Direito Constitucional

Condição jurídica do indígena

O artigo aborda a condição jurídica do índio face ao Código Civil de 2002 e as recentes iniciativas governamentais na área previdenciária para protegê-los [1].

Dia 19 de abril é dia do índio [2]. Por tal razão escrevo o presente artigo que pretende esmiuçar a condição jurídica do índio.

Os silvícolas são considerados relativamente incapazes e sujeitos a um regime especial que foi regulamentado inicialmente, pelo Decreto 5.484, de 27/6/1928, que distinguiu entre os silvícolas nômades, aldeados e os pertencentes civilizados.

É importante lembrar a lição de Caio Mário da Silva Pereira que a regra é a capacidade, e a incapacidade é exceção. Somente por exceção e expressamente decorrente de lei, é que se recusa ao indivíduo a capacidade de fato.

Alguns doutrinadores distinguem entre as incapacidades naturais das arbitrárias ou puramente legais, as primeiras decorrentes de um estado físico ou intelectual da pessoa, as segundas ditadas por uma organização técnica das relações jurídicas (Planiol, Ripert et Boulanger).

Toda incapacidade é legal, e inerente da indagação de sua causa próxima ou remota. Não se confunde incapacidade com a proibição legal estipulada a certas pessoas para certos negócios jurídicos, com, por exemplo, proíbe-se ao tutor de adquirir bens do pupilo, a venda de bens de ascendentes aos descendentes, sem o expresso consentimento dos demais descendentes. Tais casos são impedimentos que não traduzem incapacidade.

Seguindo a orientação doutrinária germânica e suíça, o direito pátrio prevê a incapacidade como resultante da coincidência da situação de fato em que se encontra o indivíduo, é a capitis diminutio definida em lei.

Nossos silvícolas legítimos donos da terra brasilis foram dizimados por nossos descobridores e colonizadores, foram expulsos da orla litorânea e pouco a pouco empurrados para o interior. E lá esquecidos à própria sorte.

A educação do índio brasileiro é muito diferente da atual cultura brasileira, sendo mesmo salutar que o legislador pátrio crie um sistema de proteção, daí os considerar como relativamente incapazes.

Em 1967, o SPI [3], o Serviço de Proteção aos Índios [4] foi extinto, e criada a FUNAI (Fundação Nacional do Índio). A lei 6.001, de 19/12/1973 dispõe sobre o Estatuto do Índio em seu art. 18 caput dispõe in verbis: “As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno exercício da posse direta pela comunidade, indígena ou pelos silvícolas”.

O mesmo diploma legal ainda estabeleceu em seus artigos 44, 45 e 46 que as riquezas do solo e do subsolo, nas áreas indígenas só podem ser exploradas pelos silvícolas com exclusividade (grifo nosso).

A posse de tais terras é regulada pela legislação vigente e o Ministério do Interior através de órgão competente dará assistência aos índios e representará os interesses da União, como proprietária do solo, mas a participação e a renda da referida exploração reverterá em benefício da comunidade indígena e constituirá fontes de renda indígena.

A concessão de licença para pesquisa ou lavra a terceiros na salvaguarda do patrimônio indígena, estará condicionada a prévio entendimento com o órgão de assistência ao índio.

O corte de madeira nas florestas indígenas em regime de preservação permanente está condicionado à existência de programas ou projetos para o aproveitamento das terras respectivas na exploração agropecuária.

Em terras indígenas [5] é vedada a qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas a prática da caça, pesca ou coleta de frutas, assim como de atividade agropecuária ou extrativa (art. 18 § 1º Lei 6.001/73).

Já o art. 33 do mesmo diploma legal afirma que o índio integrado ou não, que ocupe como próprio, por dez anos consecutivos, trecho de terra inferior a cinquenta hectares adquirir-lhe-á a propriedade plena.

Com a ressalva no parágrafo único de não se aplicar às terras do domínio da União, e as áreas reservadas de que trata o Estatuto do Índio e nem às terras de propriedade coletiva do grupo tribal.

Mais adiante, o art. 38 do mesmo estatuto determina que as terras indígenas são insucapíveis e sobre elas não poderá recair desapropriação, salvo o previsto no art. 20.

Nas transações e negócios, os silvícolas devem necessariamente ser assistidos pelos funcionários do FUNAI. Refere-se ainda à matéria o Decreto-Lei 736, de 06/04/1936, o Decreto 10.652, de 16/10/1942, a Lei 6.001, de 19/12/1973(estatuto do índio), e o Decreto 76.999, de 08/01/1976.

Pelo Código Civil Brasileiro vigente, a capacidade do índio será regulada por lei especial (parágrafo único do art. 4º). Aliás, o mesmo artigo prevê ineditamente como também relativamente incapazes em seu inciso II os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; Houve a incorporação do Dec. 24559/34 e do art. 1.185 CPC que preveem a interdição total ou parcial.

Segundo Washington de Barros Monteiro o parágrafo único do art. 6º do CC coloca os silvícolas sujeitos ao regime tutelar, o qual cessará à medida que se forem adaptando à civilização do país.

Aliás, a expressão regime tutelar leva-nos a crer na absoluta incapacidade do índio quando claramente o declara como relativamente incapaz sujeito à necessária assistência da FUNAI, isto até que não demonstre estar integrado [6] completamente à civilização.

Deste modo, a incapacidade relativa do índio é provisória ou resolúvel posto que à medida que conviver socialmente poderá vir a ser plenamente capaz.

Na verdade, além da proteção jurídica conferida por nosso ordenamento legal, o índio brasileiro que vive há mais de quinhentos e dois anos de exclusão e, hoje não somos nem capazes de saber quantos eles são [7].

A Previdência Social e FUNAI tentam ampliar benefícios extensíveis ao povo indígena a fim de minimizar o status de miséria e de dificuldade de acesso à saúde [8] pública e, ainda às repartições previdenciárias para requerer aposentadorias e demais benefícios pertinentes.

Bom, mas para que possamos ajudá-los pelo menos precisamos saber quantos são e aonde encontrá-los, a FUNAI realizará brevemente um novo recadastramento dos indígenas.

Quem sabe assim poderemos dedicar-lhe algum respeito e consideração… Ao primeiro e genuíno dos brasileiros. A propósito, comemorar em 22 de abril o descobrimento do Brasil não será meio surrealista! Ou um senil ufanismo?

Em 1988 a Constituição Federal do Brasil assegura às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Também suas manifestações culturais indígenas e afro-brasileiras e de outros grupos étnicos do processo civilizatório nacional estão igualmente protegidas.

Ao índio é reconhecido o direito a organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e direitos originários das terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar os seus bens.

As terras[9] tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, e subsolo nela existentes. Tais terras são inalienáveis e indisponíveis e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

É vedada a remoção de grupos indígenas exceto em caso de catástrofe ou no interesse da soberania nacional, após deliberação do Congresso Nacional. Teve assento por lá o Cacique Juruna [10] que ficou famoso por portar um gravador para guardar as promessas dos brancos…

Os atos jurídicos produzidos pelos indígenas são nulos e extintos de efeitos jurídicos, principalmente se versarem sobre ocupação, o domínio e a posse das terras e, ainda da exploração das riquezas naturais lá existentes, se realizados sem a indispensável assistência da FUNAI.

E, por derradeiro, o art. 232 da CF/88 estabelece a legitimidade dos índios e de suas comunidades e organizações para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses.

No entender de Silvio Rodrigues a incapacidade relativa dos silvícolas interessa mais ao direito público que ao direito privado, ex vi o Capítulo VIII do título VIII da Constituição Federal de 1988.

É importante ressaltar que o silvícola é o brasileiro de civilização primitiva, não aculturado [11] merece proteção especial da União e regulada sua capacidade por estatuto próprio.

A denominação genérica de silvícola serve a todos os povos que habitavam a América pré-colombiana e seus descendentes não aculturados, aliás, a palavra significa literalmente habitante da selva.

Sinceramente esperemos que a selva de pedra não coloque em extinção definitiva o maior representante de nossas raízes, o silvícola.



[1] Os indígenas também são designados como povos aborígenes, autóctones ou nativos. São aqueles que viviam numa área geográfica antes da colonização realizada por outro povo e que não se identificam com o povo que os coloniza. A expressão povo indígena literalmente significa “originário de determinado país,

região ou localidade, nativo”. A ONU definiu em nota técnica que: “As comunidades, os povos e as nações indígenas são aqueles que, contando com uma continuidade histórica das sociedades anteriores à invasão e à colonização que foi desenvolvida em seus territórios, consideram a si mesmos distintos de outros setores da sociedade, e estão decididos a conservar, a desenvolver e a transmitir às gerações futuras seus territórios ancestrais e sua identidade étnica, como base de sua existência continuada como povos, em conformidade com seus próprios padrões culturais, as instituições sociais e os sistemas jurídicos.”(In: LUCIANO, G.S. O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Disponível em: http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/arquivos/ColET12_Vias01WEB.pdf ).

[2] O vocábulo “índio” provém do fato de que Cristóvão Colombo, quando chegou à América, estava convencido de que tinha chegado à Índia, haja vista que o gentílico espanhol para pessoa nativa da Índia é índio (indio), e dessa maneira chamou os povos indígenas que ali encontrou. Por essa razão também, ainda hoje se refere às ilhas do Caribe como Índios Ocidentais. Mais tarde, estes povos foram considerados uma etnia distinta e também foram apelidados de “peles vermelhas”. O termo ameríndio é usado para designar os nativos do continente americano, em substituição às palavras “índios”, “indígenas” e outras consideradas preconceituosas.

[3] Serviço de Proteção aos Índios (SPI) ou Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, parte constituinte do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC) foi um órgão público criado durante o governo de Nilo Peçanha em 1910, com o objetivo de prestar assistência à população indígena do Brasil. O serviço foi organizado pelo Marechal Rondon que foi seu primeiro diretor. O SPI foi extinto e substituído pela FUNAI em 1967;

[4] Historiadores afirmam que antes da chegada dos colonizadores europeus à América havia aproximadamente cem milhões de índios no continente. Só em território brasileiro tal número chegava a cinco milhões de nativos. E estavam divididos em tribos, conforme o tronco linguístico ao qual pertenciam: tupi-guaranis (região do litoral), macro-jê ou tapuias ( região do planalto central), aruaques (Amazônia) e caraíbas (Amazônia). O primeiro congresso indigenista interamericano ocorreu em 1940 reunido em Patzcuaro, México que aprovou uma recomendação proposta por delegados indígenas do Panamá, Chile, EUA e México. A institucionalização do Dia do Índio tinha por objetivo geral, entre outros necessários à orientação de suas políticas indigenistas.

[5] Terras indígenas segundo a lei brasileira são aquelas tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas do Brasil habitadas em caráter permanente e utilizadas para suas atividades produtivas e imprescindíveis à preservação dos recursos naturais necessários para o seu bem-estar e sua reprodução física e cultural, de acordo com seus usos, costumes e tradições. São bens da União, inalienáveis e indisponíveis, e os direitos dos índios sobre estas não caducam. Os doutrinadores fazem distinção entre terras indígenas em sentido lato e em sentido estrito. Essas seriam aquelas definidas pela Constituição de 1988, de ocupação tradicional. Em sentido lato, seriam as definidas no Estatuto do Índio, de 1973, que declara como terras indígenas, além das últimas, também as terras reservadas (com quatro categorias) e as terras dominiais. Somente as terras indígenas no sentido constitucional, de ocupação tradicional, estão sujeitas ao processo de demarcação. Já uma terra reservada é aquela que a União destina aos índios conforme sua conveniência, podendo vir a ser discutida judicialmente, inclusive sobre sua viabilidade e questões de segurança nacional. Possui quatro modalidades: reserva indígena, parque indígena, colônia agrícola indígena e território federal indígena. As terras de domínio das comunidades indígenas (ou terras dominiais) são aquelas de propriedade, não apenas posse, dos índios, adquiridas por compra ou doação.

[6] A plena cidadania do indígena depende de sua integração à sociedade nacional e do conhecimento, mesmo que precário, dos valores morais e costumes por esta adotados. Segundo a FUNAI apenas recentemente a sociedade brasileira começou a se conscientizar que os índios são parte integrante da vida nacional. A afirmação do direito à diversidade cultural importa a reivindicação pelas populações indígenas de um espaço político próprio no Estado de Direito e da nacionalidade.

[7] Segundo a FUNAI a atual população indígena brasileira é de aproximadamente de 345.000 indivíduos, representando apenas 0,2% da população brasileira. Este dado considera apenas aqueles que vivem em aldeias. Há, contudo, estimativas de que existam 190 mil vivendo fora das terras indígenas inclusive em áreas urbanas. Existem cerca de cinquenta e três grupos ainda não contatados, além daqueles que esperam reconhecimento de sua condição indígena junto ao órgão federal indigenista FUNAI. Cerca e 60% dos indígenas brasileiros vivem na região designada como Amazônia Legal mas registra-se a presença de grupos indígenas em praticamente todas as unidades da federação.

[8] Conforme expõe estudo genético autossômico de 2012, os ameríndios descendem de pelo menos três correntes provenientes do leste asiático. A maior parte dos ameríndios descende de uma população única ancestral chamada de “primeiros americanos”. Outro estudo genético focado no DNA mitocondrial (que é aquele herdado pela linhagem materna) revelou que os nativos do continente americano têm sua ancestralidade materna traçada a um pequeno número de linhagens do leste asiático, que teria chegado pelo estreito de Bhering. Ainda segundo esse estudo, é provável que os antepassados dos ameríndios tenham ficado por um tempo na região do estreito de Bhering, após o que teria havido rápido movimento de povoamento das Américas, o que teria levado a todas as linhagens fundadoras até a América do Sul.

[9] O Brasil conta com cerca de 104.508.334 hectares (1 milhão e 45 mil km²) de terras indígenas. Isso representa 12,24% da extensão do território brasileiro (quase duas vezes o território espanhol, que é de 504.800 km²). De acordo com dados de 2001, o Brasil possui 580 áreas indígenas, sendo que no período de janeiro de 1995 a abril de 2001, 99 áreas foram designadas indígenas, perfazendo um total de 30.028.063 hectares (300.280 km²). Da mesma forma, foram homologadas 140 terras indígenas, somando 40.965.000 hectares (409.650 km²). O Governo tem inovado ao celebrar parcerias com as organizações indígenas e de apoio aos índios brasileiros para realizar, de modo descentralizado, os trabalhos de demarcação física dessas terras. É o caso da área localizada na região do Rio Negro, no estado do Amazonas, que, somando mais de 11.000.000 de hectares (110.000 km²), foi demarcada numa parceria que envolveu a FUNAI, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) e o Instituto Socioambiental. ( In: As terras indígenas e suas demarcações. Disponível em: http://www.coladaweb.com/geografia-do-brasil/a-situacao-atual-dos-indios-do-brasil Acesso em 18/04/2014).

[10] Mário Juruna (1942 ou 1943 -2002) foi o primeiro deputado federal brasileiro pertencente a uma etnia indígena. Nasceu numa aldeia xavante Namurunjá, próxima a Barra dos Garças, no Mato Grosso. Era filho do chefe da aldeia Apoenã. Viveu na aldeia, sem contato com a civilização brasileira até os dezessete anos, quando sucedeu seu pai na liderança da aldeia. Na década de setenta ficou famoso ao percorrer os gabinetes da FUNAI, em Brasília, lutando pela demarcação de terra para os índios, portanto sempre um gravador “para registrar tudo o que o branco diz” e constatar que as autoridades, na maioria das vezes, não cumpriam a palavra. Foi eleito deputado federal pelo PDT – Partido Democrático Trabalhista (1983-1987) representando o Estado do Rio de Janeiro. Sua eleição teve grande repercussão no país e no mundo. Foi o responsável pela criação da Comissão Permanente do Índio no Congresso Nacional do Brasil, o que levou o problema indígena ao reconhecimento formal. Embora não tenha conseguido se reeleger em 1986, continuou ativo na política por vários anos. Findo seu mandato e abandonado pela tribo, ficou na miséria, vindo a falecer em decorrência de diabetes.

[11] Estes indígenas pertenceriam às primitivas comunidades por representarem um estágio que sociedades como a nossa já teriam transposto há séculos; se configurariam como “relíquias do neolítico”, fato flagrante pelo seu parco arsenal tecnológico, frente às sociedades ocidentais, e pela ausência de instituições como o Estado, por exemplo. Ora, tal visão não é exclusividade do senso comum, pois que mesmo no meio acadêmico, em órgãos e instituições envolvidos com a questão indígena e até mesmo no Supremo Tribunal Federal do país percebemos com frequência opiniões baseadas nesta equivocada concepção a respeito das sociedades indígenas. Esta ideia sustenta conceitos que, se fazem doer os ouvidos de antropólogos, indigenistas e outros profissionais mais atentos à produção etnológica sobre sociedades indígenas, não incomoda nem um pouco a maioria da população de nosso país, como o conceito de aculturado.

Como citar e referenciar este artigo:
LEITE, Gisele. Condição jurídica do indígena. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2014. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/condicao-juridica-do-indigena/ Acesso em: 29 mar. 2024