Direito Constitucional

Precatórios. Distinção entre não inclusão orçamentária e não pagamento

Precatórios. Distinção entre não inclusão orçamentária e não pagamento

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

O precatório judicial, como todos sabem, é uma requisição de pagamento expedida pelo presidente do tribunal, que proferiu a decisão judicial exeqüenda. Configura, portanto, uma ordem de pagamento, fundada em sentença transitada em julgado.

 

     Esse precatório judicial é entregue à Fazenda Pública devedora, para a inclusão da verba respectiva no orçamento anual do exercício seguinte, cujo pagamento deve ocorrer até o final desse mesmo exercício.

 

     Para tanto, a Constituição Federal fixa o período requisitorial até o dia 1º de julho de cada ano. Logo, os valores requisitados até o dia 1º de cada ano deverão ser incluídos no orçamento do exercício seguinte para pagamento até o dia 31 de dezembro. É o que dispõe o parágrafo 1º do art. 100 da CF. Diz a primeira parte desse dispositivo, com todas as letras, que é obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatório judiciários, apresentados até 1º de julho, fazendo-se….

 

     O pagamento até o final do exercício, também, deve ser feito nos limites da verba consignada, mas segundo as possibilidades do depósito, conforme expresso no § 2º do mesmo art. 100, isto é, segundo as possibilidades financeiras do Tesouro. Não se pode confundir verba consignada, com recurso financeiro disponível, que depende do comportamento da arrecadação da receita estimada.

 

     Existe uma diferença gritante entre o descumprimento da obrigação de incluir no orçamento os valores requisitados, e a inclusão orçamentária seguida de não pagamento da verba incluída.

 

     Na primeira hipótese, há violação direta, frontal, consciente e dolosa do princípio federativo inscrito no art. 2º da Carta Política, que prescreve a independência e harmonia dos Poderes. A inclusão orçamentária depende única e exclusivamente da vontade do governante. Só omite essa inclusão aquele que quer ignorar a ordem judicial emanada do órgão judiciário competente, implicando quebra do princípio federativo, que configura cláusula pétrea, conforme art. 60, § 4º, III da CF. Implica ato doloso da maior gravidade perpetrado por um governante que, assim, fica sujeito ao crime de responsabilidade, nos termos dos incisos V, VI e VII do art. 85 da Constituição Federal.

 

     E mais, a não inclusão da verba requisitada no orçamento anual do exercício competente importa na supressão do registro contábil da dívida do poder público. Essa omissão dolosa permite não incluir no montante da dívida consolidada do ente político os valores das condenações judiciais, regularmente requisitados. Se esses valores não forem consignados na lei orçamentária anual e por essa razão não forem pagos no exercício competente, não serão incluídos, por óbvio, no montante da dívida consolidada, nos exatos termos do § 7º do art. 30 da Lei de Responsabilidade Fiscal: Os precatórios judiciais não pagos durante a execução do orçamento em que houverem sido incluídos integram a dívida consolidada, para fins de aplicação dos limites.

 

      Dessa forma, o governante omisso e que age com dolo dribla os limites de endividamento e de operações creditícias, induzindo em erro o Banco Central, o Ministério da Fazenda e a Comissão de Fiscalização e Controle do Senado Federal, que interferem na aprovação de operações de crédito dos entes políticos. Mais ainda, ficam alheios às severas medidas de restrições, previstas no art. 31 da LRF para entidade política que ultrapassar o limite da dívida consolidada.

 

     Na segunda hipótese, ou seja, no caso de não pagamento de precatórios, cujos valores estão regularmente inseridos na lei orçamentária anual, há apenas falha na execução orçamentária que conduz ao inadimplemento da obrigação, ou seja, há uma violação da lei.

 

     Só que essa violação, não tem a mesma gravidade daquela referida na primeira hipótese, pela simples razão de que não há dolo, em princípio. É que o inadimplemento resulta da execução da lei orçamentária anual, sempre dependente de ‘n’ situações conjunturais. Só para exemplificar, na hipótese de uma liminar ou tutela antecipatória em ação de natureza coletiva, obstando a cobrança de determinado tributo, todas as dotações orçamentárias, fixando as mais diversas despesas, sofrerão reflexos. Nunca se viu, na prática, a execução do orçamento rigorosamente nos termos originalmente consignados na lei orçamentária anual, tanto no que diz respeito à realização de receitas estimadas , quanto ao que diz respeito à realização de gastos públicos nos montantes fixados. A abertura de créditos adicionais suplementares e especiais, via de regra, por meio de anulação parcial de uma ou outra dotação, já se incorporou na rotina da administração pública brasileira. O remanejamento de verbas nos limites e condições fixados por lei já é uma prática reconhecida no Brasil e em outros países. É verdade que no nosso sistema jurídico, as verbas consignadas ao Poder Judiciário não podem ser objetos de remanejamento por lei ordinária, muito menos por um ato do Executivo, por delegação legislativa. Entretanto, é fora de dúvida que, embora intocável a verba consignada ao Judiciário, na ausência de recursos financeiros correspondentes, por ‘n’ razões, não se pode exigir o pagamento. É a teoria da impossibilidade material. Ninguém pode ser compelido a fazer o impossível, nem pode lei alguma exigir mais do que o permitido pelo ordenamento jurídico. Esgotados os recursos financeiros arrecadados nos limites da lei, e não existindo fontes alternativas legalmente permitidas para realização dos recursos faltantes, não há como exigir o pagamento das verbas remanescentes, que deverão compor o montante da dívida consolidada ao final do exercício, nos termos da LRF. É o caso de aplicar-se o brocardo ad impossibilia nemo tenetur.

 

     Talvez, esse fato tenha sido levado em conta pelo Supremo Tribunal Federal, que vem condicionando a intervenção federal nos Estados, ou a intervenção estadual nos Municípios à existência de dolo, da manifesta vontade da entidade política de descumprir o precatório judicial. Daí a suprema importância prática de distinguir uma hipótese da outra.

 

     A vontade consciente de descumprir a determinação judicial, ferindo o princípio da independência e harmonia dos Poderes, fica bem caracterizada com a falta de inclusão da verba requisitada na lei do orçamento anual. Neste caso, configurada fica a injustificável e indefensável resistência do governante à determinação legítima, legal e constitucional do Poder Judiciário, colocando em risco o próprio Estado de Direito. É o caso, por exemplo, do Município de São Paulo que, a partir da atual Administração, passou a ignorar as requisições judiciais consignando, aleatoriamente, a título de precatórios alimentares, verbas ridículas que não guardam menor proporção com o montante requisitado em cada exercício. Em toda a história de São Paulo, isso nunca havia acontecido. É preciso colocar um freio nesse acinte, nesse desrespeito inusitado que mina as bases do Estado Democrático de Direito. Impõe-se imediata abertura do processo de impeachment, sem prejuízo de outras medidas cíveis e penais cabíveis.

 

     Na segunda hipótese, em que houve a inclusão orçamentária, mas que não houve o pagamento no prazo constitucional, não há dúvida que houve inadimplência do poder público. Porém, não houve a vontade manifesta de descumprir a ordem judicial, tanto é que incluiu no orçamento as verbas que foram requisitadas. Houve, isto sim, falhas na execução orçamentária, o que impõe o exame de cada caso concreto. É o caso, por exemplo, do Estado de São Paulo . Se houver desvio de finalidade, utilizando a verba pertencente ao Judiciário para pagamento de outras despesas, por mais relevantes que elas sejam, enseja a responsabilidade do governante, sujeitando-o, não só, à ação de responsabilidade civil por ato de improbidade, como também, ao pedido de impeachment. Entretanto, essa é uma questão que depende de verificação a cada caso concreto, sopesando os valores consignados a título de pagamento de despesas com os valores efetivamente obtidos a título de receitas previstas, dentre a quais, a receita tributária que, normalmente, é a de maior expressão financeira.

 

     Enfim, há uma diferença muito grande entre a não inclusão orçamentária e o não pagamento de verba consignada no orçamento. A não inclusão, por si só , caracteriza crime de responsabilidade, ensejando abertura do processo de impeachment contra o governante, sem maiores detalhes e praticamente sem possibilidade de defesa quanto ao aspecto técnico. O não pagamento de verba incluída no orçamento, em tese, também, comporta a abertura do processo de impeachment , porém, com ampla possibilidade de defesa, tendo em vista os inúmeros fatores conjunturais, que interferem na correta execução das despesas publicas. A execução de despesas, ainda que de forma legal, mas, com inversão de prioridades, não reservando os recursos correspondentes às dotações consignadas ao Poder Judiciário para pagamento de precatórios, sem dúvida alguma, enseja tanto a intervenção, como também, o impeachment.

 

SP, 09.08.04.

 

 

* Professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

kiyoshi@haradaadvogados.com.br

 

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. Precatórios. Distinção entre não inclusão orçamentária e não pagamento. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/precatorios-distincao-entre-nao-inclusao-orcamentaria-e-nao-pagamento/ Acesso em: 25 abr. 2024