Direito Constitucional

Revogação ou inconstitucionalidade superveniente de norma anterior à Constituição vigente

 

Quando o Poder Constituinte, no âmbito de sua força, instaura nova ordem constitucional, e, por decorrência de seus atributos, rompem-se tangencialmente os laços formais jurídicos com o passado, há de se verificar a questão de que tais legislações, que são fatos de outra órbita constitucional, produziram efeitos enquanto vigentes, ou seja, constituíram ou não relações jurídicas que, não obstante, como consequência geraram direitos que repercutem mesmo com o advento da nova carta.

Observe o Poder Constituinte como nos ensina Paulo Bonavides [1] que o analisando de forma singular sendo: “se reduz formalmente a uma ação constituinte, capaz de criar ou modificar a ordem constitucional ou de produzir as instituições fundamentais de uma determinada sociedade.” , ou, de acordo com o mestre Paulo Gustavo Gonet Branco [2] apresentando-se desta forma: “A autoridade máxima da Constituição, reconhecida pelo constitucionalismo, vem de uma força política capaz de estabelecer e manter o vigor normativo do texto. Essa magnitude que fundamenta a validez da Constituição, desde a Revolução Francesa, é conhecida com o nome de poder constituinte originário.” .

Em ambos os entendimentos, há uma força motriz que se invoca, um poder de fato com o desiderato de atribuir-se a aquele Estado uma nova manifestação constitucional, que será o novo marco para a consolidação das relações jurídicas, que, agora constituído enseja força como poder de direito.

Neste interim, há certas correlações entre as normas que serão frutos desta nova arvore, tal como, existem frutos da antiga arvore que maduros já foram colhidos e postos a consumo, podendo assim ser saboreados.

No tocante as estruturas legislativas oriundas a posteriori, ou seja, a partir deste novo marco, há a presunção de que as mesmas são compatíveis com esta, do contrário, bastaria para tanto havendo o conflito, utilizar os instrumentos consagrados para o controle de constitucionalidade como nos ensina a melhor doutrina seguindo as formalidades para o fim com o fulcro constitucional.

A discussão em tela, em verdade se dá, para aquelas legislações já existentes e que com o advento da nova constituição possam colidir com sua estrutura jurídica formal.

A dinâmica é simples, basta, no entanto, entender as consequências:

Constituição Anterior – ANC (Assembleia Nacional Constituinte) – PCO (Poder Constituinte Originário) – Nova Constituição.

 

Legislações anteriores – Nova Constituição (vigente)

 

Existe colisão entre o conteúdo destas legislações e a constituição vigente? Sim.

Esta é a pergunta, e nos conduz a dois entendimentos, sendo que, dentre estes já possui uma resposta dada pelo Supremo Tribunal Federal. Ressalta-se, porém, possuir em ambos os casos resposta que a fundamenta. Resta-nos, no entanto, analisar antes de se proceder com a resposta os institutos e após identificá-los, apontar o fundamento do STF.

Destacando uma vez mais, de que o escopo deste estudo não é de se verificar o caso da lei compatível, nossa analise se dará apenas na incompatibilidade desta com a constituição e de forma mais restrita ainda, somente naquelas que são anteriores a constituição vigente, pois, delas extraímos a possibilidade de estudar a “revogação” e a “inconstitucionalidade superveniente”.

 

Nos ensina o mestre constitucionalista Michel Temer [3] em sua obra a seguir: “ressalte-se a ideia de que surge novo Estado a cada nova Constituição, provenha ela de movimento revolucionário ou de assembleia popular. O Estado brasileiro de 1988 não é o de 1969, nem o de 1946, o de 1937, de 1934, de 1891, ou de 1824. Historicamente é o mesmo. Geograficamente pode ser o mesmo. Não o é porém, juridicamente. A cada manifestação do constituinte, editora de atos constitucionais como constituição. Atos institucionais, e até Decretos (veja-se o Dec. n.1, de 15.11.1889, que proclamou a República e instituiu a Federação como forma de Estado), nasce o Estado. Não importa a rotulação conferida ao ato constituinte. Importa a sua natureza. Se dele decorre a certeza de rompimento com a ordem jurídica anterior, de edição normativa em desconformidade intencional com o texto em vigor, de modo a invalidar a normatividade vigente, tem-se novo Estado”.

Entre uma concepção e outra devemos entender suas circunstâncias, pois, delas fazemo-nos o melhor entendimento dos conceitos de cada uma, nos ensina Paulo Gustavo Gonet Branco [4] que: “Se a norma anterior à Constituição não guarda compatibilidade de conteúdo com esta, não continuará a vigorar, havendo, aqui, quem considere ocorrer caso de revogação e quem veja na hipótese uma inconstitucionalidade superveniente.” Observe que neste entendimento faz-se a análise sob a ótica de que quando tratamos de revogação, se faz presente à síntese de que as leis não recepcionadas por esta nova ordem jurídica padecem e perdem a sua vigência, com fulcro nos efeitos ab-rogativos que consubstanciam o próprio instituto, outrossim, não sendo necessário que exista expressamente um preceito revogatório para tanto, logo, as legislações compreendidas como desconformes com a nova constituição, automaticamente param de produzir os seus efeitos sob esta nova órbita. Destarte, que a simples manifestação constituinte de primeiro grau é suficiente para imediatamente suprir efeitos.

Por outro lado, observa-se ainda o viés da utilização nestes casos da inconstitucionalidade superveniente, preambularmente, vale destacar, sinteticamente uma distinção na hipótese de inconstitucionalidade que deve-se observar, no entanto, o momento da edição do ato normativo, traz-se à baila desta forma as explicações do mestre Francisco Sannini Neto [5] : “Fala-se em inconstitucionalidade originária quando a norma legal é editada após a Constituição e sob o seu império, mas sendo com ela incompatível. Nesse caso, o ato normativo será inconstitucional desde sua origem, já que contém vícios formais ou matérias que o incompatibilizam com a Constituição. Por outro lado, se a norma precede a Constituição e é com ela incompatível, a doutrina se divide: para uns seria caso de inconstitucionalidade superveniente já para outros, seria caso de mera revogação (direito intertemporal).” Ressalta-se uma vez mais, que o objeto em questão trata da incompatibilidade da norma anterior ao texto constitucional presente, observando-se assim a sua forma superveniente.

Observemos que as palavras podem destacar muitas das vezes explicações que se buscam através de complexas contextualizações, o próprio dicionário nos esclarece isto [6] . A palavra revogação é em seu significado nada mais do que tirar o efeito, tornar nulo algo. A palavra superveniente, no entanto, consta de algo que sobrevém que vem depois de outra coisa.

Preferência por uma ou outra opção terminológica, em verdade, decorrem de fatores jurídicos associados a cada causa e que correspondem-se reciprocamente, basta perceber a aplicação de cada termo ao fator inicial da discussão, quer seja a ação do Poder Constituinte a cerca de normas anteriores a sua magistral obra.

Vislumbrem a obra sob suas características marcantes e indiscutíveis, tais como em ser: inicial, incondicionada e ilimitada, O PCO cria o novo texto constitucional sem amarras, sem os grilhões do regime anterior, cria-se um novo regime constitucional sem antecessores jurídicos, visto que, a nova ordem é a que fundamenta e valida todos os instrumentos jurídicos a partir de então. Logo, é deste raciocínio que se perfaz a tese vitoriosa.

Na revogação, parte-se do pressuposto de que a lei anterior ao novo texto constitucional e sob o crivo deste repercute em seu sistema jurídico positivo de forma a torná-la-á incompatível para o sistema constitucional vigente, em conformidade sob primeiro plano de todos os atributos já citados como presentes no PCO, e em segundo plano, também na analise do aspecto jurídico positivo de ambas as estruturas jurídicas, que seja a constitucional e a da lei em questão.

Se o conflito existe, ele decorre de incompatibilidade de uso, visto que nova é a constituição, a lei em tese, teve sua validade confiada à ordem constitucional que lhe deu nascimento e sob o aspecto da constituição passada sua validade não denota discussão. O que vem ao caso é que sob estas circunstâncias, o fundamento jurídico anterior, que produz ou produziu efeitos, esta referida lei, simplesmente tornar-se-ia nula por ter os seus efeitos exauridos por força de nova ordem fundante, outrossim, sendo retirada tanto do aspecto hipotético como jurídico, sendo revogada.

Já observando a superveniência da lei, que lhe conferiria a inconstitucionalidade, requer cuidados, visto que, surge a indagação da utilização do controle de constitucionalidade, na atualidade não podemos ministrar tal hipótese com fulcro na justificativa jurisprudencial já consolidada pelo STF, o foco identifica que tal instituto somente demonstraria vida, caso o mesmo fosse utilizado para tratar da constitucionalidade da lei que esteja sob estrutura fundante deste arcabouço constitucional, do contrário, se não é este quem a valida, não poderia haver qualquer hipótese de se providenciar vestígios entre ambas, visto que, suas fontes são inversamente distintas, logo, a inconstitucionalidade neste caso é mero reflexo primeiramente de outro fenômeno que rege o tema quer seja a recepção.

Trazendo a baila novamente o mestre Paulo Gustavo Gonet Branco [7] cita em seu material um conceito breve e direto a cerca do que se corresponde a recepção de uma lei por uma constituição em vigência como sendo: “…que corresponde a uma revalidação das normas que não desafiam, materialmente, a nova constituição.” Em poucas palavras conseguimos expressar o sentido deste trabalho, tal como a análise da melhor doutrina sobre o tema. Portanto, seria inconcebível traçar uma inconstitucionalidade de uma lei que não tenha estabelecimento de fundação e validade naquela ordem constitucional, visto a mesma não ter sido recepcionada, logo, uma vez não sendo recepcionada, mister destacar que o instituto lançado não se trataria de uma inconstitucionalidade superveniente, mas sim, não obstante, de revogação.

O STF de forma clara destaca através de posicionamento na ADI 02-1 DF, DJ de 21-11-1997 com seu relator o eminente Ministro Paulo Brossard, e neste vamos destacar alguns posicionamentos abaixo que ressaltam tal fundamentação:

Ministro Paulo Brossard:

“07. É cediço na doutrina, quanto na jurisprudência, que a inconstitucionalidade se afere em relação à Constituição contemporânea, ao ato impugnado. A nova ordem constitucional revoga a norma por ela não recebida por motivo de incompatibilidade. Não torna, evidentemente inconstitucional o que antes nascera sem este vício. Inidônea, pois, a Ação Direta de Inconstitucionalidade para a declaração de incompatibilidade entre a norma editada na vigência da constituição, anterior e a nova ordem constitucional superveniente, já que se trataria na espécie, de revogação, matéria que não se cogita Ação Direta de Inconstitucionalidade.”

 

Ministro Castro Nunes:

“Tem-se dito – e é essa a opinião generalizada, quer na exposição do nosso direito constitucional, quer na jurisprudência – que as leis pré-existentes e havidas como incompatíveis com a constituição, são leis revogadas que escapam ao tratamento da declaração de inconstitucionalidade.

 

Ministro Octávio Gallotti em ADIn 02-1 DF de 01/07/1986:

“Representação de que não se conhece, em face do entendimento já firmado pelo Supremo Tribunal Federal, no sentido de não ter cabimento, a Representação, para obter-se a declaração da inconstitucionalidade de leis anteriores à Constituição vigente.”

Por derradeiro, verificasse que o Supremo Tribunal Federal ampara tais circunstâncias em nosso sistema sob o fulcro da tese de revogação e não da inconstitucionalidade superveniente. Conclui-se, destarte que o STF se preocupa com a analise jurídica do conteúdo desta lei anterior, visto que, o seu fundamento perde o sentido quando do surgimento de nova ordem constitucional, esta nova ordem, passa assim a ser o seu novo fundamento, e neste sentindo a lei anterior sob a analise especifica deste fundamento identifica sua compatibilidade ou não, ou seja, se recepcionada ou não pela nova constituição. Não sendo recepcionada, a lei em caso, é assim, revogada, amparada pela jurisprudência máxima e pela ampla doutrina.

 

Referências:

ADI 02-1 DF, DJ de 21-11-1997

BONAVIDES, Paulo. Direito constitucional. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 136.

MENDES, Gilmar Ferreira, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. P. 117.

SANNINI NETO, Francisco. Inconstitucionalidade Superveniente, www.jus.com.br, 02/2009, São Paulo.

TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 14ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1998, P.33.

http://www.priberam.pt/dlpo/ consulta em 17/07/2013.

Sandro Bouth Guedes

Advogado especialista em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá, Especialista em Gestão Ambiental pelo Instituto a vez do Mestre – Universidade Cândido Mendes.

Professor de diversos cursos preparatórios nas disciplinas de Direito Constitucional e Administrativo.



[1] BONAVIDES, Paulo. Direito constitucional. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 136

[2] MENDES, Gilmar Ferreira, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. P. 117

[3] TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 14ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1998, P.33.

[4] MENDES, Gilmar Ferreira, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. P. 125

[5] SANNINI NETO, Francisco. Inconstitucionalidade Superveniente, www.jus.com.br, 02/2009, São Paulo.

[6] http://www.priberam.pt/dlpo/ consulta em 17/07/2013.

[7] MENDES, Gilmar Ferreira, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. P. 123

Como citar e referenciar este artigo:
GUEDES, Sandro Bouth. Revogação ou inconstitucionalidade superveniente de norma anterior à Constituição vigente. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2013. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/revogacao-ou-inconstitucionalidade-superveniente-de-norma-anterior-a-constituicao-vigente/ Acesso em: 18 abr. 2024