Direito Constitucional

Contratação de Deficientes pelo Setor da Construção Civil – Limites às Ações Afirmativas do Estado

Contratação de Deficientes pelo Setor da Construção Civil – Limites às Ações Afirmativas do Estado

 

 

Carlos Eduardo Moreira Valetim*

 

 

A título de breve intróito, cumpre afirmar que as despretensiosas reflexões que se pretende trazer são originárias de notabilíssima decisão exarada, em setembro passado, pela 2ª Turma do Egrégio Tribunal Superior do Trabalho[*], que entendeu, em apertada síntese, que inexistiu afronta ao artigo 93 da Lei 8.213/91, por parte de determinada empresa cujo quadro de funcionários contempla percentual inferior de beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiencia ao estabelecido pela referida norma.

 

Em tempo, tal dispositivo prescreve a observância, por parte das empresas com mais de 100 funcionários, do preenchimento de seus cargos – em percentuais que variam de 2 a 5%, de acordo com o número de funcionários da empresa – com “beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas”.

 

Por derradeiro, neste intróito, aproveitar-se-á o ensejo da novel decisão aventada para focar o artigo em setor da iniciativa privada que vem se vendo às avessas com essas questões legais, qual seja, a Indústria da Construção Civil, seja por também contar com jurisprudência nesse sentido[†], seja por restar nossa militância na advocacia bastante afeta a esse setor.

 

Feitos esses registros iniciais sobre o ensejo do presente artigo, a decisão acima mencionada é rica de significado, notadamente no que guarda relação com as chamadas ações afirmativas, em busca da tão preciosa eficácia do princípio da igualdade, e que ganha ainda maior relevância por estar-se no período das comemorações das duas décadas da “Constituição Cidadã”, promulgada aos 5 de outubro de 1.988.

 

Ao se tratar do tema relativo ao trato das minorias, seja em sede jurídica, seja na social, é necessário ao intérprete bastante sensibilidade, considerando-se o notório descaso para com elas, cujas raízes históricas custam a se enfraquecer para que, em fulgurante sociedade vindoura, possam ser arrancadas e relegadas a objeto de estudo de um passado primitivo.

 

Por óbvio que a sociedade experimentou avanços no sentido de se buscar a igualdade, sendo que a ordem jurídica, na medida do possível – e, quase sempre, a menor que o desejável – a acompanhou. Nessa esteira, as linhas imediatamente seguintes objetivarão traçar um breve panorama histórico do perfil constitucional da igualdade jurídica, fundamental para as conclusões às quais se pretende atingir neste artigo, posto guardar indissociável relação com as chamadas ações afirmativas do Estado. Pois bem.

 

Num panorama global, as ações afirmativas ganharam corpo a partir da segunda metade do século passado, após a segunda grande guerra, gerando esta um número absoluto e relativo mais elevado de inválidos de guerra e as conseqüentes sobrelevação da questão e resposta por parte da sociedade civil organizada.

 

Outrossim após esse período houve, especialmente nos EUA, o incremento das manifestações sociais, em busca da defesa dos direitos sociais, sendo de comum conhecimento as manifestações em defesa dos negros, das mulheres e etc.., bem como a adoção pelo poder público, decisivamente impulsionado pela Suprema Corte Norte Americana, das affirmative actions (ações afirmativas), buscando conferir maior efetividade ao princípio da igualdade.

 

Assim sendo, avultou-se, no mundo democrático pós-guerra, o chamado “realismo legal”, que pretendia, pela via judicial, a adequação das normas vigentes à realidade social e econômica de determinada sociedade, e não mais o culto à formalidade das normas equalizadoras – buscava-se, efetivamente, a consecução material do bem jurídico a ser defendido, no caso, os direitos das minorias.[‡]

 

Vale aqui ressaltar o papel do Poder Judiciário como protagonista das transformações sociais, em face precipuamente da negligência dos outros poderes, notadamente o Legislativo, na resposta aos anseios da sociedade por uma igualdade mais concreta.

 

Para não se cometer impropriedades, é de se infirmar que, por muitas vezes, a aplicação material do princípio da igualdade somente é possível mediante a detida análise da situação fática posta à prova, daí o ensejo das intervenções do Poder Judiciário. O professor Luiz Alberto David Araújo, citando o saudoso Celso Ribeiro Bastos, alerta para essa dificuldade:

 

É o princípio da igualdade um dos mais difíceis tratamentos jurídicos. Isto em razão do entrelaçamento existente no seu bojo de ingredientes de direito e elementos metajurídicos. A igualdade substancial postula o tratamento uniforme de todos os homens. Não se trata, como se vê, de um tratamento igual perante o direito, mas de uma igualdade real e efetiva perante os bens da vida.[§]

 

Contudo, como bem adverte Cármen Lúcia Antunes Rocha[**], para a escorreita consecução desta face do princípio da igualdade, imprescindível que as ações afirmativas não venham a discriminar, a marginalizar, as “maiorias”, em detrimento de suas liberdades individuais para empreender num ambiente mais permeável à competição quanto possível.

 

Evento jurídico relevante nesse sentido, e datado daquele período histórico, foi a assinatura da “Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial”, ratificada pelo Brasil, que expressamente excluiu do campo da discriminação medidas aptas a assegurar o progresso de indivíduos que necessitem de proteção. Nesse sentido, eis o teor do artigo 1º, ‘inciso’ 4º, do referido documento:

 

4. Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou  exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos.

 

Note-se, aqui, que a desigualação preconizada pelo dispositivo legal encontra, também, limites, na medida em que veda o prosseguimento das referidas medidas especiais, após se atingir os objetivos do discrímen, logo, a justa eficácia do princípio da igualdade, mediante as ações afirmativas.

 

Trazendo-se o contexto agora para o Brasil, o estudo das constituições pátrias nos leva a constatar que a igualdade foi principalmente tratada em seu sentido formal, ou seja, tratava-se de um conceito jurídico passivo, preclarando uma igualdade generalizada, logo, uma série de condutas vedadas (obrigações negativas), sem a necessária colmatação das lacunas entre direito e fato, mediante a prescrição de condutas promotoras do cânone do princípio da igualdade.

 

A partir da constituição de 1.967, conforme nos ensina Luiz Alberto David Araújo[††], houve notáveis adições no tocante às minorias, especialmente quanto à educação de excepcionais e, destaca aquele professor, a promulgação da ementa constitucional n. 12, cujo artigo único trata do asseguramento da melhoria das condições social e econômica[‡‡]daquele grupo de indivíduos.

Diante desse quadro, a Constituição atual promoveu notável avanço na promoção da igualdade, e não mais na vedação de condutas discriminatórias. Muito embora a evocação da igualdade se encontre dispersa pela Lei Maior, ela é assegurada de forma mais genérica no caput do art. 5º da CF, e pontualmente onde o constituinte entendeu ser importante sua reafirmação[§§].

 

Na seara com a qual ora lidamos, é novamente salutar o lúcido entendimento da ilustre Ministra do STF, Cármen Lúcia[***], pois aqui se concorda com a jurista que os objetivos da República são delineados, no art. 3º da Constituição, mediante verbos de ação: construir uma sociedade livre; garantir o desenvolvimento nacional; reduzir as desigualdades, etc..

 

Nessa narrativa também vale destacar que a proteção constitucional, fundada no princípio da igualdade, irradia seus efeitos tanto a pessoas físicas quanto jurídicas, sendo que a reprise de seu significado se verifica em diversos diplomas infraconstitucionais, como a Lei 8.666/93 (denominada Lei de Licitações e Contratos Administrativos) e a própria lei 8.213/91, que cuida dos Planos de Benefícios da Previdência Social.

 

A título ilustrativo, com relação à lei de licitações, a proteção constitucional aos “desiguais” é clara em diversas passagens, sendo de se destacar seu art. 3º, parágrafo 2º e incisos, que cuidam de favorecer as empresas nacionais em contendas licitatórias; bem como o disposto no art. 24, que dispensa a licitação para a contratação de associação de portadores de deficiência física.

 

Já com relação à segunda Lei apontada, é na análise de pequena (mas relevante!) secção desta que reside o cerne da discussão aqui aventada e, aproveitando-se todo o exposto nas linhas anteriores acerca do perfil constitucional das ações afirmativas, podemos em seguida transitar com maior conforto no que diz respeito ao caso concreto, ou seja, nossas ponderações acerca do teor do art. 93 da Lei n. 8.213/91.

 

Da análise do caso julgado pelo TST e de outros casos concretos, temos a bastante plausível hipótese de que algumas empresas, dependendo de diversos fatores, simplesmente não logram implementar as cotas de deficientes em seus cargos existentes e, a nosso ver, as circunstâncias de tal constatação merecem diligente análise fático-jurídica, de sorte a não se perpetrarem injustiças, separando dos rigores da lei empresas que realmente se negam a cumprir o comando legal, daquelas que se esforçam para tanto, sendo, no mais das vezes, vítimas das circunstâncias.

 

No caso da decisão no exórdio indicada, a leitura do acórdão do C. TST aponta mormente para uma falha do Ministério Público, ao aferir se as vagas da empresa poderiam ser preenchidas por deficientes físicos, ou se a empresa estava a se negar a fazê-lo. Inclusive, no corpo do v. acórdão, há menção expressa a “perseguição empresarial a observar o comando legal”, por parte do Ministério Público.

 

Pesa contra a possibilidade material de cumprimento do arcabouço normativo em questão a falta de iniciativa, por parte do Poder Público, de capacitação de profissionais para ocupar tais vagas, havendo, inclusive, notícias de empresas que contratam deficientes físicos apenas para preencher a cota legal, atemorizadas diante da fiscalização e das pesadas multas pelo “descumprimento” da norma[†††].

 

Importa neste momento anotar que, não obstante as dificuldades enfrentadas pelos entes privado se verificarem em diversos outros setores da economia como, por exemplo, telecomunicações (que é o caso julgado pelo TST) e transporte aéreo[‡‡‡], nas linhas seguintes as figuras ilustrativas se focarão no setor que este artigo se propôs a destacar no seu exórdio: o da construção civil.

 

Feita essa ressalva, a primeira consideração que pode ser tecida com relação aos destinatários do cumprimento da norma includente é pura e simplesmente a relativa a seu ramo de atividade. Com efeito, é certo que, no setor de construção pesada, a maioria esmagadora de seu contingente é formada por ajudantes, encarregados de obra, mestres-de-obra, vigias, enfim, profissionais alocados na obra e que podem compor mais de 90% dos cargos. Assim sendo, é imperativo a tais funcionários , numa primeira análise, gozar de todos os seus sentidos, dada, inclusive, a periculosidade da atividade que desempenham, conforme mesmo assentado nas normas trabalhistas e procedimentais em vigor[§§§].

 

Outro fator potencializador da aqui sustentada dificuldade material em se cumprir a cota de deficientes, no setor de construção civil, é por consubstanciarem suas atividades obras sazonais, ou seja, o pessoal alocado num determinado período em local específico, pode se ver desmobilizado para trabalhar noutra cidade, Estado, ou região do país, notadamente em empresas que contratam obras de grande vulto com o poder público

 

Nessa linha, parcela bastante significativa dos deficientes físicos necessita de cuidados especiais e proximidade da família para tanto, sendo que a supra aludida transferência pode lhes causar transtornos incompatíveis com sua manutenção na função em que está alocado, levando a empresa a, inevitavelmente, buscar outro profissional nestas condições, em local diverso e, por muitas vezes, ermo.

 

A somatória de tais fatores, não é preciso muito elucubrar, implica prejuízo total do efetivo desenvolvimento profissional dos indivíduos em questão, bem como das atividades das empresas o que, em última análise, impacta o progresso do país, objetivo mais que consabido desta República Federativa.

 

Outrossim, reconhece-se o esforço das Delegacias Regionais do Trabalho –DRT’s e do Ministério Público do Trabalho na conciliação da finalidade da lei com a realidade empresarial em questão, mediante, por exemplo[****], os inúmeros termos de ajuste de conduta firmados, contudo,  dadas a taxatividade da norma e a realidade do setor aqui esboçada, mesmo as metas estabelecidas em tais acordos restam de dificílimo cumprimento.

 

Advirta-se que o que aqui se pretende deixar bastante claro não é a pertinência da norma trabalhista em questão, mas sim alertar-se para a potencial debilidade de relação entre comando legal estabelecido e realidade fática, sendo que, nas palavras do inexcedível Celso Antônio Bandeira de Mello, há ofensa ao princípio da isonomia quando o “discrímen estabelecido conduz a efeitos contrapostos ou de qualquer modo dissonantes dos interesses prestigiados constitucionalmente” [††††].

Desta forma, patente e louvável a atuação do Poder Judiciário no sentido de se conferir, mediante a detida análise do caso concreto, a justa extensão do princípio da igualdade jurídica, concretizando, mesmo que em sede judicial difusa, a precisa limitação deste Direito, em face das já aludidas liberdades constitucionais das ‘maiorias’. Neste momento derradeiro, cumpre transcrever as sábias palavras da lavra do ilustre Marco Aurélio de Farias Mello Ministro do STF, sobre esse papel do Poder Judiciário:

 

Qual deve ser a postura do Estado juiz diante de um conflito de interesses? Há de ser única: não deve potencializar a dogmática para, posteriormente, à mercê dessa dogmática enquadrar o caso concreto. Em face de um conflito de interesses, deve o juiz idealizar a solução mais justa, considerada a formação humanística que tenha e, após, buscar o indispensável apoio no direito posto. Ao fazê-lo, cumprirá, sempre, ter presente o mandamento constitucional de regência da matéria. Só teremos a supremacia da Carta quando, à luz dessa mesma Carta, implementarmos a igualdade.[‡‡‡‡]

 

Sendo estas as considerações entendidas como pertinentes, é nosso sincero desejo que elas incitem a reflexão e o debate sadios, de forma a se discutir a eficácia máxima do princípio jurídico da igualdade, possibilitando a proteção das minorias na medida em que tal nobre propósito não sacrifique, injusta e desmedidamente, a esfera de direitos alheia.

 

 

 

* Sócio e advogado da Dalpozzo Advogados no setor Consultivo e Contencioso Judicial e Administrativo nas Áreas do Direito Administrativo e Direito Urbanístico e Ambiental. Mestrando em Direito do Estado, com concentração em Direito Urbanístico e Ambiental pela PUC/SP.

 

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[*] RR – 746/2000-007-10-85. Publicação: DJ – 05/09/2008

[†] TRT, 3ª Região. Processo n. 00339/2007/008/03/00-5 – RO

[‡] In “Revista Trimestral de Direito Público”, n. 15, em artigo intitulado “Ações Afirmativas – O Conteúdo do Princípio Democrático da Igualdade Jurídica”p. 89.

[§] I In “A Proteção Constitucional das Pessoas Portadoras de Deficiência”, 3ª Ed., http://www.mj.gov.br/sedh/ct/corde/dpdh/corde/protecao_const1.asp

 

[**] Op. Cit. p88.

[‡‡] Artigo único – É assegurado aos deficientes a melhoria de sua condição social e econômica especialmente mediante:

        I – educação especial e gratuita;

        II – assistência, reabilitação e reiserção na vida econômica e social do país;

        III- proibição de discriminação, inclusve quanto à admissão ao trabalho ou ao serviço público e a salarios;

        IV – possibilidade de acesso a edifícios e logradouros públicos.

[§§] Dentre eles, pode-se destacar o preâmbulo da constituição, o art. 37, inciso XXI, que institui o dever de licita e o 170, tratante da ordem econômica. Quanto ao art. 5º, vocábulos com o radical “igual”se repetem quatro vezes em seu corpo, sendo que, só no caput, são duas vezes, cremos que para justamente reforçar o caráter condensador desse dispositivo.

[***] Idem

[‡‡‡] Vide em http://www.nppd.ms.gov.br/noticia.asp?not_id=55; e http://www.deficiente.com.br/home/51/

[§§§] Devido às condições especiais do setor, é ilustrativo mencionar a expedição, por parte do Ministério do Trabalho e Emprego, da Norma Regulamentadora n. 18 que, consoante exposição de seus objetivos, “estabelece diretrizes de ordem administrativa, de planejamento e de organização, que objetivam a implementação de medidas de controle e sistemas preventivos de segurança nos processos, nas condições e no meio ambiente de trabalho na Indústria da Construção”.

[****] Conforme, por exemplo, notícia veiculada em 18/09/2007 no site www.folhadaregiao.com.br

[††††] Bandeira de Mello, Celso Antônio. “O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”. 3ª Ed., Malheiros, p. 47 e 48.

[‡‡‡‡] In “Óptica Constitucional – A Igualdade e as Ações Afirmativas” – Revista Trimestral de Direito Público, n. 33, p. 11

Como citar e referenciar este artigo:
VALETIM, Carlos Eduardo Moreira. Contratação de Deficientes pelo Setor da Construção Civil – Limites às Ações Afirmativas do Estado. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/contratacao-de-deficientes-pelo-setor-da-construcao-civil-limites-as-acoes-afirmativas-do-estado/ Acesso em: 29 mar. 2024