Direito Constitucional

O direito de morrer: eutanásia, ortotanásia e distanásia no direito comparado

Resumo : O presente texto tem o fim de ventilar o controverso tema em epígrafe, traçando uma comparação legislativa com outros sistemas legais internacionais.

Palavras-chaves : Bioética, Direito à vida, Homicídio Privilegiado, Novo Código Penal, Direitos Humanos e Fundamentais.

1. Introdução

Antes de percorrermos a senda árida do fim da vida autodeliberado, é necessário partirmos de algumas premissas no que concerne a determinados
significados médicos e legais.

A eutanásia é entendida, de maneira ampla, como a provocação intencional da morte a determinada pessoa que sofre de enfermidade extremamente
degradante e incurável, visando privá-la dos suplícios decorrentes da doença (a raiz é grega e significa “a boa morte”, uma maneira digna de morrer).

A distanásia é o oposto da eutanásia, é a ideia de manter a vida a qualquer custo, mesmo que a pessoa tratada padeça em agonia infernal e
rejeite o prolongamento da própria vida.

Já na ortotanásia (que etimologicamente significa a morte da maneira natural), a morte se dá sem a interferência ativa de nenhum agente, sem um
prolongamento artificial executado pelo aparato tecnológico próprio da medicina contemporânea. É o famoso “desligar os aparelhos”, com o qual se
cerram as cortinas do espetáculo da vida.

Ainda que em ampla discussão em esferas sociais e jurídicas de alta estirpe, a eutanásia e a ortotanásia (eutanásia por omissão), são tratadas, pela
legislação do nosso país, como homicídio privilegiado, um crime que, por sua relevância moral, enseja uma atenuação da pena (art. 121, § 1º. do Código
Penal), mas que ainda persiste como um crime grave.

À guisa do atual movimento de mundialização jurídica (vide Tribunal Penal Internacional e o âmbito da Corte Interamericana), é nosso mister investigar
a evolução da eutanásia no direito alienígena. Desta forma, conseguiremos reunir algumas pistas sobre o progresso de valores convencionais, quiçá
enredados num futuro remoto dentro das próprias disposições universais sobre direitos humanos a respeito deste tema.

2. Eutanásia Legal: Os Países Progressistas

A Holanda é o país mais liberal quando o assunto é o direito de morrer. Lá, a eutanásia está amparada pela legislação desde 1993. A forma
passiva, por sinal, não é considerada eutanásia, mas simples decisão médica, confundindo-se com a conduta restritiva de ortotanásia ou com a recusa
terapêutica – e deste modo é mero fato atípico; quanto à forma ativa, é excludente de ilicitude, devendo observar três requisitos: que o doente seja
mentalmente capaz (adolescentes de doze a dezesseis anos podem recorrer à eutanásia se houver concordância dos pais), que reitere expressa e
voluntariamente seu desejo de morrer, seja acometido de doença incurável e suporte sofrimento agonizante, atestado por médico. O pedido é submetido a
uma comissão multidisciplinar que, em caso de deferimento do pedido, o encaminha para ratificação e acompanhamento do Ministério Público.

A Bélgica copiou a legislação holandesa em meados de 2002, inclusive quanto aos requisitos e procedimentos.

A eutanásia é acolhida também pela legislação uruguaia a partir da vigência do Código Penal de 1933,  através da criação da figura
conhecida como “homicídio piedoso”, permitindo ao juiz de direito isentar de pena o agente que provocar dolosamente a morte de terceiro, mediante três
pressupostos: bons antecedentes, motivos altruístas direcionados a condições objetivas de padecimento da vítima e a manifestação reiterada da mesma
pelo fim de sua vida.[1] Como contradição e crítica do sistema uruguaio, pesa o fato de que a instigação e auxílio ao suicídio não prevê a
possibilidade de perdão judicial em caso de eutanásia.

A despeito de não possuir hodiernamente dispositivo legal a descriminalizar a eutanásia, a Suprema Corte da Colômbia também determinou a
exclusão da penalidade correspondente para os médicos que cometessem a “eutanásia piedosa, permitindo ao paciente uma morte digna”.[2]

Na China, desde 1998 o governo comunista autorizou a prática da eutanásia em pacientes terminais, deixando a discricionariedade a critério
dos médicos e estabelecendo como condição única a terminalidade do paciente. Não nos parece, neste caso, tratar-se de uma medida progressista, que
privilegia os direitos individuais do paciente e sua família, buscando poupar-lhe de sofrimento inútil. Ao contrário, é medida meramente
administrativa, autoritária, motivada por razões econômicas e demográficas locais, à base da insegurança jurídica característica das ditaduras.

3. Países que admitem a possibilidade de eutanásia passiva
Os debates sobre eutanásia nos EUA são antigos e seu primeiro registro data de 1906. Como naquele país os estados têm competência para
legislar sobre direito criminal, o resultado é a falta de uniformidade sobre a questão, muito embora seja evidente a predominância do conservadorismo
puritano. O Estado da Califórnia reconhece o direito do paciente recusar o tratamento que o mantinha com vida – the Natural Death Act – desde
1976. Oregon, Massachussets e Conecticut também têm disposições neste sentido, mas todas elas não preveem o suicídio assistido ou a conduta ativa, mas
tão somente a suspensão do suporte vital artificial, mediante manifestação prévia do paciente ou sua família (no caso deste não poder manifestar sua
vontade).

No mesmo sentido de seus compadres americanos filia-se a common law britânica, permitindo a suspensão do tratamento a doentes
incuráveis e terminais, mediante rigorosos requisitos e condições extremas, entre as quais a perícia técnica sobre a anamnese do paciente e a sua
disposição legítima de vontade.

A Constituição espanhola – que protege a dignidade da pessoa humana em seu artigo 10- assevera que, conquanto todos tenham direito à vida,
em nenhum caso haverá submissão a torturas, penas ou tratamentos desumanos ou degradantes, o que tem permitido a interpretação de que é possível a
abstenção consentida do tratamento nos casos em que se considere que há degradação na manutenção da vida. [3] A conduta ativa terá pena reduzida em
relação ao homicídio simples; o auxílio ao suicídio é penalizado em qualquer hipótese.

A instigação ou auxílio ao suicídio não recebe tratamento penal na Alemanha, desde que o ato final que dá a causa da morte seja próprio do
suicida, devendo ele ser pessoa capaz e estar no pleno gozo de suas capacidades mentais. A lei também submete a juízo individual a liberalidade de
receber ou recusar tratamento ao paciente, a qualquer tempo. Trata-se de um direito individual cristalizado pelo ordenamento germânico.

Na Dinamarca, a eutanásia é recriminada. Só se admitia a interrupção do tratamento mediante escritura pública feita pelo paciente, o que
provocou uma corrida aos cartórios do país. O censo do governo local demonstra que foram registrados 70.000 testamentos apenas em 1992, quando a
exigência virou lei. Só a partir de 1998 que a legislação dinamarquesa transferiu à família do doente a possibilidade de interromper o tratamento, no
caso de incapacidade do mesmo.

4. Eutanásia Como Crime Privilegiado

O Código Penal português de 1995 trata duas hipóteses de eutanásia: a que ocorre mediante vontade expressa e comprovada do doente e a
aquela em que esta vontade é presumida diante das condições objetivas do paciente e da evolução de seu quadro médico. No primeiro caso, a pena
correspondente ao crime é limitada a três anos de prisão (passíveis de suspensão condicional); no segundo, ela varia de um a cinco anos. Apenas para
fins comparativos, o homicídio simples naquele ordenamento é apenado com prisão de oito a dezesseis anos.

A corrente de pensamento dominante na legislação penal mundial é a do tratamento da eutanásia como homicídio privilegiado, tendo a pena
reduzida e equiparada, como no caso da Argentina, à do crime correspondente ao de instigação e auxílio ao suicídio previsto em nossa legislação. É
possível observar esta realidade no artigo 116 do Código Penal costa-riquenho e no artigo 157 do código peruano. Adotam este entendimento também
Noruega, Polônia e Suíça.

Outros países preferem tratar a eutanásia como um tipo penal próprio diferenciado do homicídio: é o que acontece em Cuba, na Áustria e na
Grécia. Nestes casos, no entanto, o espírito da lei também é o de manter a conduta como crime, mas oferecendo um tratamento punitivo mais brando.

5. Repressão à Eutanásia: A Vida Como Direito Indisponível

Existe uma parcela relevante de países que se inclinam à opinião de que a eutanásia é apenas uma forma de homicídio e/ou instigação e
auxílio ao suicídio e que deve ser tratada sob este prisma. Em que pese a piedade e o altruísmo valerem na dosiometria da pena quanto à análise
subjetiva que o juiz faz, o tratamento legal e a pena em abstrato não observam qualquer privilégio. Neste rol estão Canadá, México, Japão, Itália,
França, Dinamarca (quanto à eutanásia ativa) e a maioria dos estados dos Estados Unidos da América.

A Itália talvez seja o país mais emblemático do extremismo conservador: nesse país, o médico está vedado de interromper o tratamento
terapêutico, sob qualquer hipótese clínica e mesmo a despeito da recusa do paciente, embora o Código de Deontologia Médica contenha orientação no
sentido de evitar procedimentos inúteis.

Disposição semelhante observa a França,  atualmente mantendo em custódia uma senhora que atendeu os clamores de seu filho, um jovem de 22
anos tetraplégico, surdo e cego, o qual  matou com uma overdose de medicamentos barbitúricos.

Interessante observar que, com exceção do Japão, onde o problema do suicídio é epidêmico, todos os outros países desta lista têm
fortíssimas influências cristãs, doutrina que prega aos homens o dever de suportar suas aflições, não importando a severidade das mesmas, como provação
para herdar o “reino dos céus”. O desejo de dar cabo da própria vida, neste sentido, é proscrito e considerado a heresia mais grave possível contra a
divindade, pois o suicida atenta contra a sua vida – que, nesta óptica, não lhe pertence – e contra a vontade de deus. Esta visão também é
compartilhada pelos países de maioria muçulmana e está refletida em suas legislações penais.

6. Austrália: um caso à parte

Em 1996, uma lei local dos Territórios do Norte da Austrália admitiu a eutanásia dentro de rigorosos critérios, sendo o modelo mais próximo
de um projeto de lei sobre o tema apresentado no Brasil. Os requisitos para a concessão da eutanásia eram: o paciente ser maior de 18 anos; ser
portador de doença letal em fase terminal; ter diagnóstico e prognóstico confirmados por dois médicos; indisponibilidade de tratamentos para amenizar o
sofrimento decorrente da patologia e afastada por psiquiatra a hipótese de depressão clínica tratável. O paciente, após conhecer todas as opções de
tratamento, deveria preencher um certificado de solicitação específico, submetido ao Ministério da Saúde, tudo acompanhado por um promotor.

Ocorre que no ano seguinte a lei foi revogada por disposição hierárquica superior (norma federal), aprovada por estreita maioria e em
conflito com a opinião dos 70% dos eleitores, que se posicionavam a favor daquela primeira norma. A Austrália é caso singular a ser estudado, pois de
maneira incomum avançou no sentido de liberalizar a eutanásia e logo em seguida retrocedeu, quando o que ocorre geralmente é a inviabilidade de
retrocesso nos demais países pesquisados.

7. Evoluções no Brasil

O anteprojeto de lei para alteração do Código Penal, em elaboração por uma comissão de juristas no Senado Federal, reitera o entendimento
da prática da eutanásia como crime privilegiado, porém ameniza a pena, que passará, pelo projeto, ao máximo de 4 anos de detenção, enquanto hoje a lei
autoriza apenas uma redução de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço) da pena, que é de  6 (seis) a 20 (vinte) anos (homicídio doloso).

Na prática, se aprovada, a nova lei permitirá benefícios aos condenados, como a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas
de direito e multa, ou até a suspensão condicional da pena.

Conclusões

O tratamento que cada país oferece ao direito de morrer com dignidade revela as marcas impressas em seu povo pelo seu peculiar processo de
desenvolvimento histórico e cultural. E nem poderia ser diferente.

Encarando a realidade brasileira e a nossa jovem democracia, talvez seja o momento de tratar os assuntos que revolvem valores históricos e
religiosos, profundamente arraigados, com o merecido debate público e uma deliberação mais democrática, de preferência sob a forma de plebiscito. Até
porque é preciso chegar-se a um meio termo ético que fuja das convicções pessoais ou daquelas de determinados setores isolados da sociedade. O assunto
merece uma maturação melhor antes de ser passado à letra da lei.

As novas disposições sobre eutanásia, mesmo numa visão mais liberal, não podem ser simplistas como desejam os juristas pátrios a compor o
anteprojeto do novo Código Penal, tendo em vista os perigos inerentes à prática, como, por exemplo, o uso da eutanásia a pretexto de descendentes
aniquilarem ascendentes no afã de se apropriar de seus bens. Ou ainda, a temeridade de se abrir espaços para uma máfia de tráfico de órgãos atuante nos
hospitais brasileiros. Não há espaço para a inocência.

Notas de rodapé:

1   ASÚA, Luis Jimenez de. Liberdad de Amar Y Derecho a Morir. 7. ed. Buenos Aires: Depalma, 1992.

2   DINIZ, Debora. Despenalização da Eutanásia Passiva: O Caso Colombiano. In: COSTA, Sérgio; DINIZ, Débora. Bioética: Ensaios. Brasília: Letras
Livres, 2001, p. 169-174.

3   Cf. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral da Bioética e Biodireito. In TEIXEIRA, Sálvio de Figueredo. Direito e Medicina. Belo Horizonte:
Del Rey, 2000, p. 67-109:
“Os artigos 10, 15, 17 e 18 da Constituição Espanhola, a resolução 613-1976 do Conselho da Europa, na jurisprudência internacional entendem: O
direito constitucional à intimidade, acolhido no âmbito próprio, pertence à pessoa, ao cidadão, incluindo nele a opção de recusar tratamento
médico; perante sofrimentos estéreis, derivados de lesão ou enfermidade irreversível e grave, o direito de morrer; reivindicado por adulto
capacitado, compreendido em seu âmbito privado, tem primazia sobre as razões ordinárias de interesse público e bem comum”
.

Guilherme Gouvêa Pícolo é advogado, editor e pós-graduando em Direito Civil na PUC-MG

Como citar e referenciar este artigo:
PÍCOLO, Guilherme Gouvêa. O direito de morrer: eutanásia, ortotanásia e distanásia no direito comparado. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2012. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/o-direito-de-morrer-eutanasia-ortotanasia-e-distanasia-no-direito-comparado/ Acesso em: 19 abr. 2024