Direito Constitucional

Imunidades diplomáticas: breve estudo acerca de seus fundamentos e aplicabilidade

Resumo: este artigo aborda, de maneira sucinta, as imunidades conferidas aos agentes diplomáticos no exercício de suas funções e as características dessa prerrogativa. Abordam-se, também, as principais teorias existentes acerca do fundamento jurídico das imunidades diplomáticas: teoria da extraterritorialidade, teoria do caráter representativo e teoria da necessidade funcional. Por último, realiza-se breve explicação acerca das imunidades penais e civis conferidas aos agentes diplomáticos, ao mesmo tempo em que se estabelecem as diferenças existentes entre as imunidades nessas duas áreas. Ressalta-se, ao longo deste estudo, a coerência dos dispositivos da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas com a teoria do interesse funcional como fundamento jurídico das imunidades diplomáticas.

Palavras-chave: imunidades diplomáticas; fundamento jurídico das imunidades diplomáticas. Imunidade civil agente diplomático; imunidade penal.

 

Abstract: this article aims at briefly approaching immunities attributed to diplomatic agents in their functions and the characteristics of this prerogative. This article also aims at approaching the main theories related to the legal basis of diplomatic immunities: the theory of extraterritoriality, the theory of personal representation and the theory of functional necessity. This research will also entail a brief explanation of penal and civil diplomatic immunities and, simultaneously, establish the main differences between these two areas. The whole explanation in this article will be focused on the coherence verified between the Vienna Convention on Diplomatic Immunities and the theory of functional necessity as the legal basis of diplomatic immunities.

Key words: diplomatic immunities; the legal basis of diplomatic immunities; the civil immunity of diplomatic agents; the penal immunity of diplomatic agents.

 

 

 

1. Introdução

 

Ao iniciar a abordagem do tema das imunidades diplomáticas, é necessário conceituá-lo, considerando-se que a compreensão do termo “imunidades diplomáticas” será importante para a análise dos fundamentos e da aplicabilidade desse instituto.

 

A imunidade é o atributo de quem se mantém alheio, inerte, aos efeitos produzidos por determinado acontecimento, situação, pessoa ou coisa. Pode ser conceituada, também, como a condição de quem não se sujeita a algum ônus ou encargo que lhe é imposto ou que é imposto aos demais[1].

 

A imunidade diplomática, à semelhança de outros institutos encontrados em diversos ramos do Direito, como a Imunidade parlamentar, por exemplo, configura espécie de imunidade jurídica. As imunidades diplomáticas relacionam-se, diretamente, com o Direito internacional e com as relações internacionais, porquanto têm o objetivo de conferir efetividade e segurança às missões diplomáticas e, consequentemente, à diplomacia, sendo consideradas imprescindíveis para sua realização e existência.

 

Nas palavras de Sérgio Eduardo Moreira Lima:

 

“A palavra imunidade se origina do latim immunitas, immunitatis, qualidade de imune, isto é, livre ou isento de encargos, obrigações, ônus ou penas. A imunidade é prerrogativa, outorgada a alguém para que se exima de certas imposições legais em virtude do que não é obrigado a fazer ou a cumprir certos encargos ou obrigações determinados em caráter geral. É no campo das relações internacionais que este conceito goza de maior relevância. A imunidade diplomática consiste na soma de isenções e prerrogativas concedidas aos agentes diplomáticos para assegurar-lhes, no interesse recíproco dos Estados, a independência necessária ao perfeito desempenho de sua missão”[2]

 

A imunidade diplomática retira da jurisdição do Estado acreditado (aquele que recebe a missão diplomática) os agentes diplomáticos enviados pelo Estado acreditante, visando, desse modo, conferir-lhes a liberdade necessária para a realização e para o sucesso da missão diplomática da qual estão incumbidos.

 

São inúmeras as definições atribuídas a esse instituto por doutrinadores, referindo-se, em todos os conceitos, à segurança que essa prerrogativa aporta aos agentes diplomáticos e às suas missões. Verifica-se que, desprovidos da imunidade diplomática, os agentes diplomáticos poderiam sofrer intervenção do Estado acreditado, o que impossibilitaria o consenso, a negociação e a prática da diplomacia, a qual consiste, basicamente, no exercício das relações entre os Estados (considerando-se as funções do diplomata de negociar, informar e representar) e é caracterizada pela isonomia.

 

 As missões diplomáticas tratam de assuntos que englobam, diretamente, os interesses dos Estados no âmbito de suas relações internacionais. Assim, ausente o instituto das imunidades diplomáticas, as negociações e as relações entre os países estariam sob o risco da imposição daquele que, conforme a situação, estivesse em posição vantajosa ou que lhe possibilitasse o uso de coerção. Nesse contexto, pode-se afirmar que as imunidades diplomáticas contribuem para a manutenção de uma ordem internacional mais equânime e pautada na legalidade, voltada para a negociação e para a obtenção pacífica de resultados efetivos.

 

Segundo Miguel Ângelo Ciavareli Nogueira dos Santos e Vincenzo Rocco Sicari, respectivamente:

 

“A execução das funções de uma missão diplomática – órgão das relações externas dos Estados – não seria possível se o Estado acreditado não garantisse a ela e aos seus componentes aquele complexo de tratamentos necessários à sua liberdade, ao seu decoro, à sua  independência e, sobretudo, à sua segurança”[3]

 

“…são formas de garantia nas relações internacionais entre os Estados soberanos, pressupõem a representação política desses Estados no estrangeiro, decorrentes das necessárias atividades diplomáticas, que regulam os interesses recíprocos das nações. Estão ligadas à necessidade de se proteger os agentes ou representantes de países no estrangeiro, no exercício de suas funções de diplomacia. O nomen juris delas, portanto, é apropriado e aceito pela doutrina”[4]

 

Dessa forma, as imunidades diplomáticas caracterizam-se, principalmente, pela segurança e pela independência da qual revestem as missões diplomáticas e os seus membros, permitindo-lhes exercer suas funções de maneira plena e eficaz.  Pode-se destacar como atributo das imunidades diplomáticas a isenção concedida ao agente diplomático, subtraindo-o da jurisdição do estado em que se encontra acreditado. Essa isenção pode ocorrer de maneira absoluta em determinadas situações (imunidade penal) e de maneira parcial em outras situações (imunidade civil).

 

2. Fundamentos Jurídicos das Imunidades do Agente Diplomático

 

O estudo da Imunidade Diplomática, ou de qualquer outro instituto, exige o deslinde prévio de seu fundamento jurídico, a fim de que o estudo possa ser feito em observância à finalidade do tema que se pretende pesquisar. No caso das imunidades do agente diplomático, no decorrer de sua evolução histórica, verifica-se o surgimento de três principais teorias que visam fundamentar e legitimar sua existência: a teoria da extraterritorialidade, a teoria do caráter representativo e a teoria do interesse da função, também chamada de Teoria do Caráter funcional.[5]

 

2.1 Teoria da Extraterritorialidade ou Exterritorialidade

 

Essa teoria, que teve origem no século XVI[6], de autoria de Grotius[7], teve grande importância para a evolução do instituto da imunidade diplomática, considerando-se que norteou sua aplicação durante praticamente três séculos.

 

O conceito de extraterritorialidade teve, ao longo de sua existência, duas vertentes: de acordo com a primeira vertente, chamada de extraterritorialidade fictícia, o agente diplomático, embora esteja vivendo no Estado acreditado, não deixou, de fato, o território do Estado acreditante, razão pela qual se mantém imune à jurisdição do Estado acreditado; de acordo com a segunda vertente, chamada de extraterritorialidade real, o local da Missão diplomática configuraria prolongamento territorial do Estado acreditante, o que justificaria o fato de a jurisdição do Estado acreditado não alcançar os membros que compõem a missão diplomática.

 

Nas palavras de Sérgio Eduardo Moreira Lima, a teoria da extraterritorialidade:

 

“Vale-se de uma ficção para sustentar que o agente supostamente estaria fora do território (fingitur esse extra territorium) no qual exerce suas funções, de modo a não estar subordinado à lei da nação estrangeira onde viva. Da extraterritorialidade fictícia passou-se à teoria da extraterritorialidade real, segundo a qual o próprio local da missão diplomática representaria uma extensão do Estado acreditante e não estaria, assim, sujeito à jurisdição  do Estado acreditado”[8]

 

Embora reconhecida a importância dessa teoria para a evolução do Direito Diplomático, a extraterritorialidade não foi o critério adotado pela Convenção de Viena sobre Relações diplomáticas, já que essa teoria apresenta falhas, sobretudo devido ao fato de que o agente diplomático não está, completamente, alheio à jurisdição do Estado acreditado. Embora possa estar protegido pela imunidade, o agente diplomático deve, em consonância com o artigo 41, §1­º, da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, respeitar as leis e os regulamentos do Estado em que se encontre.

 

2.2 Teoria do Caráter Representativo

                                                                                                                         

A teoria do caráter representativo consistiu, em um primeiro momento, na ideia de que o agente diplomático representaria o próprio soberano do Estado que o acreditou. Portanto, a ideia central da teoria do caráter representativo consubstanciava-se no fato de que, por representar, diretamente, um soberano, o agente diplomático não teria que se submeter a outro soberano (princípio par in parem non habet judicium).

 

Nas palavras de Vincenzo Rocco Sicari:

 

“Tal teoria se originou na época monárquica, quando as relações internacionais eram consideradas da mesma forma que as relações pessoais entre os príncipes e os reis. Os diplomatas, por sua vez, eram vistos como representantes diretos dos mesmos.

Na época contemporânea, a missão e os seus agentes representam o Estado acreditante. Portanto, aqueles se beneficiam dos privilégios e das imunidades diplomáticas porque o Estado acreditado, reconhecendo a dignidade e a liberdade dos mesmos, respeita, ao mesmo tempo, a dignidade e a liberdade do próprio Estado acreditante”[9]

 

Ao longo dos anos, essa teoria manteve sua importância e respaldo, deixando, porém, de vincular-se ao soberano para vincular-se ao Estado, que é representado pelo agente diplomático.  De certa forma, a teoria do caráter representativo sempre esteve relacionada ao Estado acreditante, visto que, à época de seu surgimento, a figura do Estado confundia-se com a própria pessoa do soberano – absolutismo monárquico –, como pode ser ilustrado pela célebre frase atribuída a Louis XIV: L’état c’est moi”  – “O Estado sou eu”.

 

 

2.3 Teoria da Necessidade Funcional ou Interesse da Função

 

Segundo a teoria da necessidade funcional ou interesse da função, mais recente que as demais teorias acerca do fundamento das imunidades diplomáticas, a concessão de imunidade ao agente diplomático deve ser atribuída ao aspecto negocial de sua função e à missão a que está vinculado, a qual deve ser exercida de maneira independente e livre, sem subordinações ao Estado acreditado, para que possa atingir os objetivos esperados.

 

Sérgio Eduardo Moreira Lima, ao abordar a teoria da Necessidade Funcional, escreveu:

 

“A tendência moderna é, no entanto, a de conceder privilégios e imunidades ao agente diplomático na ‘necessidade funcional’: as imunidades são outorgadas aos diplomatas porque, de outra forma, não poderiam exercer com independência e adequadamente sua missão. Fossem eles sujeitos à interferência legal e política ou à boa vontade do Estado acreditado ou de seus nacionais, poderiam ser influenciados por considerações de segurança e conforto num grau que os prejudicaria materialmente no exercício de suas funções”[10]

 

Desse modo, a teoria da necessidade funcional, combinada à teoria do caráter representativo, confere fundamento jurídico às prerrogativas de imunidade do agente diplomático, conforme se pode depreender da leitura do preâmbulo da Convenção de Viena Sobre Relações Diplomáticas de 1961:

 

“Os Estados-Partes na presente Convenção, considerando que, desde tempos remotos, os povos de todas as nações têm reconhecido a condição dos agentes diplomáticos; conscientes dos propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas relativos à igualdade soberana dos Estados, à manutenção da paz e da segurança internacional e ao desenvolvimento das relações de amizade entre as nações; estimando que uma Convenção Internacional sobre relações, privilégios e imunidades diplomáticas contribuirá para o desenvolvimento de relações amistosas entre as Nações, independentemente da diversidade dos seus regimes constitucionais e sociais; reconhecendo que a finalidade de tais privilégios e imunidades não é beneficiar indivíduos, mas, sim, a de garantir o eficaz desempenho das funções das Missões Diplomáticas, em seu caráter representantes dos Estados; afirmando que as normas de Direito Internacional consuetudinário devem continuar regendo as questões que não tenham sido expressamente reguladas nas disposições da presente Convenção…”[11].

 

Considerando-se a evolução das relações internacionais e o amadurecimento das concepções de Estado e de política, descartou-se, embora reconhecendo sua importância, a teoria da extraterritorialidade, a qual concedia imunidade absoluta ao agente diplomático devido a uma ficção jurídica. Adotaram-se, de maneira complementar, as teorias do caráter representativo e da necessidade funcional. Essas teorias são harmônicas, porque a representação é uma das funções inerentes da Missão Diplomática, cuja realização é feita pelos agentes diplomáticos, de acordo com o artigo 3.º da Convenção de Viena de 1961[12].

 

Por conseguinte, entende-se que a concessão de imunidade aos agentes diplomáticos, funda-se no fato de representarem interesses de um Estado perante outro, possuindo, sua função, aspecto negocial, cuja independência é imprescindível para a correta manutenção das relações internacionais. Além disso, a teoria do Interesse funcional confere certa limitação ao exercício das imunidades do agente diplomático, o que se harmoniza com os demais artigos da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, e previne o cometimento de abusos e de arbitrariedades.

 

3. Imunidade de Jurisdição Penal do Agente Diplomático

 

Consoante a primeira parte do artigo 31, da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, “O agente diplomático gozará da imunidade de jurisdição penal do Estado acreditado.”[13]. Esse trecho revela o aspecto absoluto da imunidade de jurisdição penal conferida aos agentes diplomáticos e requer que sua interpretação seja feita, conjuntamente, com o §4.º, do mesmo dispositivo, o qual dispõe que “A imunidade de jurisdição de um agente diplomático no Estado acreditado não o isenta da jurisdição do Estado acreditante”[14].

 

Desse modo, a imunidade de jurisdição penal concedida aos agentes diplomáticos no Estado acreditado é absoluta e vale, inclusive, para os atos praticados fora do exercício da função, o que, todavia, não o isenta de responder por eventual crime no seu Estado de origem (Estado acreditante), devendo-se observar, também, o princípio da dupla incriminação[15], que exige que o fato seja tipificado em ambos os países.

 

O agente diplomático não poderá ser julgado pelos Tribunais do Estado acreditado. Quanto ao cabimento de investigação policial, há divergência na doutrina. José Francisco Resek, ao aludir ao tema da imunidade de jurisdição penal, escreveu que:

 

“A imunidade não impede a polícia local de investigar o crime, preparando a informação sobre a qual se presume que a Justiça do Estado de origem processará o agente beneficiado pelo privilégio diplomático”[16]

 

Contrapondo-se a essa ideia, o professor Vincezo Rocco Sicari entende que “… os agentes diplomáticos não podem ser perseguidos perante os tribunais do Estado acreditado, nem ser investigados por nenhuma autoridade judiciária ou de polícia” [17].

 

Por tratar-se de procedimento inquisitivo e informativo (não jurisdicional), o presente trabalho entende que a investigação acerca de ato ilícito praticado por agente diplomático no país acreditado pode ser realizada, inclusive porque se trata de auxílio ao Estado acreditante, o qual deverá receber as informações sobre o eventual fato ocorrido. Entende-se, também, que o procedimento de investigação (inquérito) deverá ser feito com reservas, de maneira a não perturbar as funções exercidas pelo agente diplomático e respeitando os demais limites impostos na Convenção de Viena sobre relações Diplomáticas – inviolabilidade de sua pessoa, residência, bens e correspondência.

 

Cumpre ressaltar, ainda, que a Doutrina Processual Penal brasileira, em consonância com a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de 1961, inclui o agente diplomático entre aqueles que não podem ser presos em flagrante “por força de tratados e de convenções internacionais ratificados pelo Brasil”[18].

 

3.1 Imunidade de Jurisdição Cível e Administrativa

 

Trata-se de Imunidade referente a processos cíveis e administrativos, sendo que nada impede que o Agente Diplomático figure tanto no polo ativo como no polo passivo da relação processual.

 

Seguindo a leitura do artigo 31, tem-se a seguinte redação:

 

“ …Gozará também da imunidade de jurisdição civil e administrativa, a não ser que de:

a) uma ação sobre imóvel privado situado no território do Estado acreditado, salvo se o agente diplomático o possuir por conta do Estado acreditante para os fins da Missão;

b) uma ação sucessória na qual o agente diplomático figure, a título privado e não em nome do Estado, como executor testamentário, administrador, herdeiro ou legatário;

c) uma ação referente a qualquer profissão liberal ou atividade comercial exercida pelo agente diplomático no Estado acreditado fora de suas funções oficiais…

3. O agente diplomático não está sujeito a nenhuma medida de execução a não ser nos casos previstos nas alíneas ‘a’, ‘b’ e ‘c’, do parágrafo 1.º deste artigo e desde que a execução possa realizar-se sem afetar a inviolabilidade de sua pessoa e sua residência.”[19]

 

Conforme deflui da própria redação do artigo 31 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, a imunidade de jurisdição civil do Agente Diplomático, diferentemente do que ocorre no âmbito penal, não é absoluta e comporta três exceções: a primeira delas recai sobre ações relativas a imóvel situado no Estado acreditado, o qual não se destina à instalação da Missão Diplomática; a segunda exceção recai sobre ações relativas a sucessão em que o agente diplomático é parte interessada como pessoa privada; e a terceira exceção recai sobre ações referentes a profissão liberal ou atividade comercial exercida pelo diplomata fora das suas funções oficiais[20]. A primeira exceção advém da soberania Territorial do Estado acreditado[21], o que se soma ao fato de que:

 

“… o propósito dos negociadores em Viena foi o de não estender a imunidade às transações comerciais de caráter privado efetuado pelo agente diplomático e assegurar ao reclamante um foro para sua ação…”[22]

 

A segunda exceção, também, relaciona-se à soberania do Estado acreditado, considerando-se que as sucessões são regidas, em regra (de acordo com a legislação de vários países, como o Brasil), pelas Leis dos lugares em que ocorre sua abertura. Nesse sentido, vale citar os ensinamentos de Carlos Roberto Gonçalves acerca do artigo 89 do Código de Processo Civil brasileiro:

 

“Na esfera internacional, dispõe o art. 89 do Código de Processo Civil que compete à autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qualquer outra ‘proceder a inventário e partilha de bens, situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja estrangeiro e tenha residido fora do território nacional’. Somente, portanto, se o brasileiro ou estrangeiro, falecido no exterior deixar bens no Brasil é que o foro competente será o da Justiça brasileira. Se os bens deixados estão localizados no exterior, o processamento do inventário e partilha de bens situados no Brasil em país estrangeiro, a sentença não terá validade no Brasil, nem induzirá litispendência”.[23]

 

 Verifica-se que, ao estabelecer a exceção presente no artigo 31, §1º, “b”, a Convenção de Viena buscou estar em consonância com o costume internacional, ainda que os casos relativos a essa exceção encontrem pouca incidência na prática[24].

 

Quanto à terceira exceção, relativa ao exercício de profissão liberal ou atividade comercial, tem o escopo de evitar que os agentes diplomáticos, valendo-se da prerrogativa de que dispõem, possam praticar funções alheias às suas atividades profissionais em situação de vantagem com relação aos nacionais do Estado em que se encontrem acreditados. Vale ressaltar que o artigo 42 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas dispõe que “O agente diplomático não exercerá no Estado acreditado nenhuma atividade profissional ou comercial em proveito próprio”,[25] admitindo-se, todavia, o exercício de atividade intelectual e literária[26].

 

3.2 Imunidade quanto às Medidas de Execução

 

Essa prerrogativa, conferida ao agente diplomático pelo parágrafo terceiro do artigo 31 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, à semelhança do que ocorre com a imunidade no âmbito penal, não significa que o diplomata possa se esquivar de obrigações eventualmente assumidas. Afinal, caso o agente diplomático não venha a adimplir alguma obrigação ou viole normal contratual, subsistem, ainda, algumas maneiras da vítima ver-se ressarcida, como o ajuizamento de ação no Estado acreditante ou mesmo a obtenção de acerto amigável.

 

3.3 Renúncia à Imunidade do Agente Diplomático

 

O Estado acreditante, e não Agente Diplomático, pode renunciar, expressamente, às prerrogativas conferidas aos seus representantes – diplomatas –, possibilitando o seu julgamento pelos tribunais do Estado acreditado. O artigo 32, da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas traz a seguinte redação:

 

“Art. 32. 1. O Estado acreditante pode renunciar à imunidade de jurisdição dos seus agentes diplomáticos e das pessoas que gozem de imunidade nos termos do artigo 37.

2. A renúncia será expressa.

3. Se um agente diplomático ou uma pessoa que goza de imunidade de jurisdição nos termos do artigo 37 inicia uma ação judicial, não lhe será permitido invocar a imunidade de jurisdição no tocante a uma reconvenção diretamente ligada à ação principal.

4. A renúncia à imunidade de jurisdição no tocante às ações civis ou administrativas não implica renúncia à imunidade quanto às medidas de execução de sentença, para as quais nova renúncia é necessária.”[27]

 

 A renúncia somente poderá ser feita pelo Estado acreditante, a pedido do Estado acreditado ou de ofício, não cabendo ao próprio agente diplomático fazê-la, o que corrobora o fato de as imunidades diplomáticas não estarem ligadas à pessoa do diplomata, mas sim ao Estado que representa e à função que exerce. Depreende-se, também, da leitura do artigo 32, que, se o agente diplomático ajuíza uma ação no Estado em que se encontra acreditado, não poderá invocar qualquer imunidade em face de reconvenção, considerando-se o intuito da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de prevenir qualquer situação que possa colocar o agente diplomático em evidente vantagem em relação aos nacionais do Estado acreditado. Esse dispositivo confirma a ligação existente entre as imunidades diplomáticas e o interesse da função desenvolvida pelos agentes diplomáticos no Estado acreditado.

 

Vale ressaltar que, tendo solicitado a prestação jurisdicional do Estado acreditado (por meio do ajuizamento de uma ação, por exemplo), o agente diplomático não poderá invocar imunidades ou privilégios, pois, caso isso fosse possível, haveria clara desigualdade entre as partes envolvidas nos polos ativo e passivo do processo. Por derradeiro, o artigo 32 ressalta que a renúncia à imunidade civil não significa renúncia automática à imunidade de execução, o que reforça o caráter expresso e excepcional da renúncia às imunidades.

 

4. Conclusão

 

As imunidades de que dispõem os agentes diplomáticos devem ser analisadas sob a perspectiva de seu fundamento jurídico, que reúne elementos da teoria da necessidade funcional e do caráter representativo da função. Nesse sentido, as imunidades diplomáticas existem em decorrência do aspecto negocial inerente às funções do agente diplomático, as quais são descritas no artigo 3º da Convenção de Viena de 1961. A necessidade de isenção do agente diplomático à jurisdição do Estado em que se encontra deve ser atribuída à imprescindibilidade de independência para o exercício das funções relacionadas à carreira diplomática.

 

A teoria do caráter representativo da função, combinada à teoria da necessidade funcional, encontra-se presente no preâmbulo da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas e, também, ao longo do texto dessa convenção, conforme se infere, por exemplo, da leitura de seu artigo 32, o qual estabelece que a renúncia às imunidades diplomáticas configura prerrogativa do Estado acreditante. Esse dispositivo demonstra que as imunidades estão ligadas ao Estado que é representado pelo diplomata (e não à pessoa do diplomata) durante o exercício de suas funções.

 

A imunidade penal do agente diplomático é absoluta, o que não significa que seus atos estejam, também, isentos de responsabilidade perante o Estado que o acredita. A imunidade civil comporta três exceções, as quais se relacionam com a necessidade de preservar aspectos referentes à soberania do Estado acreditado (ações que envolvem bens imóveis e sucessões) e, igualmente, a paridade de relações entre os diplomatas e os nacionais do Estado acreditado (ações que envolvem o exercício de funções liberais). Essas exceções comprovam que o fundamento das imunidades diplomáticas encontra-se no interesse da função exercida pelos agentes diplomáticos enquanto representantes de um Estado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

5. Referências:

 

BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.

 

FERREIRA, Sérgio Buarque de Holanda. Mini Aurélio, O Minidicionário da língua portuguesa. Editora Nova Fronteira, 2001. p. 378.

 

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, Volume VII, Direito das Sucessões. 3.ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.

 

LAMBERT, Jean-Marie. Curso de Direito Internacional Público. Goiânia: Editora Kelps, 2001.

 

LIMA, Sérgio Eduardo Moreira. Imunidade diplomática Instrumento de Política externa. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004.

 

MELLO, Celso D. De Albuquerque. Tratados e Convenções. 5ª Edição. Editora Renovar.

 

REZEK, Francisco. Direito Internacional Público. São Paulo: Editora Saraiva, 2006.

 

SANTOS, Miguel Ângelo Ciavareli dos. Imunidades Jurídicas. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2007.

 

SICARI, Vincenzo Rocco. O Direito das Relações Diplomáticas. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2007.

 

 

* Felipe Neves Caetano Ribeiro[28]

 



[1]   FERREIRA, Sérgio Buarque de Holanda. Mini Aurélio, O Minidicionário da língua portuguesa. Editora Nova Fronteira, 2001. p. 378.

[2]   LIMA, Sérgio Eduardo Moreira. Imunidade diplomática Instrumento de Política Externa. Editora Lumen Juris, 2004, p. 22.

[3]   SICARI, Vicenzo Rocco. O Direito das Relações Diplomáticas. Editora Del Rey, 2007, p.123.

[4]   DOS SANTOS, Miguel Ângelo Ciavareli Nogueira. Imunidades Jurídicas. Editora Juarez de Oliveira 2003, p.117.

[5]   LIMA, Sérgio Eduardo Moreira. Imunidade diplomática Instrumento de Política Externa.  Editora Lumen Juris. 2004, p. 29.

[6]   IDEM, p. 29.

[7]   SICARI, Vincezo Rocco. O Direito das relações diplomáticas. Editora del Rey, 2007. p.125.

[8]   LIMA, Sérgio Eduardo Moreira. Imunidade diplomática Instrumento de Política Externa. Editora Lumen Juris, 2004. p. 29/ 30.

[9]   SICARI, Vincezo Rocco. O Direito das relações diplomáticas. Editora del Rey, 2007. p.126.

[10] LIMA, Sérgio Eduardo Moreira. Imunidade diplomática Instrumento de Política Externa.  Editora Lumen Juris, 2004. p. 32.

[11] MELLO, Celso D. de Albuquerque. Tratados e Convenções. 5ª edição. Editora Renovar. p. 32. Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas. 1961. Preâmbulo.

[12] SICARI, Vincezo Rocco. O Direito das relações diplomáticas. Editora del Rey, 2000. p.106.

[13] MELLO, Celso D. de Albuquerque. Tratados e Convenções. 5ª edição. Editora Renovar. p. 32. Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas. 1961. artigo 31.

[14] MELLO, Celso D. de Albuquerque. Tratados e Convenções. 5ª edição. Editora Renovar. p. 32. Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas. artigo 31, §4.º.

[15] LAMBERT. Jean Marie. Curso de Direito Internacional Público. Parte Geral. Volume II.  Editora Kelps, 2001. p. 288

[16] REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público. Editora Saraiva, 2006. p.  172.

[17] SICARI, Vincezo Rocco. O Direito das relações diplomáticas. Editora del Rey, 2007. p.153.

[18] BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Proceso Penal. Editora Saraiva, 2008. p. 412.

[19] MELLO, Celso D. de Albuquerque. Tratados e Convenções. 5ª edição. Editora Renovar. p. 32. Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas. Artigo 31.

[20] LAMBERT. Jean Marie. Curso de Direito Internacional Público. Parte Geral. Volume II. Editora Kelps, 2001. p. 288.

[21] SICARI, Vincezo Rocco. O Direito das relações diplomáticas. Editora Del Rey, 2007. p. 157.

[22] LIMA, Sérgio Eduardo Moreira. Imunidade diplomática Instrumento de Política Externa.  Editora Lumen Juris, 2004. p. 48.

[23] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume VII, Direito das Sucessões. Editora Saraiva, 2009. p. 31.

[24] SICARI, Vincezo Rocco. O Direito das relações diplomáticas. Editora Del Rey, 2007. p. 158.

[25] MELLO, Celso D. de Albuquerque. Tratados e Convenções. 5ª edição. Editora Renovar. p. 32. Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas. 1961. artigo 42.

[26] SICARI, Vincezo Rocco. O Direito das relações diplomáticas. Editora Del Rey, 2007. p. 158.

[27] MELLO, Celso D. de Albuquerque. Tratados e Convenções. 5ª edição. Editora Renovar. p. 32. Convenção de Viena sobre Relaçções Diplomáticas. 1961. Artigo 32.

[28] Advogado. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás.

Como citar e referenciar este artigo:
RIBEIRO, Felipe Neves Caetano. Imunidades diplomáticas: breve estudo acerca de seus fundamentos e aplicabilidade. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/imunidades-diplomaticas-breve-estudo-acerca-de-seus-fundamentos-e-aplicabilidade/ Acesso em: 19 abr. 2024