminino, dominando-a e oprimindo-a. Assim, permanece e se propaga nas distintas convivências, de acordo com Rocha (2010, p. 5): ­”Nessa sociedade o que não vem descartável é a violência. Porque a marca dela não se retira com a facilidade com que ela entra”.

Por isso, a hostilidade contra o sexo feminino se origina de uma historicidade sobre o gênero,logo não se pode esquecer a temática sem dirimir sobre tal aspecto porque estão diretamente relacionados.

A lei 11.340/2006 – Lei Maria da penha adquire esta nomenclatura em função da batalha para a sobrevivência de uma mulher no lar. Vítima de violência doméstica por parte de seu ex-marido, sofreu diariamente e, após, inúmeras tentativas de homicídio e danos irreparáveis procurou o judiciário no intuito de que fossem tomadas as devidas providências. Assim, dessa busca incansável por ajuda e justiça, foi que efetivamente nasceu e se positivou a Lei Maria da Penha e com ela ferramentas para findar tais atos.

A Violência Doméstica contra a mulher é um dos maiores desafios dos Direitos Humanos. Por mais que a lei sustente a criação de mecanismos de prevenção e repressão, observa-se uma grande dificuldade em reduzir ou eliminar a violência de gênero e tornar efetiva a proteção dos Direitos Humanos da mulher. Na esfera jurídica, violência significa uma espécie de coação para vencer a capacidade da resistência de outrem, ou levá-lo a executar algo, mesmo contra a sua vontade.

Hodiernamente o sexo feminino na trajetória de conquista dos seus direitos como cidadã participa da vida e do governo, tem emprego, pode sustentar-se. Ademais com direito à moradia, saúde, lazer, educação, ou seja, é igual ao gênero masculino, tendo acesso a tudo, inclusive à justiça. A Carta Magna da República do Brasil aduz em seu artigo 5º, § 1º, que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

Isso significa dizer exatamente o que reza o caput do artigo 5º do mesmo diploma legal Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros, residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

Todavia, a realidade das mulheres demonstra que a norma ainda é inaplicável tanto no âmbito constitucional quanto na própria lei 11.340/2006 – Lei Maria da penha. A violência doméstica é reconhecida pela nossa Constituição, que diz, em seu parágrafo 8°, artigo 226: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”. A proibição da violência doméstica e a assistência à família são deveres atribuídos ao Estado a ele pertence o poder de elaborar normas que viabilizem o controle dessa violência.

A legislação tem a intenção de respeitar os tratados internacionais bem como as regras constitucionais. É, infelizmente, evidente que a mulher continua sendo violentada no lar e fora dele. Fato é que a Lei Maria da Penha é incapaz de solucionar outros problemas como, por exemplo, os de âmbito social e cultural, todavia poderá ser a gênese de um convívio de respeito para com a mulher, dando-lhe a certeza de que o Poder Público lhe atenderá quando forem solicitadas as medidas nela contidas. Assim:

O combate à violência contra a mulher depende, fundamentalmente, de amplas medidas sociais e profundas mudanças estruturais da sociedade (sobretudo extrapenais). Como afirmamos a nova lei acena nesta direção, o que já é um bom começo. Esperamos que o Poder Público e a própria sociedade concretizem as almejadas mudanças necessárias para que possamos edificar uma sociedade mais justa para todos, independentemente do gênero. Desta forma, o caráter simbólico das novas medidas penais da lei n. 11.340/06 não terá sido em vão, e sim terá incentivado ideologicamente medidas efetivas para solucionarmos o grave problema da discriminação contra a mulher (VERNICE, 2006, p. 10).

Indubitavelmente as vantagens no que diz respeito à segurança, concedidas às mulheres com a Lei Maria da Penha são inúmeras. Cita-se o fato de a legislação, reconhecer a obrigação do Estado em garantir a tutela delas nos espaços públicos e privados ao definir uma política de prevenção e atenção nas questões que envolvam, especialmente, a violência doméstica. Sem obstar, as ações, o respeito, à dignidade, à liberdade sexual e à igualdade são inerentes a todos, sem distinção de raça, sexo, cor, idade e gênero. Por isso, cada ser humano deve ter obrigatoriamente sua individualidade e personalidade respeitadas. Assim a referida lei da mulher protege esses direitos especiais e tem a sua constitucionalidade assegurada por permissão da Carta Magna – em que enquadra a mulher, por sua vulnerabilidade.

 

 Salienta-se que o ato de discriminar a mulher fere o princípio da igualdade e o respeito à dignidade humana, o que extrai a participação da mulher em iguais condições, nos diversos segmentos da vida, prejudicando o bem-estar social e familiar. A violência doméstica é uma problemática secular e complexa que requer a coordenação e conjugação de esforços por parte da comunidade e entre pessoas de vários setores profissionais. Hannah Arendt já alerta para a falta de grandes estudos sobre o fenômeno da violência e sua consequente banalização:

Ninguém que se tenha dedicado a pensar a história e a política pode permanecer alheio ao enorme papel que violência sempre desempenhou nos negócios humanos, e, à primeira vista, é surpreendente que a violência tenha sido raramente escolhida como objeto de consideração especial. (Na última edição da Enciclopédia de Ciências Sociais, a “violência” nem sequer merece menção.) Isto indica quanto a violência e sua arbitrariedade foram consideradas corriqueiras e, portanto, negligenciadas; ninguém questiona ou examina o que é óbvio para todos. Aqueles que viram apenas violência nos assuntos humanos, convencidos de que eles eram “sempre fortuitos, nem sérios nem precisos” (Renan), ou de que Deus sempre esteve com os maiores batalhões, nada mais tinham a dizer a respeito da violência ou da história. Quem quer que tenha procurado alguma forma de sentido nos registros do passado viu-se quase que obrigado a enxergar a violência como um fenômeno marginal (ARENDT, 2009, p. 23).

A violência, no pensamento arendtiano, distingue-se por seu caráter instrumental. Meios, implementos, instrumentos, ferramentas, são alguns dos substantivos usados com o propósito de multiplicar o “vigor” natural, e a violência aproxima-se fenomenologicamente do vigor. Sendo assim, a Lei Maria da Penha trouxe o grande impacto de tornar público crimes que estavam restritos ao ambiente privado e que agora podem ser denunciados e repreendidos. Atualmente as mulheres possuem essas normas a seu favor, mesmo não a utilizando de forma totalmente eficaz. Nota-se que é fundamental o tratamento das mulheres violentadas e também dos agressores. Para a recuperação dessas vítimas é imprescindível políticas públicas fortes que atentem tanto para o psicológico quanto para o jurídico dessa relação.

2.      OS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS DA MULHER

A Constituição Federal de 1988 conforme já mencionado traz em seu artigo 5º os direitos e garantias fundamentais de cada cidadão. Salienta-se o princípio da igualdade, na qual dispõem que todos são iguais perante a lei, sem qualquer tipo de distinção de qualquer natureza. A Carta Magna adota este princípio de igualdade para que todo cidadão tenha o direito de tratamento idêntico pela lei, como exemplo, em seu artigo 5º que declara que homens e mulheres são iguais de direitos e obrigações:

A Constituição Federal de 1988 trouxe em seu Título II os direito e garantias fundamentais, subdividindo-os em cinco capítulos: direitos individuais e coletivos; direitos sociais; nacionalidade; direitos políticos e partidos políticos. Assim, a classificação adotada pelo legislador constituinte estabeleceu cinco espécies ao gênero direitos e garantias fundamentais: direitos e garantias individuais e coletivos; direitos sociais; direitos de nacionalidade; direitos políticos; e direitos relacionados à existência, organização e participação em partidos políticos. (MORAES, 2008, p. 31).

Importantíssimo ratificar novamente o fundamental artigo 5°, da Constituição Federal que aduz serem todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza se destacando vários direitos e garantias fundamentais. Este dispositivo garante a busca pela igualdade daqueles que são tratados desigualmente por razão do sexo. Ademais, no mesmo artigo, há expressa ordem de que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante, ou seja, trata-se do respeito à dignidade da pessoa humana.

Em outras normas estabelecidas pela Carta Magna, como as regras de igualdade material ao proibirem diferenças de salários, de exercício de função e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil e etc. Dessa forma, são vedadas as discriminações absurdas. A igualdade configura na eficácia de igualar o tratamento de qualquer pessoa sem qualquer distinção entre elas. Ademais é importante destacar que os direitos humanos são resultado de lutas no decorrer da história.

A igualdade entre homens e mulheres é meramente formal perante a lei. As Nações Unidas apontam que igualdade não pode ser somente formal, mas deve também ser substancial, e diante disso, que surge a necessidade da existência de normas específicas no intuito de amenizar essa disparidade como a Lei Maria da Penha que trouxe um avanço nos procedimentos de acesso à Justiça.

As mulheres historicamente têm seus direitos violados e consequentemente tiveram que lutar pelo reconhecimento como seres humanos e por direitos humanos básicos. Entretanto essa violação de direitos ainda não cessou embora a sua situação tenha atenuado consideravelmente. Não bastando a restrição quanto a direitos humanos as mulheres têm sido submetidas a abusos e violências em todas as esferas da sociedade e em todas as classes sociais.

Com relação aos direitos humanos das mulheres, a Constituição Federal de 1988 constitui uma referência basilar para a consagração da igualdade entre homens e mulheres como um direito fundamental de acordo mais uma vez com o artigo 5°, inciso I da referida Carta Magna. Ademais a norma suprema também inclui a questão da violência intrafamiliar como uma responsabilidade estatal para o combate das agressões domésticas:

É importante assinalar também a crescente importância das Organizações Não-Governamentais, frequentemente referidas como “ONG”, entidades privadas que atuam de muitas formas, denunciando violações graves de Direitos Humanos, fazendo a divulgação dos documentos internacionais relacionados com esses direitos, promovendo estudos e pesquisas visando o aperfeiçoamento de sua proteção e promoção e também apresentando sugestões às organizações oficiais especializadas, inclusive à ONU. Várias ONGs são formalmente reconhecidas pela ONU e já exercem influência nas decisões dessa entidade representativa dos Estados, o que significa que os povos, diretamente, estão atuando na ordem internacional, buscando suprir as deficiências da ação estatal e eliminar as injustiças e a violência que impedem a humanidade de viver em paz. Em conclusão, pode-se afirmar que a proclamação dos Direitos do Homem, com a amplitude que teve, objetivando a certeza e a segurança dos direitos, sem deixar de exigir que todos os homens tenham a possibilidade de aquisição e gozo dos direitos fundamentais, representou um progresso. Mas sua efetiva aplicação ainda não foi conseguida, apesar do geral reconhecimento de que só o respeito a todas as suas normas poderá conduzir a um mundo de paz e de justiça social. (DALLARI, 1998, p.77)

A Constituição Federal é uma das mais avançadas no mundo no que tange aos direitos civis e sociais. Os direitos individuais também são chamados de direitos humanos e seus fundamentos estão no direito natural e em certas liberdades essenciais à personalidade e a dignidade da pessoa humana. O direito da dignidade da pessoa humana está previsto na nossa Constituição Federal de 1988, como um princípio fundamental e inviolável, tendo como fundamento dentro do Estado Democrático de Direito a aplicação dos direitos humanos a cada pessoa.

Não restam dúvidas que o movimento das mulheres no Brasil tem que buscar a promoção de mudanças tanto em relação aos comportamentos quanto em razão da estrutura social do país reivindicando transformações políticas amplas e significativas. Em razão disso é necessário desenvolver uma consciência que estabeleça medidas legislativas, judiciais e políticas públicas que assegurem o acesso de todos aos direitos humanos fundamentais:

Com as mulheres ingressando nas profissões e os homens, assumindo cada vez mais a responsabilidade em casa, a relação entre vida profissional e privada será repensada e reestruturada. Diferenças de gênero foram forjadas por circunstâncias históricas. Nenhum estratagema de mão invisível do mercado as fará desaparecer. A cultura está sobre regras não formuladas. Uma vez que articulamos essas regras, podemos começar a reformá-las para ir ao encontro de novas expectativas e novas necessidades. (SCHIENBINGER, 2001, p.351)

Em razão dessas discriminações incessantes criaram-se instrumentos específicos em relação às mulheres que buscam a redução dessa desigualdade.  Os direitos humanos surgiram do ponto de vista mundial com base na opressão das mulheres e a sua condenação ao domínio privado. A violação dos direitos das mulheres torna-se invisíveis em decorrência desse domínio privado.

O espaço-tempo doméstico é o espaço-tempo das relações familiares, nomeadamente entre cônjuges e entre pais e filhos. As relações sociais familiares estão dominadas por uma forma de poder, o patriarcado, que está na origem da discriminação sexual de que são vítimas as mulheres. Obviamente, tal discriminação não existe apenas no espaço-tempo doméstico e aliás visível no espaço-tempo de produção ou no espaço-tempo da cidadania, como terei ocasião de referir. Mas o patriarcado familiar é em meu entender a matriz das discriminações que as mulheres sofrem mesmo fora da família, ainda que actue sempre em articulação com outros factores. (SANTOS, 1999, p.260)

Diante de toda essa precarização é fundamental redefinir o conceito de direitos humanos sob uma perspectiva de gênero. Cabe-se frisar que o Brasil ratificou a maioria dos instrumentos que protegem à mulher. Ademais os principais documentos internacionais que protegem os direitos humanos há tempos proclamam a igualdade de todos. Salienta-se que o principal marco de proteção internacional dos direitos humanos é a Declaração Universal dos Direitos Humanos que definiu com exatidão o rol dos direitos e das liberdades fundamentais.

Diante desse rol de direitos os instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos apresentam natureza subsidiária, atuando como garantia suplementar de proteção quando os sistemas nacionais falharem. E finalmente se torna possível passar em revista o sistema especial de proteção dos direitos humanos das mulheres com a introdução de dois tratados internacionais em vigor no Brasil: a Convenção sobre a Eliminação sobre Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Nesse sentido:

Em qualquer trama social humana, em qualquer parte do mundo, em qualquer tempo, os homens constituem o primado do ser-existente, ou o primeiro sexo, as mulheres, por isso mesmo o “segundo sexo”, só existem em função desse existente ser primeiro. (SANTOS, 2002, p. 554)

Os instrumentos nacionais e internacionais dos direitos humanos asseguram universalmente o direito à vida privada e ao domicílio. No entanto, está enraizada na cultura popular a violência corretiva às crianças para determinada situação disciplinar. Ainda assim, são poucas mulheres que denunciam a situação em que é forçada a ter relações sexuais com o próprio marido. Estes valores legitimam uma certa dose de violência no âmbito familiar, pois molda o tipo de atitude da população e dos profissionais nesse contexto. Essa violência velada contra a mulher é um concreto exemplo de violação da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais.

A promulgação da Constituição Federal de 1988 foi paradigmática ao declarar a dignidade humana como valor supremo da ordem jurídica. Ademais a carta magna buscou estruturar a dignidade humana de forma a atribuir plena normatividade projetando-a para todo o sistema político, jurídico e social.

A razão para essa impressão não reside, contudo, no estabelecimento de um princípio absoluto por parte dessa disposição, mas no fato de a norma da dignidade humana ser tratada em parte como regra e em parte como princípio, e também no fato de existir, para o caso da dignidade, u m amplo grupo de condições de precedência que conferem altíssimo grau de certeza de que, sob essas condições, o princípio da dignidade h u mana prevalecerá contra os princípios colidentes. (ALEXY, 2015, p.111-112)

Por conseguinte, com a instituição da Lei Maria da Penha o Brasil passou a cumprir com as Convenções as quais é signatário, mas é visível, infelizmente, a ineficácia do referido dispositivo legal no que tange a penalização/ressocialização do agressor. Em razão disso contata-se que secularmente a classe e grupo social feminina tem sido excluída quanto ao acesso de direitos humanos e fundamentais.

3.      LEI MARIA DA PENHA: UM OLHAR PARA A LEGISLAÇÃO

Conforme anteriormente destacado, ainda que a Lei Maria da Penha (11.340/2008) não tenha efetivado uma reconstrução na lógica social e cultural da sociedade pós-moderna enfrentar a violência contra mulher ou mesmo que ainda não tenha conseguido efetivar as suas próprias disposições legais, é inegável que trouxe uma série de avanços na temática. Tanto assim que hoje é reconhecida internacionalmente como um modelo de legislação para o enfrentamento da violência doméstica contra a mulher, conforme asseguram Sardenberg e Grossi (2015).

E todos estes avanços foram consolidados após mais de dois anos de debates no âmbito do Congresso Nacional com envolvimento de diferentes movimentos de mulheres feministas de todo o país. O projeto de Lei chegou ao Congresso nacional em novembro de 2004, através da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, e foi aprovado pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva somente no ano 2006. Tratou-se, nada mais nada menos, do que a positivação de uma luta que acompanhou o movimento feminista por mais de três décadas.

As inovações no ordenamento jurídico foram muitas, mas segundo afirma Dias (2011), a mais substancial foi a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, dotados de competência cível e criminal. Tais juizados passaram a ser os órgãos jurisdicionais da justiça ordinária competentes para o processamento, o julgamento e a execução das demandas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. Isto tudo de acordo com o Art. 14 da Lei 11.340/2006.

Tencionou com isso o legislador criar um juízo extremamente especializado para tratar de tão delicada temática. Neste sentido, estabeleceu o diploma legal que o magistrado, o promotor, o defensor e os servidores devem ser especificamente capacitados para atuar nestas Varas, bem como que estes juízos precisam contar com equipe de atendimento multidisciplinar, integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde, além de curadorias e serviço de assistência judiciária, conforme dispõem os arts. 29 e 34.

Ou seja, o legislador reconheceu que a temática não poderia mais ser trabalhada dentro das “valas comuns” e que a especialização seria a palavra de ordem diante da complexidade e da gravidade da temática.

Uma segunda inovação substancial, de acordo com Dias (2011), foi o consequente afastamento da violência doméstica dos Juizados Especiais Criminais estabelecidos pela Lei 9.099/95. Estes juizados têm competência para julgamentos das contravenções penais e das infrações de menor potencial ofensivo. Ora, especialmente diante de todos os dramas sociais e psicológicos envolvidos, a violência doméstica não pode ser considerada infração de menor potencial ofensivo. Como dito acima, em atenção à complexidade do caso, este tipo de violência requer um juízo amplamente especializado com profissionais de diferentes áreas, enquanto os Juizados Especiais Criminais são pautados pela simplicidade e sequer possuem abertura para produção de provas periciais. O processamento desta demanda em juizados especializados em violência doméstica é palavra de ordem, portanto.

Todavia, toda esta especialização, ainda mais quando estamos diante da realidade do judiciário brasileiro, abarrotado de processos e com graves problemas estruturais, tem se mostrado de difícil implementação, especialmente no que tange às equipes multidisciplinares. Segundo informações constantes no portal da transparência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJ/RS), no quesito quantitativo de cargos providos e vagos nas Comarcas do Estado, em todo o Rio Grande do Sul verificam-se, em janeiro de 2016, apenas oito Médicos Psiquiatras Judiciário. E este é apenas um exemplo.

Não obstante a isso, outra inovação trazida pela Lei Maria da Penha foi o estabelecimento de um conceito de violência doméstica e familiar contra a mulher e suas diversas expressões: física, psicológica, sexual, moral e patrimonial, independentemente de orientação sexual. Isso tudo de acordo com o Art. 5º da Lei 11.340/06:

Para os efeitos desta lei, configura-se violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único: as relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.

Definição fundamental, até mesmo para que a distinção das lesões corporais leves e lesões culposas seja possível.

A Lei Maria da Penha, em razão do seu viés protecionista, no Capítulo II do Título IV, também estabeleceu medidas protetivas de natureza extrapenal centradas, principalmente, na figura da vítima. Ou seja, antes de se pensar em quaisquer medidas punitivas em relação ao agressor intentou salvaguardar a integridade da ofendida.

Tais medidas são fundamentais para fazer com que cessem imediatamente as agressões. As principais relacionadas ao agressor estão elencadas no Art. 22 da legislação em comento: a) suspensão da posse ou restrição do porte de armas; b) afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; c) proibição de determinadas condutas, como a aproximação da ofendida, contato com a ofendida por qualquer meio de comunicação e frequentação a determinados locais. Isso dentre outras possíveis medidas de urgência possíveis, inclusive voltadas para a própria ofendida, conforme dispõe o Art 23 da Lei Maria da Penha.

Cabe ao Poder Judiciário, diante disso, conceder as medidas protetivas de imediato, independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público. Isso tudo dentro do prazo de 48 (quarenta e oito) horas depois de recebido o expediente com o requerimento da ofendida.

Justamente neste último ponto que aparecem inúmeras polêmicas no que tange à efetividade das medidas protetivas e, por via de consequência, da própria Lei Maria da Penha. O grande argumento é o de que o prazo de 48 (quarenta e oito) horas para apreciação pelo Poder Judiciário seria prolongado demais, haja vista que, ao fim e ao cabo, a vítima, após procurar a autoridade policial, voltaria para casa sem nenhum amparo imediato, o que certamente potencializaria novas agressões. E disso não se pode olvidar.

Em busca de uma maior efetividade nesta legislação, em especial na concessão e aplicação destas medidas de urgência, atualmente a Lei Maria da Penha está novamente em pauta no Congresso Nacional em razão do Projeto de Lei Complementar 07/2016. Tal projeto visa justamente promover uma alteração legislativa com intuito de trazer maior efetividade e agilidade na proteção da mulher vítima de violência doméstica.

Pretende o projeto, grosso modo, conferir aos delegados de polícia ou outros agentes policiais exclusividade na expedição de medidas protetivas. Ou seja, intenta que a concessão das medidas de urgência seja competência da autoridade policial ao invés da judiciária que, em razão da enorme quantidade de demandas, não estaria conseguindo salvaguardar os direitos da mulher agredida dentro de um prazo aceitável.

Projeto objeto de muitas polêmicas. Ministério Público e OAB não são favoráveis a tal alteração legislativa. Alegam, mormente, a ausência de um debate aprofundado em que também participassem membros do judiciário, da advocacia e dos próprios movimentos feministas. Dizem também ser inconstitucional a reforma pretendida por ferir brutalmente a competência do Poder Judiciário. Enfim, um debate recheado de polêmicas, mas que nasce a partir de uma justa causa: inefetividade da legislação protetora.

Campos (2015) ao analisar os trabalhos da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mulher, criada pelo Congresso Nacional no ano de 2012, aduz que as políticas de enfrentamento à violência contra mulheres ainda se mostram bastante frágeis no Brasil. Isso porque ainda existe uma série de obstáculos na implementação da Lei Maria da Penha: a) a precariedade da rede especializada de serviços de atendimento às mulheres em situação de violência; b) o pequena quantidade de juizados especializados de violência doméstica e familiar contra a mulher; c) o descumprimento da decisão do STF que proíbe a aplicação da suspensão condicional do processo; d) a resistência de operadores do direito em entender a proposta da nova lei e romper com a lógica familista; e) o insuficiente orçamento para o desenvolvimento e a manutenção das políticas públicas de enfrentamento à violência contra mulheres.

Outro problema nesta promissora legislação foi verificado por Pasinato (2015) e diz respeito a um (não) atendimento em rede. Ainda sustenta o referido autor que quando a Lei determina um conglomerado de ações de prevenção, assistência, proteção e garantia dos direitos das mulheres e, ainda, de incentivo à punição dos agressores, abre espaço para uma política intersetorial e multidisciplinar cuja efetivação deverá resultar da articulação entre os poderes Legislativo, Judiciário e Executivo em todos os níveis, o que, para a autora, significa um trabalho em rede. Ademais ainda conforme Pasinato (2015), o atendimento nessas redes ainda exterioriza uma grande desarticulação entre os serviços, sendo visivelmente desconectados e funcionando apenas com base em relações individuais e de favores.

Enfim, não restam dúvidas de que se trata de uma legislação inovadora e com um altíssimo potencial emancipatório. É fundamental, no entanto, encarar com seriedade estes problemas, em especial os que tocam à sua efetividade, uma vez que uma efetividade na aplicação da legislação representa uma efetividade na repressão de boa parte das violências de gênero.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da análise do problema, busca-se colocar em destaque questões sobre a efetividade dos instrumentos legais de amparo e proteção às mulheres vitimadas fisicamente e/ou psicologicamente no âmbito familiar. Também procura-se analisar quais são as falhas que dão ensejo a ineficácia da Lei 11.340/2006 – Maria da Penha e, por conseguinte, a violação à dignidade humana da mulher.

Afinal o gênero feminino sempre esteve à margem da sociedade e, indubitavelmente foi objeto de todo e quaisquer tipos de agressões ficando à mercê de um tratamento sub-humano de maus-tratos. Essa situação tende a mudar no instante em que às mulheres tornam-se detentoras de um conjunto normativo único e próprio e consequentemente detém o poder de reivindicá-lo, buscando tutela efetiva contra violências de gênero.

Entretanto, o que se verificou, foram as inúmeras dificuldades enfrentadas na efetiva aplicação da norma não somente quanto à eficácia, mas também quanto ao preconceito enfrentando nas instituições públicas ao fazerem a denúncia. São distintos os motivos que interferem nas decisões e/ou nos resultados. A Lei nº 11.340/2006 ainda é ineficaz e não protege os direitos inerentes às mulheres em sua integralidade. Como se observa, ao longo dos tempos, o gênero feminino acompanhou a desvalorização enquanto sujeito e este fato é crucial quando se aborda a questão da violência contra a mulher, visto que esse estigma, incorporado social e culturalmente, ainda está entranhado atualmente.

Por fim, é possível constatar que, infelizmente, ainda existem ocorrências de violência que ofendam elementos fundamentais, como o direito à vida, à liberdade e ao respeito, afligindo, assim, diretrizes basilares da Constituição Federal de 1988. A compreensão dos fenômenos da violência de gênero no Direito Penal e Processual Penal só faz constatar que é crucial o estimulo ao desenvolvimento de novas pesquisas. E isso diz respeito à doutrina, à jurisprudência, e principalmente à pesquisa, e até mesmo recrudescendo às normas legais já existentes para que efetivamente se respeite à integridade psicológica, física e moral da mulher.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[1] Mestrando em Direito e Justiça Social, Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Pós-graduado em Gestão Pública e Desenvolvimento Regional. Advogado. Contato: canezrg@hotmail.com

[2] Mestre em Direito e Justiça Social, Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Advogado e Professor da Faculdade de Direito da FURG. Contato: lucasgoncon@hotmail.com

[3] Bacharel em Direito, Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Contato: rubensvrv@yahoo.com.br

Como citar e referenciar este artigo:
LEITE, Leonardo Canez; CONCEIÇÃO, Lucas Gonçalves; VASCONCELOS, Rubens Vicente Rodrigues. A (in) eficácia da Lei 11.340/2006: Gênero e violação aos direitos humanos da mulher. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2016. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/a-in-eficacia-da-lei-113402006-genero-e-violacao-aos-direitos-humanos-da-mulher/ Acesso em: 25 abr. 2024