Direito Constitucional

Delfim Netto e a Constituição de 1988

 

 

Várias vezes ministro durante os governos de exceção e posteriormente articulista de vários jornais, o economista Delfim Netto têm mudado frequentemente de posição, mas em seu artigo “Ilusão dos Direitos” (Folha de São Paulo, 28/7/2010) disse coisas para liberal nenhum botar defeito. Se não, vejamos:

 

Referindo-se à Constituição de 1988, Delfim retoma em linhas gerais, as mesmas críticas já feitas pelo jurista Ney Prado em Razões das Virtudes e Vícios da Constituição de 1988 (São Paulo. Inconfidentes. 1994) por Roberto Campos em Lanterna na Popa. (Rio de Janeiro. Topbooks. 1994) e outros autores liberais.

 

Delfim começa dizendo que, apesar das excelentes intenções de fazer uma Constituição democrática assegurando diversos direitos individuais a todos os cidadãos brasileiros, os membros da Assembléia Constituinte encararam, sem os devidos cuidados, um tópico em que a legislação remete inevitavelmente a uma indissolúvel relação entre direito e economia.

 

A todo direito tem que corresponde um dever, assim como toda intitulação requer provisões à altura. A Constituição de 1988 foi demasiadamente generosa na promulgação de direitos individuais sem levar em séria consideração os deveres assumidos pelo Estado, como se o Brasil fosse um país tão próspero quanto o Japão e a Alemanha.

 

Delfim observa que “durante anos, os ônibus em São Paulo traziam impresso em letras garrafais o slogan: transporte, direito do povo e dever do Estado. Direito que o “povo” nunca viu e o Estado nunca cumpriu…” De fato, observamos nós: além da grande precariedade de nosso sistema de transporte, seu custo é excessivamente alto, principalmente para as pessoas de baixa renda.

 

Delfim afirma que ninguém pode ser contra a educação, a saúde e a aposentadoria como “direito de todos e dever do Estado” (desde que não constituam monopólios estatais, façamos nós a oportuna ressalva).

 

“Mas ninguém pode supor, por outro lado, que esse conjunto de “direitos” está assegurado apenas porque se afirma que eles são um “dever do Estado”. E logo em seguida, Delfim apresenta sua justificativa para a impossibilidade de assegurá-los levando tão-somente em consideração a vontade do legislador.

 

“Para atendê-los são necessários recursos físicos (não a sua expressão monetária). Ora, o Estado não produz qualquer recurso”. De fato, o Estado não é produtor de recursos econômicos, mas sim repassador dos mesmos.

 

E este é o ponto para o qual chamou nossa atenção o saudoso Roberto Campos numa brilhante conferência quando da sua posse como reitor de uma universidade do Rio de Janeiro: os constituintes de 1988 foram demasiadamente pródigos em promulgar intitulamentos, sem se indagar de onde viriam as necessárias provisões.

 

Mas Delfim continua mostrando quais as alternativas reais para o Estado satisfazer as obrigações contraídas por ele mesmo: “para atender às suas tarefas, ele tem de extraí-los como tributos de todos os cidadãos. Aliás, para distribuir 100, ele precisa extrair 110, porque consome 10 na sua própria subsistência”. Mas se o Estado não dispuser de recursos?

 

Neste caso, tendo que satisfazer suas obrigações, ele aumentará sua dívida (externa e interna) e “começa a cavar um fosso que elevará a taxa de juros e tornará ainda maior no futuro a falta de recursos, pela redução do crescimento do PIB”. E coisa ainda pior: “se, por outro lado, a política monetária for laxista, aumentará a taxa de inflação (um péssimo imposto) para extrair do setor privado o que ele irá receber como “direito”.” Lamentavelmente, por um princípio físico (que não responde a “vontade política”), é do couro que sai a correia…”

 

Para Delfim, o sistema tributário emergente da Constituição de 1988 tornou-se uma agravante por ignorar o federalismo proposto por ela própria e ser tão injusto quanto ineficiente.

 

“Talvez sua maior perversidade não esteja no  peso exagerado da carga tributária em relação ao PIB (certamente a maior do mundo para nosso nível de renda per capita), mas na sua alta regressividade: quem ganha menos paga proporcionalmente mais”.

 

Porém, o efeito inverso, produzido na população em geral, é que imposto é problema de rico. Pobre não paga imposto. Na realidade, rico paga menos, mas vê quanto paga; pobre paga mais, porém não vê. Por exemplo: impostos embutidos no preço de caixa das mercadorias num supermercado em que em 1kg de arroz 25% do preço é imposto.

 

A conclusão de Delfim é corretíssima: “Em princípio, portanto, os “direitos” são pagos em boa parte por aqueles que potencialmente os exerceriam, mas que os recebem como serviços da pior qualidade, prestados por um Estado ineficiente”. E é por esta razão que costumamos chamar o Brasil de Alemívia: impostos da Alemanha, serviços da Bolívia.

 

Neste sentido, uma medida altamente salutar, para fomentar a consciência tributária dos eleitores brasileiros, foi a colocação do Impostômetro no centro de São Paulo, coisa que deveria ser imitada por todas as grandes cidades. Outra medida igualmente salutar, com o mesmo propósito da primeira, é o projeto de Guilherme Afif Domingos de que impostos sobre mercadorias do comércio varejista sejam separados do seu preço quando da aquisição das mesmas.

 

Nos Estados Unidos, há muito que isto é feito, de tal modo que o consumidor pode indagar ao caixa quanto pagará de imposto, antes mesmo de se decidir se efetuará a compra. Fosse isso feito no Brasil, o consumidor talvez deixasse de se queixar contra a suposta “ganância” do comerciante e passasse a se dar conta da efetiva ganância do Estado voraz, devorador de impostos.

 

 

* Mário Antônio de Lacerda Guerreiro, Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Autor de Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000) . Liberdade ou Igualdade? ( EDIPUCRS, Porto Alegre, 2002). Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói, 1985); Paradigmas Filosóficos da Atualidade (Papirus, Campinas, 1989); O Século XX: O Nascimento da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber, Verdade e Impasse (Nau, Rio de Janeiro, 1995; A Filosofia Analítica no Brasil (Papirus, 1995); Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já apresentou 71 comunicações em encontros acadêmicos e publicou 46 artigos. Atualmente tem escrito regularmente artigos para www.parlata.com.br,www.rplib.com.br , www.avozdocidadao.com.br e para www.cieep.org.br , do qual é membro do conselho editorial.

 

Como citar e referenciar este artigo:
GUERREIRO, Mário Antônio de Lacerda. Delfim Netto e a Constituição de 1988. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2010. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/delfim-netto-e-a-constituicao-de-1988/ Acesso em: 28 mar. 2024