Direito Constitucional

Educação Domiciliar: O Direito de Escolha

 

RESUMO:

 

O ensino domiciliar como direito da família é mote que este artigo se propõe a defender. Pretende discutir a legislação referente ao homeschooling, demonstrando que não há incompatibilidade com valores e com os princípios constitucionais. O objetivo não é tecer críticas a escola, tampouco escalonar um grau de adequação pedagógica entre ambas as modalidades de ensino, mas evidenciar a viabilidade do ensino domiciliar, sobretudo e principalmente, em vista de atuais práticas como bullying: a realidade da educação brasileira.  

 

 

 

No Brasil, o ensino domiciliar, conhecido internacionalmente como o chamado “homeschooling”, é proibido por lei.  Nos termos do art. 55 do Estatuto da Criança e Adolescente, os pais ou responsáveis têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino. Da mesma maneira, o art. 6º da Lei nº 11.114/05[1], diz que é dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula dos menores, a partir dos seis anos de idade, no ensino fundamental. Os pais que não cumprem tal determinação estão sujeitos à aplicação do art. 246 do Código Penal, referente ao “abandono intelectual”, que diz: deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar, cominando pena de detenção ou multa e até a perda do pátrio poder.

 

Inobstante a atual proibição vigente, o ensino domiciliar já foi reconhecido legalmente no Brasil., como se pode observar no texto da Constituição de 1946:

 

 

Art. 166. A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola. Deve inspirar-se nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana. (grifo nosso)

 

 

Ainda neste sentido, a Lei de Diretrizes e Bases de 1961 previa em seu art. 30 tanto a educação institucional quanto a domiciliar:

 

 

Art. 30. Não poderá exercer função pública, nem ocupar emprego em sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público o pai de família ou responsável por criança em idade escolar sem fazer prova de matrícula desta, em estabelecimento de ensino, ou de que lhe está sendo ministrada educação no lar (BRASIL, Lei n. 4024/61, 1961) (Grifo nosso).

 

Ao analisar tanto as Constituições quanto as LDB’s antigas, pode-se verificar que a educação domiciliar já foi modalidade de ensino reconhecida legalmente no país, sendo, no entanto, gradualmente suprimida através da história, até ser totalmente descartada pela Constituição de 1988.

 

Apesar da vedação legal, a educação domiciliar nunca deixou de ser objeto de interesse de pais, educadores e juristas, sendo objeto de vários projetos de Lei[2].  Algumas famílias tem ido ao Judiciário buscando o reconhecimento do direito de educar seus filhos em casa – uma família no Paraná está educando os filhos com o aval da Justiça enquanto outra em Minas Gerais está sendo punida por abandono intelectual – a divergência nas decisões judiciais em casos análogos traz consequências sérias inclusive o descrédito do Judiciário.

 

 Um artigo recentemente publicado[3] e os recentes projetos de lei apresentados nº 3.518/2008 (pelos Deputados Henrique Afonso PT/AC e Miguel Martini – PHS/MG) e nº 4.122/2008 (Deputado Walter Brito Neto), fizeram com que uma discussão um tanto latente nas academias viesse vulcanicamente à tona. Alexandre Barros[4] (20010) discutiu, em vista da precariedade do sistema educacional brasileiro, o direito à educação familiar, isto é, que a família possa cumprir as funções que atualmente são ou deveriam ser desempenhadas pela escola. Segundo ele, todos os dias algum órgão de imprensa brasileiro critica a educação no Brasil. As mazelas vão da falta de professores ou condições físicas, ao despreparo dos professores, passando por currículos antiquados produzidos por “educocratas” governamentais. Além da violência canalizada para o interior das escolas, bullying[5] e da precariedade no ensino. Estes são alguns dos motivos apresentados pela Aliança Nacional de Proteção à Liberdade de Instruir e Aprender (Anplia), que estima que existam ao menos cem famílias brasileiras que vivem na “clandestinidade”, porque decidiram tirar os filhos da escola e educá-los em casa[6].

 

O Projeto de Lei, de autoria dos Deputados Henrique Afonso e Miguel Martini, que dispõe sobre o ensino domiciliar, propõe alterar dispositivo da Lei nº 9.394/96 – a LDB, de modo a admitir e reconhecer tal modalidade de educação no nível básico, “desde que ministrada no lar por membros da própria família ou guardiães legais”. Preconizam os autores que os pais ou responsáveis por crianças ou adolescentes em regime de educação domiciliar deverão se valer de uma escola regular “como base anual para avaliação do progresso educacional” do educando, conforme a legislação pertinente e responsabilizar-se-ão perante a escola pelo rendimento do aluno nas avaliações. Caso as notas dos testes básicos de leitura, escrita e matemática da criança ou do adolescente não alcancem o mínimo do rendimento escolar nacional, a licença concedida para a educação em casa será transformada em temporária no final do ano, concedendo-se aos pais ou guardiães mais um ano escolar a título de recuperação. Se não surtir efeito, a licença para educar em casa será cancelada e a criança deverá freqüentar a escola regular no seguinte ano escolar.

 

Os autores do projeto argumentam que a Constituição Federal determina, em seu artigo 205, que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família, devendo ser incentivada a colaboração da sociedade para que os objetivos de pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho sejam cumpridos. Ora, se a própria Constituição atribui o dever a família de educar, porque não dar o direito da família educar?  A educação é um direito básico do cidadão e atribuí-la exclusivamente ao sistema escolar configura abuso de poder, ingerência indevida da autoridade na vida privada, desrespeito pela liberdade de ensinar e aprender.  A educação dos filhos é direito inalienável dos pais e cabe a eles a escolha de como e onde querem fazê-lo.

 

O projeto cita ainda o art. 209, que estabelece ser o ensino livre à iniciativa privada, desde que cumpridas às normas gerais da educação nacional e sob condições de autorização e avaliação da qualidade pelo poder público, o que para os autores parece premissa que conduz à conclusão de que “o ensino não deverá ser considerado monopólio da instituição escolar.”[7]

 

O projeto 4.122/2008, do Deputado Walter Brito Neto, argumenta que o chamado ensino domiciliar é adotado em vários países como Canadá, Inglaterra, México, Alemanha, Espanha, França e alguns estados dos Estados Unidos da América. Nos EUA, a adesão ao homeschooling (ensino domiciliar) hoje reúne mais de um milhão de adeptos. A Unesco contabiliza que, ao todo, existiriam no mundo dois milhões de crianças que seguem esse sistema de ensino. A educação brasileira está em um padrão de qualidade que possa ignorar exemplos bem sucedidos? Não, recentemente relatório da UNESCO reconheceu que qualidade da educação no Brasil é baixa e que os índices de repetência e abandono da escola no País são os mais elevados da América Latin[8]. Segundo a UNESCO, percebem-se na Educação do Brasil insuficientes os padrões referentes à oferta educacional de qualidade, financiamento e gestão educacional dos sistemas e das escolas, currículos e propostas pedagógicas e a valorização, formação e condições de trabalho dos profissionais da educação.

 

Lucy Vereza, ex-secretária de Educação do Rio de Janeiro, entrevistada, disse ser impossível atrair a atenção de crianças que viam os melhores programas e desenhos animados na TV, produzidos por empresas riquíssimas e diretores milionariamente pagos, mandando-as para escolas sem graça, em que professoras mal pagas e pior treinadas ensinavam coisas do tipo “Ivo vê a uva.”

 

Um exemplo citado por Alexandre Barros (2010) é o de Kleber e Bernadete, pais de Jonatan e Davi, residentes em Timóteo, Minas Gerais. Se pouco ou nada podiam fazer para melhorar a escola que o estado (ou seus licenciados) ofereciam, resolveram educar seus filhos em casa. Os pais não abandonaram a educação de seus filhos, apenas acreditam que são capazes de cumprir essa tarefa melhor do que o estado (coisa que mais de um milhão de famílias americanas fazem legalmente nos Estados Unidos).

 

                Segundo o artigo, apesar de Jonatan e Davi terem sido aprovados nos exames que avaliam alunos comuns, que estudam no sistema educacional regular, seus pais foram processados – civilmente, onde correm o risco de perder a guarda dos filhos e penalmente pelo crime de abandono intelectual[9] – o que nos mostra a injustiça desta lei, que professor teria mais amor que um próprio pai ou uma mãe? Quem melhor para corrigir e ensinar um aluno do que aqueles que têm maior interesse no futuro da criança? Em momento algum houve abandono, negligência dos pais para com a educação de Jonatan e Davi, pelo contrário; a matrícula na instituição escolar não configura perfeita sinonímia com educar, talvez seja este o engano da lei brasileira. No tipo penal, em sua essência, quis o legislador recriminar a negligência dos responsáveis quanto ao estudo dos representados, “o deixar sem educar”, como diz a própria nomenclatura “abandono intelectual”, casos em que há uma conduta omissiva própria e uma omissão, ainda sim desmotivada[10].

 

 

Obrigam todos os pais do Brasil a matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino (art. 55), por pior que ela seja. A multa é irrisória (R$ 78,00), mas o princípio é fundamental. Puniram a família por exercer o direito inalienável de educar seus filhos como e onde quisessem. (BARROS, 2010)

 


                O que se põe em xeque não é tão-somente a qualidade do ensino[11] – até porque o objetivo não é esse, mas demonstrar a viabilidade do ensino domiciliar diante da situação da educação brasileira e desconstruir o fracassado argumento de que a necessidade da escola se justifica pelo ambiente socializador[12].

 

De fato, é intangível que as instituições cumprem um papel fundamental na socialização do indivíduo – durkheimianamente falando – porém a escola brasileira tem, ao longo de décadas, se degradado de maneira tal, que o ambiente transmite valores incompatíveis com os adotados pela família, com a LDB, com o ECA e com a própria Constituição.  O artigo 3º, inc IV da Lei 9.394/96, por exemplo, diz que a educação cultuará o respeito à liberdade e apreço à tolerância, mas isso se torna impossível numa escola em que a prática do bullying é frequente. O inc. II, do mesmo artigo diz a educação deve seguir o principio da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber, o que também pode ser contestado se a escola brasileira age em consonância e questionado se dar o direito à educação domiciliar não estaria muito mais adequado à liberdade de aprender e de ensinar.

 

Socialização não é prerrogativa exclusiva da escola e nem seu objetivo principal.  As recentes experiências com a prática de Bullying e com os obstáculos na inclusão dos portadores de deficiência demonstram que a escola também promove exclusão.

 

O Massachussets Institute of Technolgy e muitas outras universidades disponibilizam o conteúdo de seus cursos gratuitamente na Internet. Neste sistema, frequentar o MIT pode ter uma função socializatória, possibilitar o desenvolvimento de laços de amizade que ajudem a conseguir bons empregos e dar aos alunos uma credencial formal, um diploma. Em matéria de aprendizado, entretanto, ninguém que frequentou uma destas universidades sabe, necessariamente, mais do que alguém que estudou em casa seguindo seu currículo.

 

No projeto PL-3518/2008, destaca-se as qualidades do ensino domiciliar, mostrando que permite adequar o processo ensino-aprendizagem às necessidades de cada criança e enseja intensa convivência e educação ou aprendizado mútuo para a família, além de favorecer o desenvolvimento da autodisciplina e do aprender a aprender, “qualidades avidamente buscadas nos profissionais de hoje”.

 

Existe também uma Proposta de Emenda à Constituição – PEC, feita em 2009 por Wilson Picler, em que acrescenta o § 4º ao art. 208 da Constituição Federal. Nos seguintes termos:

 

 

§ 4º – O Poder Público regulamentará a educação domiciliar, assegurado o direito à aprendizagem das crianças e jovens na faixa etária da escolaridade obrigatória por meio de avaliações periódicas sob responsabilidade da autoridade educacional. (NR)

 

 

No atual modelo educacional brasileiro não existe liberdade de aprender, ensinar, e ou pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber, como deveria ocorrer conforme o art. 3º, inc. II da lei que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. O sistema nega a si próprio, não é o que estabelece, mas apenas o que deveria ser. Bem como não se permite o que permite o inc. III, do mesmo artigo, o pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, ora, pois, aqueles que divergem da concepção pedagógica da escola, nada podem além de mudar seus filhos para outra escola, nunca ensinar conforme sua própria e a que entende ser a melhor para os representados.

 

Práticas similares vêm sendo desenvolvidas em diversos países, com êxito maior ou menor, devido ao grau de expectativa criado para cada modelo. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde há cinco anos 12 % da população era a favor da educação domiciliar, a mesma pesquisa realizada recentemente revelou que hoje 47% das famílias são favoráveis ao sistema de ensino domiciliar. A sua aplicação tem apresentado resultados favoráveis também na Alemanha, na Inglaterra, Espanha e na França. Ignorar, portanto, a experiência, seja por preconceito ou em decorrência de algum dispositivo legal específico, é manter-se fora do universo das novas tecnologias e da nova pedagogia.

 

                O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 53 diz que a criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho. Qual a incompatibilidade com a educação domiciliar?

 

Existem inúmeros motivos e circunstâncias que podem levar uma família a optar pela educação domiciliar – violência, o uso de drogas, uma orientação pedagógica nem sempre condizente com as convicções filosóficas, éticas e religiosas de determinadas famílias, acessibilidade, bullying, uma enfermidade como uma alergia alimentar grave, etc. – A educação dos filhos além de obrigação é direito inalienável dos pais que, da mesma forma que tem o livre arbítrio para iniciar sua prole na sua religião, deve ter o direito de optar entre o ensino institucional e o ensino domiciliar.

 

John Stuart Mill[13], em seu On Liberty, faz uma bela defesa da excentricidade. Ele chama a atenção para o fato de que o progresso, as invenções e o desenvolvimento são produto direto da excentricidade. Se não houvesse excêntricos que resolvessem colocar um motor numa carruagem ou domar a eletricidade e descobrir como utilizá-la para o nosso bem, continuaríamos andando a pé e iluminando nossas casas com candeeiros. Não existiriam arranha céus, porque sem eletricidade, não haveria elevadores. O que Leonardo da Vinci, Albert Einsten, George Washington, C. S. Lewis, Graham Bell, Jonathan Edwards, Thomas Edson, entre outros, tinham em comum? Nenhum deles freqüentou a escola tradicional. Todos foram educados em casa. E todos se tornaram grandes expoentes na sociedade. A escola é um dos meios de se educar e ensinar, mas não é o único.

 

 

 

* Consuelo de Freitas Machado Martin, Graduação em direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ (1997), mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (2002), aperfeiçoamento pela Fundação Escola Superior de Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (1998). Professora Universitária e Advogada.



[1] Lei que reformou o mesmo artigo da LDB, reduzindo a idade de sete para seis anos.

[2] Projeto de Lei n° 4657/94 de autoria do Deputado João Teixeira. Projeto de Lei n° 6001/01, de autoria do Deputado Ricardo Izar. Projeto de Lei n° 6484/02 , de autoria do Deputado Osório Adriano

[3] BARROS, “Alexandre. Deixem Jonatan e Davi estudar em paz”. Publicado originalmente no site Ordem Livre  www.ordemlivre.org. 2010

[4] Cientista político (PhD, University of Chicago) e diretor-gerente da Early Warning: Políticas Públicas e Risco Político (Brasília – DF), além de colaborador regular do Estado de São Paulo.

[5] Caracterizado por agressão física ou qualquer outra forma de  agressão, mesmo verbal e emocional repetidas, e que tenham uma desigualdade na relação entre agressor e vitima, podendo deixar marcas para toda a vida.

[6] Ana Ligia Noale. ENSINO: educação domiciliar gera divergências entre famílias, professores

 e a Justiça brasileira

 

[7] Comissão de Educação e Cultura  (CEC) –  Parecer da Relatora, Dep. Bel Mesquita (PMDB-PA), pela rejeição deste, e do PL 4122/2008

[9] No primeiro, já houve uma condenação quando o casal foi obrigado a rematricular os filhos na escola e a pagar multa de 12 salários mínimos. Mas não desistiram e recorreram da sentença. Em 2008, os meninos foram aprovados no vestibular de Direito de uma faculdade particular em Ipatinga e o resultado desse exame serve agora como defesa nos processos judiciais contra seus pais. E foi no processo criminal que a Justiça determinou que os meninos sejam avaliados por provas aplicadas pela Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais, o que foi comemorado pelo casal como uma vitória. Segundo eles, pela primeira vez, a Justiça admitiu a possibilidade de se provar que não há abandono intelectual no ensino domiciliar

[10] A expressão: sem justa causa, pois se os pais não matricularam o filho ou de outra forma não provê sua instrução escolar por falta de estabelecimento de ensino no local onde moram, ou por impossibilidade de deslocamento para outro local onde possam estudar, ou ainda não tenham condições financeiras suficientes para manter os filhos na escola, o delito não estará configurado

[11] O que contrária o inc. IX do art. 3, Lei nº 9.394/96: garantia de padrão de qualidade do ensino.

[12] São as opiniões, por exemplo, de Guiomar Namo de Mello, Nelio Bizzo e Carlos Roberto Jamil Cury.

[13] Apud Alexandre Barros. Op. Cit.2010

Como citar e referenciar este artigo:
MARTIN, Consuelo de Freitas Machado. Educação Domiciliar: O Direito de Escolha. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/educacao-domiciliar-o-direito-de-escolha/ Acesso em: 18 abr. 2024