Direito Constitucional

Entrevista – Daniel Sarmento

Entrevista – Daniel Sarmento

 

 

Claudia Zardo*

 

 

daniel_sarmento.jpgPerfil

 

Aos 39 anos, o Prof. Dr. Daniel Sarmento é uma das cabeças mais jovens e brilhantes do Direito Constitucional nacional e dos Direitos Humanos. Pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, graduou-se em Direito no início dos anos 90, bem como concluiu mestrado e doutorado em Direito Público. Em 2006, completou pós-doutorado na Universidade de Yale (EUA). Com perfil progressista e sendo comprometido com um Direito mais ativista e eficaz, atualmente milita como Professor Adjunto de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Procurador Regional da República e doutrinador. É fluente em cinco idiomas e nos últimos 18 anos publicou 11 livros jurídicos.

 

Sendo o voto a estrutura do Estado Democrático de Direito, como o Sr. vê a possibilidade teórica de se transferir o mandato eletivo (conseguido com o voto do povo) para o partido (que não foi votado) e não para o candidato (detentor dos votos), ponderando o fato de que o brasileiro, na maioria das vezes, vota sem conhecer o programa dos partidos?


Daniel Sarmento –
A sua pergunta tem relação com as decisões do STF e do TSE, que estabeleceram que a mudança de partido implica a perda do mandato. Na minha opinião, a decisão é errada. O texto constitucional estabelece as hipóteses de perda de mandato, e dentre elas não figura a infidelidade partidária, ao contrário do que ocorria na Constituição de 1969. Acho perigoso que se reconheça ao STF o papel de uma espécie de “poder constituinte permanente”, que lhe permita ir modificando a Constituição de acordo com as visões sobre política e justiça dos ministros. Em relação aos mandatos parlamentares em eleições decorrentes do voto proporcional – deputados federais, deputados estaduais e vereadores – ainda há alguma base para o raciocínio do STF e do TSE, uma vez que, neste sistema eleitoral, os candidatos não são eleitos apenas com os votos que receberam, beneficiando-se também daqueles dados ao seu partido. Porém, estender isso, como decidiu o TSE, para os cargos de chefia do Executivo e para o Senado, em que a eleição se dá pelo sistema majoritário, é um verdadeiro absurdo, baseado numa ficção – a de que o eleitor, nestes pleitos, vota no partido e não no candidato.

 

A CF brasileira é social democrática. Como o Sr. entende a possibilidade de flexibilizar os direitos sociais trabalhistas concedidos pela própria CF em 1988?

 

Daniel Sarmento – Eu entendo que, apesar da ambiguidade do texto constitucional (art. 60, § 4º), os direitos sociais e trabalhistas também são cláusulas pétreas. Por isso, o seu núcleo essencial é subtraído do alcance até das emendas constitucionais. Essa é uma questão extremamente relevante no atual contexto, uma vez que tanto a globalização econômica, realizada sob a égide do pensamento neoliberal, como a crise econômica mundial, geram tendências ao retrocesso em matéria de direitos prestacionais e trabalhistas. Considero, porém, que algumas alterações em matéria de direitos sociais são possíveis e naturais, no âmbito do processo democrático, desde que não se atinja o núcleo essencial de tais direitos. Um bom exemplo é o da reforma previdenciária, que reduziu direitos de servidores. Eu posso até não concordar politicamente com alguns aspectos da reforma, mas acho que, como ela preservou a esfera mínima do direito à previdência, não foi inconstitucional. Nesta matéria, deve-se partir da premissa que o constituinte derivado, que representa o povo e decide por maioria altamente qualificada, deve contar com uma boa margem de manobra para tomar decisões em nome da população. Daí porque não se deve adotar uma leitura muito ampliativa das cláusulas pétreas, sob pena de engessamento da Constituição e instauração de uma ditadura da geração de 88 sobre as seguintes.

 

Enquanto doutrinador, o Sr. defende a Técnica de Ponderação de Interesses. Como tem sido a aceitação por parte dos magistrados brasileiros?

 

Daniel Sarmento – No meu primeiro livro, escrito em 1989, eu defendi o uso do Método da Ponderação de Interesses. Na época, essa técnica quase não era empregada às claras pelo Judiciário, que preferia vestir suas decisões com argumentos formalistas, embora muitas vezes realizasse ponderações escamoteadas. De lá para cá, aumentou muito a aceitação da ponderação pelo Judiciário, e o STF tem empregado rotineiramente esse método para resolver colisões entre princípios constitucionais, socorrendo-se do princípio da proporcionalidade para equacionamento dessas tensões. Tenho, no entanto, o medo de que a ponderação possa tornar-se um instrumento para o decisionismo e o achismo judicial, e abra a possibilidade para um “governo de juízes”, que se sintam pouco vinculados às normas em vigor. Na minha opinião, a ponderação é um método residual, que não deve ser banalizado. Além disso, nos casos em que ela for necessária, deve ser empregada com rigor metodológico e com a preocupação com a explicitação detalhada das razões que levam o Judiciário, em cada hipótese, a atribuir um peso maior ou menor a cada um dos interesses em disputa. Sou completamente contrário a um certo “oba-oba” metodológico que tem se instaurado no Judiciário, a partir da aplicação de princípios constitucionais muito vagos, que passam a justificar que os juízes sobreponham as suas valorações pessoais sobre a Justiça àquelas presentes no ordenamento jurídico.

 

Qual é a sua opinião quanto à proposta para a fixação de mandato de onze anos para os juízes do STF?

 

Daniel Sarmento Sou absolutamente favorável à fixação de mandatos para os ministros do STF, como ocorre em quase todos os países europeus que possuem cortes constitucionais. Os mandatos permitem maior oxigenação da Corte e diminuem o chamado “déficit democrático” da jurisdição constitucional, que vem do fato de ministros, que não são eleitos pelo povo, poderem derrubar, com base na sua interpretação de cláusulas constitucionais às vezes muito vagas, decisões adotadas pelos representantes do povo. Como a investidura no STF depende da conjugação da vontade de órgãos eleitos – Presidente e Senado -, com os mandatos, a tendência é a de que a concepção política dos ministros nunca esteja muito afastada dos valores majoritários na sociedade. Nas Cortes Constitucionais europeias, os mandatos variam entre 6 e 12 anos. Acho que 11 anos é bastante razoável.    

 

                                                    LIVRE ASSOCIAÇÃO

 

Por fim, vamos inovar na entrevista: fazendo uso de um método freudiano – livre associação -, vou sugerir dois tópicos e gostaria que o Sr. automaticamente fizesse seus comentários com total liberdade de pensamento.

 

ABORTO E ESTADO LAICO

 

Daniel Sarmento comenta: O Estado laico é uma garantia constitucional importante, correlacionada à liberdade de religião e ao direito à igualdade. Laicidade não significa animosidade do Estado diante do fenômeno religioso, mas sim a imposição às autoridades públicas de uma postura de neutralidade diante das diversas concepções de fé, inclusive a professada pela religião majoritária no país – o catolicismo. O problema da laicidade no Brasil é cultural. Desde a nossa colonização, estabeleceu-se um forte vínculo entre a Igreja Católica e o Estado, que tem comprometido a laicidade, sobretudo em questões ligadas aos direitos sexuais e reprodutivos. Em passado não tão distante, a Igreja foi a principal opositora da instituição do divórcio, e no quadro atual, é ela o maior pólo de mobilização contrário à liberalização do nosso Direito em temas como aborto, pesquisa de células-tronco e união homoafetiva.

 

Quanto ao tema do aborto, eu o considero um dos mais difíceis no Direito e na Ética. Entendo que o seu equacionamento jurídico não pode ser realizado a partir de perspectivas religiosas. Hoje, estima-se que ocorram mais de um milhão de abortos clandestinos no Brasil, e a criminalização não tem salvado a vida potencial de fetos, mas apenas empurrado as mulheres, sobretudo as mais humildes, para procedimentos perigosos, em que as suas vidas e saúde são postas em risco desnecessário. Há estatísticas mostrando que em países onde houve a liberalização da legislação do aborto, o número de abortamentos não aumentou significativamente.

 

Por outro lado, é preciso lembrar que a parte especial do nosso Código Penal, que criminaliza o aborto, é de 1940, quando não havia nenhuma sensibilidade em relação aos direitos e à autonomia da mulher. A mulher casada, naquela época, era considerada relativamente incapaz (!). O tratamento da questão do aborto não pode ignorar nem os direitos fundamentais da mulher à autonomia reprodutiva, igualdade, privacidade e saúde, nem a tutela da vida potencial do feto.

 

Pessoalmente, eu defendo a adoção no Brasil do modelo que é adotado na maior parte dos países europeus, de legalização do aborto no trimestre inicial de gestação. Mas admito que a questão é extremamente delicada, inclusive sob o prisma jurídico.

     

 

SISTEMA PENITENCIÁRIO NO BRASIL

 

Daniel Sarmento comenta: O sistema penitenciário brasileiro é vergonhoso. Temos uma Constituição pródiga em dispositivos garantindo os direitos dos presos e uma Lei de Execução Penal avançadíssima, mas as normas não saem do papel. Nas prisões, a situação é calamitosa, envolvendo seriíssimas violações à dignidade da pessoa humana dos detentos.

 

Certamente, isto ocorre pela seletividade do sistema penal brasileiro. Apesar das diversas leis penais hoje em vigor, tipificando delitos do colarinho branco, a clientela das prisões é ainda composta pelos “três ‘p’s” – preto, pobre e prostituta – que tem muito mais dificuldade em fazer valer os seus direitos. O ultragarantismo penal, de que hoje o Supremo é o maior porta-voz, só atinge, na prática, aqueles que têm bons advogados para levar as suas causas à Corte, que são os situados nos andares de cima da nossa pirâmide social.

 

E, somando-se a tudo isso, temos ainda um sentimento social reacionário, difuso pela sociedade, que entende que os Direitos Humanos deveriam valer apenas para os “humanos direitos”; ou seja, que os presos deveriam sofrer e apanhar mesmo… Esta é uma das questões mais sérias do Brasil de hoje.

 

 

 

* Claudia Zardo é jornalista em Uberlândia – MG neste trabalho foi orientada pelo Prof. Dr. em  Direito Processual Civil, Adailson Lima e Silva.

 

 

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Como citar e referenciar este artigo:
ZARDO, Claudia. Entrevista – Daniel Sarmento. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/entrevista-daniel-sarmento/ Acesso em: 25 abr. 2024