Direito Civil

Impacto da pandemia nas locações brasileiras

Resumo: A suspensão de liminares nas ações de despejos e desocupação de imóveis tem acenado com possível caracterização de abuso de direito. O mais aconselhável é negociação para poder readequar o contrato ao contexto pandêmico.

Palavras-Chave: Contratos. Locação. Pandemia de Covid-19. Medidas emergências. Lei 14.010/2020.

Realmente, são incontáveis os impactos trazidos pela pandemia de Covid-19 em todas as relações jurídicas, assim vige o aceso debate sobre a necessidade de haver instrumento normativo hábil a atender às peculiaridades do momento pandêmico.

É fato que no período da calamidade pública, muitas pessoas físicas e jurídicas amargaram sensível redução de seus ganhos, o que gerou muita inadimplência, particularmente, nos contratos de locação seja em locação residencial ou não residencial.

Recentemente, o Ministro do STF, Luís Roberto Barroso determinou a suspensão por seis meses de ordens de despejo bem como de ações de desocupação de áreas que tenham sido ocupadas como moradia antes de 20 de março de 2020, data que marca o termo inicial do estado de calamidade pública decretado em face da presente pandemia.

O atendimento do Ministro Barroso significou um parcial provimento à uma ação promovida pelo PSOL e determinou que estão proibidas as medidas administrativas e judiciais que resultarem em despejos, desocupações, remoções forçadas, ou mesmo reintegrações de posse natureza coletiva, em que os imóveis sirvam de moradia ou signifiquem área produtiva de trabalho individual ou familiar das populações vulneráveis. Igualmente seguem suspensos os despejos, por decisão liminar, de locatários de imóveis residenciais de pessoas que se encontrem em condição de vulnerabilidade.

Ante a impossibilidade do despejo, há os que defendam o direito à moradia do inquilino, e de outro lado, os que defendem o direito de propriedade do locador e, ambos, gozam de direitos de proteção patrimonial constitucionalmente previstos, e todos relacionados ao princípio da preservação da dignidade humana.

Em face da Lei 14.010/2020 não há a possibilidade de suspensão de ordens de despejo durante a pandemia. Porém, o Congresso Nacional derrubou o veto presidencial para manter o artigo 9º do referido diploma legal. Assim, admite-se a suspensão que abara os imóveis residenciais e não residenciais e todas as ações ajuizadas a partir de 20 de março de 2020.

A complexidade do conflito, em verdade, não admite uma resposta generalista. Afinal, não é razoável nem proporcional haver resposta legislativa que prejudique demasiadamente o locador (credor) e, proteja excessivamente o locatário ou devedor.

Conclui, boa parte da doutrina que a dita suspensão de concessão de liminares para o despejo de inquilinos inadimplentes acena com potencial abuso de direito, e cria espaço para o oportunismo econômico. Particularmente, quando o locador, ora credor, utiliza-se dos valores dos alugueres para seu sustento e de sua família.

Ainda considerando a paralisação de alguns ramos do mercado brasileiro, deu-se contundente afetação da cadeia econômica e, diversos compromissos deixaram de ser arcados pelos contratantes.

No setor locatício, preocupa-se os empresários que local imóveis para o exercício de suas atividades profissionais, pois com a produção paralisada, ipso facto, não conseguiram arcar com aluguéis e demais encargos oriundos do contrato de locação.

E um dos argumentos suscitados com o fito de justificar um reajusto do valor locatício pactuado, é com base na teoria da onerosidade excessiva, que se dá pela absoluta ou considerável diminuição da renda do locatário, acarretando um desequilíbrio contratual severo, devendo haver uma readequação no valor dos alugueres praticados.

Outro fundamento é a excludente de responsabilidade do locatário em face dos prejuízos sofridos, resultantes de caso fortuito ou força maior, sendo que este, não concorreu com responsabilidade aos danos causados ao locador.

Diante do lockdown, por exemplo, quando o empresário na qualidade de locatário fora compelido a paralisar sua atividade empresarial por determinação do Estado, a locação comercial padece de desequilíbrio econômico e, pode-se promover a repactuação de uma prestação razoável, ou até mesmo, de seu cancelamento.

É o caso dos shoppings centers que amargaram fechamento temporário e obrigatório em diversos Estados do país. Tanto que se admitiu a suspensão temporária de pagamento de alugueres por certo período, até pelo menos, que a situação fosse finalmente normalizada.

Observa-se que a pretensão poderá se fulcrar no artigo 393 do Código Civil e, também no artigo 22 da Lei de Locações, ou seja, a Lei 8.245/1991 que prevê a obrigação do locador em garantir uso pacífico do imóvel. Enfim, tanto locatários como locadores teriam direito a mesma alegação, no caso de haver demanda judicial, reforçando que não é possível apontar culpados no momento de pandemia, sendo o mais indicado e aconselhável a busca de meios alternativos de resolução de conflitos através de acordo.

A instabilidade crescente no setor locatício reflete na previsão da Lei 14.010/2020 principalmente quando dispõe sobre o Regime Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado, no período da pandemia (Covid-19).

Em verdade, a questão ora em debate não é inédita em doutrina, tampouco na jurisprudência. Embora que a dificuldade econômica para cumprimento de obrigação pactuada, sozinha, não é, em princípio um fator juridicamente relevante que autorize o fim antecipado do contrato, sem o devido pagamento de penalidades previstas, ou ainda, que determine a modificação do modo ou preço do cumprimento obrigacional.

A dificuldade econômica pelo ordenamento jurídico pátrio é vista como risco que o devedor assume. Da mesma forma que o credor assume a perda do valor ou da utilidade da prestação no tramitar da execução do contrato.

Enfim, o fato superveniente só tem importância no cumprimento obrigacional diante de dois fatos, a saber: a ocorrência de caso fortuito ou força maior, ou ainda, de onerosidade excessiva superveniente.

Historicamente, lembremos da Lei Faillot, uma das primeiras leis a regular a situação de possível resolução do contrato de duração com base em fato superveniente. A lei data de 1918 quando havia uma tentativa de recuperação do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos pactuados antes da Primeira Grande Guerra Mundial a respeito do fornecimento de gêneros, cujo preço, após a Guerra, disparou exponencialmente.

De qualquer forma, perante o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil brasileiro não basta alegar a pandemia para resolver o contrato, sem pagamento de penalidade, ou simplesmente, pleitear alteração da cláusula que fixa preço. É necessário demonstrar o nexo de causalidade existente entre a pandemia e a onerosidade excessiva da prestação.

A vigorosa doutrina pátria[1] tem sido unânime em afirmar que apesar de o juiz dever resolver a questão por equidade, deve igualmente, se esforçar por encontrar nova cláusula em harmonia com a cláusula de preço celebrado no momento da pactuação contratual.

O cenário da pandemia oferece, em tese, tanto para o Direito como para a justiça, desafiando a segurança jurídica onde é aconselhável a negociação para permitir a sobrevivência do vínculo contratual ou a sua suspensão provisória.

Referências

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Curso de Direito Civil Teoria Geral dos Contratos. Volume III. 4. edição. São Paulo: Saraiva Jur, 2019.

DE ALMEIDA, Fabrício Bolzan. Direito do Consumidor Esquematizado 8. edição. São Paulo: Saraiva Jur, 2020.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Contratos. 2.edição. São Paulo: Saraiva Jur, 2019.

GARCIA, Leonardo de Medeiros. Código de Defesa do Consumidor Comentado artigo por artigo. 13.edição. Salvador: Editora Jus PODIVM, 2017.

LEITE, Gisele; DA CRUZ, Ramiro L.P.; HEUSELER, Denise. Covid-19. O fato jurídico. E-book. Coleção de 25 artigos. Edição: Diego Córdoba. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/343814940_Covid-19_o_fato_juridico Acesso em 4.6.2021. Rio de Janeiro: 2020.

MELLO, Cleyson de Moraes. Direito Civil. Parte Geral. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 2017.

NEGRÃO, Theotonio; GOUVÊA, José Roberto F.; BONDIOLI, Luis Guilherme A.; DA FONSECA, João Francisco N. Da Fonseca. 34.edição. São Paulo: Saraiva, 2016.

NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de A. Código Civil Comentado. 1.edição em e-book. Baseada na 10ª edição impressa. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

PADILHA, Rodrigo. Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020.

PELUSO, Cezar (Coordenador). Código Civil Comentado. Doutrina e Jurisprudência. 4. edição. São Paulo: Manole, 2010.

SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando; DE MELLO, Marco Aurélio Bezerra; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil Comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Código Civil Interpretado. 4ª edição. São Paulo: Atlas, 2019.



[1] A Lei nº 13.874/2019, ao instituir a declaração dos direitos da liberdade econômica, introduziu novos dispositivos para a interpretação e integração de negócios jurídicos e contratos, tendo, inclusive, modificado artigos do Código Civil concernentes à disciplina contratual. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019). Dessa forma, a liberdade contratual, e não liberdade de contratar (que consiste em escolher pessoas para contratar), já que o conteúdo do contrato e que deve sofrer limitação da função social.

Como citar e referenciar este artigo:
LEITE, Gisele. Impacto da pandemia nas locações brasileiras. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2021. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/impacto-da-pandemia-nas-locacoes-brasileiras/ Acesso em: 29 mar. 2024